A oportunidade democrata - TVI

A oportunidade democrata

  • Germano Almeida
  • 15 mar 2019, 11:11
Donald Trump

Os 55% de rejeição presidencial de Trump abrem caminho pouco habitual nas últimas décadas: há muito que não havia tanto espaço para travar a reeleição de um presidente. Não quer dizer que isso vá acontecer: no desfilar de candidatos à nomeação, os democratas têm que acertar no processo de escolha. Talvez seja inteligente optar por quem tenha menos anticorpos e possa ganhar o Sul e chegar a mais segmentos. Beto O’Rourke?

Beto O’Rourke é candidato à Presidência dos EUA e começa esta quinta-feira a fazer campanha no Iowa.

Podia ser apenas mais um entre tantos pretendentes à nomeação presidencial democrata – mas talvez seja aquele que pode vir a desbloquear uma série de impasses que marcam o processo de escolha sobre quem deve ser o candidato que pode travar a reeleição de Donald Trump.

Joe Biden tem a notoriedade e o currículo (quatro décadas no Congresso e oito anos na Casa Branca, como “vice” de Obama). É forte no Midwest – onde Hillary perdeu inesperadamente para Trump – mas terá 78 anos à data da tomada de posse. Por muito que apareça agora na frente, não é previsível que venha a ser ele o nomeado.

Bernie Sanders fez campanha notável há quatro anos. Partiu do nada e terminou quase a ultrapassar a super favorita Hillary Clinton. Mas puxa a agenda democrata demasiado para a esquerda e a sua conversa anti-sistema chega a ter pontos de contato com a narrativa Trump. Foi “socialista” a sua vida quase toda – a sua nomeação seria uma prenda para Trump, que só teria na campanha de recordar isso ao eleitorado americano para que este, ideologicamente muito menos à esquerda, se assustasse.

E depois há também a questão da idade: o que acima escrevi para Biden vale também para Sanders – não é crível que acabe por ser Bernie o nomeado, por muito que parta lançado com a base de 2016 e uma estrutura de campanha oleada.

Elizabeth Warren é uma senadora corajosa e muito bem preparada. Apoiou Obama no início, desiludiu-se com a suposta “capitulação” de Barack para com o “sistema” que prometia desmontar – e é uma das campeãs da esquerda americana. Mas tem propostas que são demasiado radicais para o que é o americano comum. Num confronto com Donald Trump na eleição geral perderia por muitos, sobretudo nos estados decisivos.

Kamala Harris e Cory Booker, senadores da Califórnia e da Nova Jérsia, são políticos bem preparados, com alguma base de apoio e herdeiros de uma espécie de “pós Obama” ainda em construção no campo democrata.

Kamala é uma das pessoas que Barack Obama mais apoiou politicamente desde que saiu da Casa Branca e tem feito uma campanha agressiva e mobilizada neste arranque. Cory é um dos políticos mais talentosos da sua geração e, embora não tenha para já os apoios que Kamala reúne, pode sonhar com algum caminho positivo nos próximos meses.

Sucede que nem Kamala nem Cory conseguem reunir todas as credenciais que uma campanha presidencial exige na América.

Ambos estão a surfar a onda esquerdista, com laivos de populismo, que levou os democratas a aproveitarem a vitória de novembro passado para o Congresso para lançarem um ataque cerrado à agenda da atual administração.

A questão está muito aí.

Rejeitar Trump não chega

Se há temas que devem servir de base comum a todos os pretendentes à nomeação democrata (ambiente, evidência das alterações climáticas, reforço do globalismo perante posição unilateralista desta administração, regresso às alianças tradicionais), o modo como os democratas irão demarcar-se de muitas opções de Trump na área económica, na política de segurança interna e reforço de fronteiras e mesmo na proteção ao «trabalhador americano» vai definir grande parte da história desta corrida presidencial.

Ora, seria um erro fatal se os democratas alinhassem na investidura de alguém com a agenda de Bernie Sanders, Elizabeth Warren, Kamala Harris ou Cory Booker.

Rejeitar Trump será, obviamente, um traço em comum entre todos os que desejam chegar à Convenção de Milwaukee. Colocar todo o foco aí e fazer uma espécie de tiro ao alvo ao atual Presidente pode vir a ser um erro.

Em novembro de 2016, muitos de nós ficámos em choque ao ver como mais de 63 milhões de norte-americanos votaram para seu Presidente em alguém com traços inaceitáveis para a função (mentiroso, hostil, instigador do ódio e da divisão) como Donald Trump.

