O professor Moriarty caiu - mas Trump não é Sherlock Holmes - TVI

O professor Moriarty caiu - mas Trump não é Sherlock Holmes

  • Germano Almeida
  • 22 ago 2017, 18:42
Steve Bannon

A saída de Steve Bannon voltou a mostrar o instinto de sobrevivência do 45.º Presidente dos EUA. Mas Trump continuará a ser Trump, mesmo sem o seu “génio do Mal” a provocar conturbação permanente. Não haverá “nova página”, talvez apenas uma inflexão menos radicalizada

"A verdadeira fonte do caos é Donald Trump. Steve Bannon era apenas o seu ideólogo. A desorientação na Casa Branca vai continuar
John King, comentador sénio da CNN 
 
 
“Donald Trump é uma máquina gigante de produzir nevoeiro” 
Paul Auster, escritor


Há precisamente um ano, em meados de agosto de 2016, o recém-nomeado candidato presidencial republicano Donald Trump dava um trambolhão nas sondagens (depois de uma péssima convenção e declarações desastradas) e ficava a quase 20 pontos de Hillary Clinton na corrida à Casa Branca. 

Alguns setores da direita americana já apelavam à desistência, para que houvesse tempo de ensaiar uma candidatura alternativa. 

Num instinto de sobrevivência que viria a revelar-se recorrente nos momentos em que tudo parecia perdido, afastou Paul Manafort - que até então dirigira a sua campanha -- e contratou o chefe de redação do Breitbart, site da "alt right" que durante anos dera gás às teses de Trump e outros radicais de que "Obama não podia ser presidente porque... nasceu provavelmente no Quénia", para CEO da sua campanha presidencial. 

Era a entrada definitiva da extrema-direita no que, inesperadamente, estava a ser a tendência dominante do Partido Republicano para a campanha de 2016. 

Steve Bannon, figura até então marginal no sistema político americano, tinha a sua grande oportunidade de provar que tudo o que escrevera e incitara nos anos anteriores em sites, blogues e plataformas de direita alternativa e radical poderia vir a ter uma expressão relevante e nacional na América. 

Donald Trump acabara de encontrar o seu ideólogo e escritor de discursos. 

A criatura tinha, finalmente, descoberto o seu criador. 

Com Bannon na sombra e a construir a "narrativa" (e Kellyanne Conway a fazer o papel histriónico de responder aos ataques a Trump nos programas televisivos, mesmo que para isso tivesse que dizer bizarrias e mentiras descaradas), Donald desenhou o caminho para a Casa Branca mais desconcertante e imprevisível que um Presidente dos EUA alguma vez encontrou. 

Steve Bannon -- formado em Georgetown, Viriginia Tech e Harvard -- mistura uma densidade intelectual indiscutível a uma aversão inaudita ao "establishment" político de Washington. 

É uma espécie de "génio do Mal", um Professor Moriarty sem Sherlock Holmes, com uma obsessão em forma de 'mantra' assustador: "o sistema tem que ser destruído". 

As dinastias Bush e Clinton acabaram mesmo

Prometera, nos últimos anos, encontrar forma de acabar com as dinastias Bush e Clinton -- conseguiu o primeiro objetivo nas primárias republicanas e o segundo na eleição geral. 

Escolheu o "mainstream media" da Costa Leste (Washington Post, New York Times) e das grandes "networks" nacionais (CNN, NBC, ABC, CBS) como inimigos de estimação e criou o conceito de "factos alternativos" (com o uso de "fake news" como poderoso instrumento de propaganda) para arrasar, em definitivo, com uma "elite" política e mediática que, desde o segundo mandato de George W. Bush, tem vindo a perder popularidade e prestígio em todos os indicadores e pesquisas na América. 

Steve e Donald viram aqui um enorme mercado eleitoral. E estavam certos. Bannon criou e escreveu o guião, Trump interpretou-o: a fase decisiva da campanha presidencial de 2016 teve como ideia dominante a de que "a América precisa de ser grande outra vez e para isso tem que rejeitar os políticos que dominaram Washington nos últimos anos e fizeram os EUA perder força juntos de aliados e inimigos". Donald era o tipo duro e mal-criado que iria fazer o contraponto ao racional e "fraco" (nesta narrativa) Barack Obama, que durante oito anos colocara a América "numa posição de submissão para o exterior" e permitira "o crescimento do radicalismo islâmico, do terrorismo e do poder de minorias que não representam a verdadeira essência americana". 

A "maioria branca" via uma última oportunidade de um "comeback", depois de oito anos a ver um negro de agenda progressista (casamento gay aprovado, mais poder para minorias e mulheres) a dominar a Casa Branca. 

O momento da "vingança" estava a chegar. 

Grupos até então vistos como extremados e marginais no sistema político e mediático viram a sua grande oportunidade. O código Bannon era ter em Trump um candidato que ignorava os ditames do Partido Republicano. A ideia era hostilizar quem era visto pela "real America" como fazendo parte de uma elite que havia que "destruir". Democratas e republicanos, quase ninguém escapou: Barack Obama, Hillary Clinton, John McCain, Mitt Romney, Jeb Bush, Mitch McConnell, Paul Ryan, Marco Rubio, Lindsey Graham, tantos outros. 

