Moradas falsas: “As escolas públicas não são todas iguais” - TVI

Moradas falsas: “As escolas públicas não são todas iguais”

Escola

Os casos tornados públicos nas últimas semanas das secundárias Pedro Nunes e Filipa de Lencastre estão longe de ser casos únicos. A federação de Lisboa das associações de pais diz que “é uma realidade que acontece todos os anos”

A Polícia de Segurança Pública (PSP) foi, esta segunda-feira de manhã, chamada à Escola Secundária Pedro Nunes, em Lisboa, para serenar os ânimos de pais revoltados, porque os filhos não tinham sido admitidos naquela escola. Em causa, queixavam-se os pais, uma deturpação dos critérios de admissão à matrícula, que fez com que alunos com irmãos naquela escola (um dos critérios) ficassem excluídos, em detrimento de estudantes cuja morada dos encarregados de educação (e muitas vezes não a real morada do aluno) se situa na zona.

De acordo com o jornal Público, muitos consideram a situação desta segunda-feira na Pedro Nunes mais um caso de moradas falsas, estratagema usado para os pais matricularem os filhos, por exemplo, em escolas que estão no topo dos rankings.

Não é uma realidade deste ano. Acontece todos os anos. Se é correto ou não… obviamente que estão a cometer uma ilegalidade. Isto acontece, muito provavelmente, porque as escolas públicas não são todas iguais”, considera Isidoro Roque, presidente da Federação Regional de Lisboa das Associações de Pais (FERLAP).

Não é uma realidade deste ano e o caso da Escola Secundária Pedro Nunes não é também caso único. Na semana passada, vieram a público queixas semelhantes de pais e encarregados de educação da Escola Secundária D. Filipa de Lencastre.

Queixavam-se os pais que, em agrupamentos de escolas como o Filipa de Lencastre, no Areeiro, e Rainha D. Leonor, em Alvalade, há quem more nas imediações e não consiga matricular os filhos, porque muitas vagas estão preenchidas por crianças e jovens que não são residentes na zona e cujos pais recorrem a moradas de amigos ou amigos de amigos. Esses passam, falsamente, a ser encarregados de educação de filhos alheios, para que a matrícula seja possível.

É uma constante. Nós próprios passamos por estas situações. Os pais procuram dar aos filhos a opção que consideram melhor e procuram escolas melhor cotadas. Noutras circunstâncias, é porque as escolas das áreas de residência desses alunos não têm as opções que eles querem seguir”, adianta o presidente da FERLAP.

Na conversa que manteve com a TVI24, Isidoro Roque acrescenta que a realidade descrita é também transversal a todos os níveis de ensino. Mas é mais frequente no Ensino Secundário.

O presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais (CONFAP) é mais cauteloso na análise e na contabilização destes casos. “Não temos conhecimento [de mais casos além do Pedro Nunes e da Filipa de Lencastre] e espero que não haja mais casos”, diz Jorge Ascensão, em conversa telefónica com a TVI24.

Os critérios do Ministério da Educação

O recurso ao expediente das matrículas falsas não garante, à partida, um lugar na escola pretendida pelos pais do aluno que a ele recorram. Isto, se as escolas aplicarem criteriosamente os critérios de prioridade que são estipulados nos despachos das matrículas, publicados anualmente.

Este ano, o despacho normativo que estabelece esses critérios para o ano de 2017/2018 foi publicado em Diário da República a 17 de abril.

Excerto do Despacho Normativo n.º 1-B/2017, que estabelece as prioridades nas matrículas para o Ensino Secundário

Os primeiros dois critérios estabelecidos pelo documento prendem-se com eventuais necessidades educativas especiais do aluno. Segue-se a frequência do estabelecimento escolar em causa, por parte do aluno, no ano letivo anterior e, em quarto lugar, surge o critério de haver irmãos já matriculados no estabelecimento de ensino em causa.

Foi precisamente este critério que os pais ouvidos pelo Público esta segunda-feira se queixam de não ter sido cumprido, nas listas divulgadas na última sexta-feira. É que o critério dos irmãos surge antes da morada do aluno ou do encarregado de educação.

Ou seja, se as prioridades forem aplicadas de forma criteriosa pelos estabelecimentos de ensino, um irmão de um aluno que frequente a escola não pode ficar de fora a favor de quem resida perto.

“Dos que conheço [na lista dos admitidos], pelo menos dez têm moradas falsas,” sublinhou Tiago Perdigão, um dos pais ouvidos pelo Público.

