Qara, uma aldeia síria junto à fronteira com o Líbano, não escapou à guerra. Quem ficou, luta todos os dias para continuar vivo. Foi nessa pequena vila que Tiago Ferreira, o repórter de imagem da TVI que atravessou a Síria de Sul a Norte, “tropeçou” num grupo de mulheres que fazia das linhas e das agulhas a esperança possível.
Num mosteiro onde os monges e as freiras organizam a distribuição de ajuda humanitária pela região, o 'Saint James the Mutilated’, conheceu Elsa Marku, uma albanesa que ensinou essas mulheres a criar peças de roupa.
Essa ocupação ajudava-as a não estar paradas, a abstraí-las da guerra que as cercava e a tentar que tivessem uma fonte de rendimento.
Achei curioso e comprei algumas coisas para mim, para trazer para a minha família. Comprei inclusive umas luvas porque estava cheio de frio lá”, contou Tiago Ferreira, com 39 anos e uma vasta experiência em cenários de guerra. “Entretanto, elas pediram-me para trazer uma encomenda para a irmã de uma freira portuguesa que estava lá no mosteiro e eu disse que não me importava nada de trazer para Portugal. Depois sugeri que me dessem mais algumas peças para eu vender aos meus amigos e ajudar de alguma forma.”
Quando chegou a Portugal, depois de três semanas na Síria, Tiago vendeu algumas dessas peças a colegas, amigos e família. Depois, publicou no Facebook uma fotografia dos artigos que tinham sobrado.
“A minha mulher partilhou essa fotografia. A Elsa, na Síria, sem eu perceber muito bem como, começou a falar com ela, sem eu saber de nada, e quando cheguei a casa, a minha mulher já tinha criado a página.”
E foi assim, desta forma desinteressada e desempoeirada, que o projeto Qara nasceu.
As pessoas andam há tanto tempo a ouvir falar desta tragédia humanitária e agora arranjaram esta forma de ajudar. É uma forma à escala, muito pequena, mas muito concreta. É uma coisa muito direta e é a forma que conseguimos de os ajudar”, explica.
Tiago e a mulher, Natacha, são quem gere a página e as vendas do projeto, recebendo os pagamentos e fazendo as entregas. A forma como vão conseguindo repor o stock, é pedindo nova encomenda de cada vez que sabem de alguém na Síria que vem para a Europa.
Tiago Ferreira mantém, ainda assim, o contacto com Elsa e com as mulheres sírias, cuja identidade é importante proteger.
Na altura em que lá estive, estavam a ajudar dez famílias, mas por causa desta “brincadeira”, já conseguiram pôr mais cinco famílias a trabalhar”, conta. “As mulheres estão a trabalhar a tempo inteiro, já estão a conseguir estar motivadas e nós, deste lado, fazemos o que podemos.”
No mosteiro onde estas mulheres tricotam, é normal se ouvirem disparos e bombardeamentos.
Estamos a falar de uma aldeia que fica dentro de uma zona militar fechada, juntos a umas montanhas a que chamam “montanhas anti-Líbano”. Fica a nordeste de Damasco. É uma zona de acesso condicionado, não é qualquer pessoa que pode passar, porque a própria aldeia foi atacada e o mosteiro fica à saída da aldeia e está cercado de artilharia", descreve Tiago. Nós estamos habituados a ver os grandes centros urbanos completamente destruídos e esquecemo-nos que não é só isso, há outras zonas mais pequenas, mais rurais, que também passam por muitas dificuldades, nomeadamente nas coisas mais simples e mais básicas como o acesso à eletricidade por exemplo. Nós chegámos a ter um dia em que tivemos apenas 20 minutos ou meia hora de luz. As pessoas aprendem a viver com isso.”
E num sítio onde não há quase nada, quase tudo faz falta:
Eu acho que o nosso trabalho, às vezes, acaba quando a peça vai para o ar. Passamos por muitas necessidades e dificuldades e quando a peça vai para o ar tudo se esfumaça e tudo se dilui. Passamos para o tema seguinte", afirma. "Eu tenho alguma experiência neste tipo de cenários e tento sempre fazer mais alguma coisa, ajudar algumas pessoas com quem me vou cruzando. Esta é uma coisa pequenina, mas que eu acho que é muito honesta e muito válida. Tem dado trabalho, mas não é nada comparado com aquilo que aquelas pessoas estão a passar. E é muito gratificante passar das palavras aos atos.”