Em poucos meses, o nomeado de um dos dois grandes partidos do sistema insultou, caluniou, atiçou e desafiou quase todas as grandes referências da alta política americana. 

Os manuais do marketing político diziam-nos que o resultado só podia ser desastroso. 

Mas a noite de 8 de novembro de 2016 foi o tal "11 de Setembro de 2001" para o sistema político nos EUA: nada ficou como antes. A via radical e destruidora de Steve Bannon ganhara incrivelmente. A receita de "isolacionismo", "America First", "nacionalismo económico" e "reforço de fronteiras" venceu como nunca acontecera numa eleição presidencial nos EUA. 

E Trump colocou mesmo "um racista como conselheiro-chefe na Casa Branca" (a expressão é de Bernie Sanders). 

Um paradoxo no poder

O paradoxo foi-se agravando: o poder, por definição, exige estabilidade, mas na Casa Branca houve, por mais de 200 dias, um Presidente a ter ao seu lado o estratega da "destruição do sistema". 

A agitação foi permanente: Bannon até foi capa da Time e chegou a ter acesso direto ao Conselho de Segurança Nacional, mas H.R. McMaster, o general que lidera o National Security Council desde a queda de Mike Flynn, exigiu que Steve saísse -- e Trump cedeu. 

John Kelly, outro general, exigiu "disciplina, estabilidade e foco" na Casa Branca para assumir a sucessão de Reince Priebus como "chief of staff" e a "guerra interna" com Bannon foi imediata. 

Steve Bannon chocou com o general McMaster em quase tudo nestes meses: na estratégia para o Afeganistão, no que Trump devia dizer para travar Kim Jong-Un, no que devia ser feito pela Casa Branca para dissipar as suspeitas da "Russia Collusion". 

O despedimento de Steve sinaliza que o general Kelly (amigo pessoal de McMaster) estará mesmo a vencer essa batalha pelo controlo interno da Casa Branca. 

Nas últimas semanas, McMaster e Kelly (sobretudo o primeiro) foram alvo de "campanhas negras" nas redes sociais e em Washington não restam grandes dúvidas sobre quem as terá engendrado -- essa foi sempre a tática preferida de Steve Bannon. 

Bode expiatório para salvar o Presidente da pressão máxima

Os confrontos racistas na Virgínia terão sido a gota de água: havia que encontrar um bode expiatório para salvar o Presidente da inaceitável proximidade com grupos de supremacia branca. 

Donald Trump terá muito maior identificação com os métodos e a ideologia de Bannon, mas terá visto na credibilidade do general Kelly a última oportunidade para encontrar algum tipo de estabilidade na Casa Branca, depois de sete meses de total descontrolo político e comunicacional. 

O Presidente seguiu a via de Steve Bannon na "travel ban": perdeu. Seguiu a via do seu estratega-chefe na revogação do ObamaCare: perdeu. Seguiu Steve (ignorando a própria filha Ivanka) e anunciou mesmo a saída do Acordo de Paris. Seguiu Bannon na hostilização a democratas e republicanos: ganhou na campanha, mas perdeu quase sempre desde que está na Sala Oval. Não se deve subestimar o instinto de sobrevivência de Donald Trump. Há precisamente um ano, esse instinto levou Donald a contratar Steve Bannon. Agora, para sobreviver, foi preciso que a criatura rompesse com o criador. 

Steve volta para o Breitbart e promete, pelo menos para já, manter-se fiel à "revolução de Trump" (ainda que anote que "a presidência Trump que tínhamos desejado já acabou"). A alta política americana continuará a olhar para Steve Bannon com um misto de perplexidade e receio. 

Os sete meses da dupla Trump Presidente/Bannon estratega foram um falhanço quase completo: da imagem tirada apenas oito dias depois da tomada de posse, com uma Sala Oval com as pessoas mais próximas do Presidente, já só resta mesmo o vice-presidente Mike Pence. Mike Flynn, Reince Priebus, Sean Spicer e agora Steve Bannon – já caíram todos (e depois de Spicer, também já caiu o que diretor de comunicação que lhe sucedera, Anthony Scaramucci). 

Inflexão pós-Bannon

O discurso desta madrugada sobre o Afeganistão pode indicar uma inflexão de Trump que aponte para menos “isolacionismo” (Bannon opôs-se sempre a um maior envolvimento na “mais longa guerra da América”).

Neste e noutros temas, Trump poderá ouvir mais, nos próximos tempos, os generais Kelly (“chief of staff”), Mattis (Pentágono) e McMaster (Conselheiro de Segurança Nacional).

Mas daí até passarmos a ver em Trump um Presidente mais “intervencionista” que “isolacionalista” vai uma grande distância.
 
Depois do terramoto, é muito mais difícil voltar a pôr as peças encaixadas. Mesmo que o abalo já tenha parado.

 

Germano Almeida é autor de dois livros sobre a presidência Obama e outro sobre Hillary Clinton e a eleição presidencial de 2016

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