Mas a legislação tem ainda aquilo que pode ser considerada uma lacuna. A quinta prioridade para admissão dos alunos equipara a morada do aluno à morada do encarregado de educação: “Alunos que comprovadamente residam ou cujos encarregados de educação comprovadamente residam na área de influência do estabelecimento de educação e de ensino”. Ou seja, um aluno cuja morada fiscal está comprovadamente na área de influência da escola tem o mesmo peso, na hora de admissão, de outro aluno cuja morada fiscal seja de fora da zona, mas que apresente como encarregado de educação alguém que more ali perto.

Pais pedem alteração dos critérios

A questão já deu origem a pelo menos duas petições públicas, que estão atualmente a decorrer e que devem ser apresentadas na Assembleia da República.

Uma dessas petições foi lançada pelo movimento “Chega de Moradas Falsas”, criado em maio por Marta Valente e Ana Sardoeira. Moram a “cerca de 50 metros da escola”, no Bairro do Arco do Cego, mas, logo no ato de inscrição, perceberam que os filhos não iriam entrar.

Quando fomos inscrever os nossos filhos, vimos lá mães que estavam a inscrever os próprios filhos, mas que apresentavam delegação de competências de encarregado de educação para outras pessoas”, explica Marta Valente à TVI24.

A filha de Marta faz cinco anos em agosto e o de Ana faz seis em julho. No ano passado, os últimos meninos a entrar na pré-primária e na primária do agrupamento a que pertence a Filipa de Lencastre completavam aquelas idades em abril. Cruzando estes dados com a situação com que se depararam, logo perceberam que não haveria lugar para os seus educandos.

E tinham razão: este ano, a última criança a entrar no Jardim de Infância completou os cinco anos a 2 de março e a última criança a entrar na primária completou os seis anos em abril.

Os últimos Censos dizem que, na freguesia de São João de Deus, há 939 crianças entre os seis e os 17 anos. A escola tem 1844 vagas para alunos com estas idades. Mesmo com o dobro das vagas, há crianças que moram ali ao lado e que não conseguem entrar. Significa que há alguém a usar indevidamente as vagas que são dos nossos filhos”, explica Marta Valente.

 

Temos identificados casos concretos de alunos que não entraram e casos concretos de alunos que entraram, mas não moram aqui. Só no primeiro ano, são 36% os casos de alunos que não moram na zona, mas que apresentam a morada de um encarregado de educação da zona.”

Marta e Ana consideram a “lei muito permissiva” e, por isso mesmo, dá azo a estas ilegalidades. Este ano letivo, as listas já forma divulgadas e as matrículas estão a decorrer, mas não perdem a esperança.

Sabemos que a Inspeção Geral está na escola e temos esperança que anulem as matrículas dos alunos que estão indevidamente inscritos no lugar dos nossos filhos.”

“Eu nasci ali, frequentei o liceu sem problema nenhum. Mas neste momento, a Filipa de Lencastre funciona como uma escola privada”, remata Marta Valente.

A petição pede uma alteração das prioridades nos critérios de admissão e solicitam aos deputados da AR que seja “considerada em 1º lugar a morada da criança, e só depois a morada do encarregado de educação” e também que seja tomado em conta o comprovativo de morada da criança a morada fiscal que consta do Cartão do Cidadão.  

Mas vai mais longe: a petição pede também que haja critérios para considerar alguém encarregado de educação de um aluno: que “quem é encarregado de educação seja também quem exerce o poder parental ou, em situações excecionais devidamente fundamentadas e validadas pela escola,  a pessoa a quem foram delegadas essas competências”. E pede ainda que não possa ser alterado o encarregado de educação durante o ano letivo.

O movimento “Chega de Moradas Falsas” pede ainda que “seja efetuada uma auditoria às escolas que foram alvo de queixas nos últimos cinco anos e que a lista dessas escolas seja pública”.

 A Inspeção-Geral de Educação e Ciência (IGAE) abriu um inquérito para apurar a existência de irregularidades no processo de matrículas, na sequência de notícias sobre o uso de ‘moradas falsas’ para conseguir vagas nas escolas.

Segundo disse à Lusa fonte da tutela, o inquérito servirá igualmente para apurar se há irregularidades na aplicação do despacho que regula o processo de matrículas e que define as prioridades a ter em conta na colocação dos alunos nas escolas.

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