Ignorar o que aconteceu e deitar fora esse eleitorado “silencioso” (que, embora não maioritário, foi suficiente para eleger um Presidente, por força de um sistema eleitoral um pouco bizarro, mas que continuará a vigorar) não será apenas uma arrogância: é um erro estratégico potencialmente fatal.

Sim, os democratas partem à frente: 55% dos americanos rejeitam o desempenho deste Presidente e apenas 40% o aprovam.

A vantagem democrata é evidente – e do ponto de vista demográfica ela tem-se concretizado nas últimas sete eleições presidenciais (por seis vezes, o nomeado democrata teve mais votos que o opositor republicano, ainda que em duas delas o eleito tenha sido o republicano, George W. Bush em 2000 e Donald Trump em 2016).

Vantagem democrata só nos votos

Nos últimos 28 anos, desde 1992, só por uma vez, em 2004, o nomeado republicano teve mais votos que o democrata – aconteceu na reeleição de George W. Bush contra John Kerry.

Mas também é verdade que nos últimos sete presidentes, só dois não foram reeleitos (Jimmy Carter em 1980, contra Ronald Reagan, e George Bush pai em 1992, contra Bill Clinton).

As recentes eleições “midterm” para o Congresso, em novembro passado, voltaram a mostrar essa suposta maioria demográfica dos democratas: 60,2 milhões em candidatos democratas para a Câmara dos Representantes; 50,8 milhões para candidatos republicanos (53%/45%). Nos lugares que foram a jogo para o Senado, diferença anda maior: 49,5 milhões de votos para os democratas; 33,9 milhões para os republicanos (58%/39%).

A oportunidade democrata está lá: não quer dizer que vá concretizar-se na eleição.

Primeiro, porque a dispersão dos candidatos pode levar a uma perda do foco sobre quem estará na melhor posição de derrotar Donald Trump daqui a 20 meses.

Depois, porque uma eleição presidencial na América – como Al Gore e Hillary Clinton bem sabem, pelas piores razões – não se decide pelos votos. Decide-se pelos estados.

A solução Beto

E é aqui que entra a importância do anúncio de hoje de Beto O’Rourke.

Com uma taxa de rejeição muito baixa (tem poucos anticorpos, não há um segmento que assuma que o “deteste” ou o rejeite à partida), Beto O’ Rourke parece ser o candidato em melhores condições de somar votos num leque mais variado de zonas da América.

É do Sul – e tradicionalmente os democratas têm dificuldades eleitorais nos estados do Sul. Ainda por cima, é do Texas, uma espécie de santuário republicano na América.

Há quatro meses, Beto O’ Rourke esteve a um passo de impor uma derrota histórica a Ted Cruz no Texas. Multiplicou por seis os votos democratas na corrida para o Senado naquele estado, liderando uma campanha pela positiva, muito mobilizada, sem apoios da Super PAC e uma base eleitoral diversa – jovens, minorias, latinos claro, mas também muitos “brancos tradicionais”.

Ora, do que os democratas precisam em novembro 2020 é de um candidato que seja eleitoralmente competitivo em estados como Texas, a Geórgia, o Tennessee ou até o Alabama – de modo a alargarem a sua matemática eleitoral para atingirem os 270 Grandes Eleitores.

Hillary falhou rotundamente nessa estratégia em 2016, porque deu, erradamente, como garantidos os estados do Midwest. Entre Ohio, Pensilvânia, Wisconsin e Michigan, bastava ganhar em dois. Achava que iria ganhar pelo menos três – mas perdeu nos quatro.

“Long Shot”

O “long shot” para 2020 pode ser uma vitória de Beto O’Rourke no Texas. Há quatro meses, teve 48,5% na corrida para o senado desse estado sulista e profundamente republicano – percentagem superior aos 46,1% obtidos por Donald Trump na sua eleição presidencial a nível nacional.

Se O’Rourke tem 48,5% dos votos no Texas, então pode mesmo bater Trump no todo da América.

Os democratas lideram nas minorias (negros, hispânicos, jovens) e são fortes nas mulheres. Mas precisam de ser muito mais fortes no eleitorado branco, sobretudo masculino – foi isso que Trump percebeu em 2016.

Ao contrário de Kamala, Cory, Bernie ou Elizabeth (outros candidatos, como Kirstie Gillibrand, Pete Buttigiegg, Tulsi Gabbard, Amy Klobuchar ou Julián Castro não têm dimensão para sonhar com a vitória), Beto mantém o foco num discurso positivo, recusando-se a baixar o nível (como fez Obama em 2008).

Em tempos trumpianos em que a política americana parece condenada a lutas na lama, são precisos momentos redentores em que alguém consiga voltar a puxar pelos melhores anjos que há dentro de nós – em vez de acicatar os piores demónios.

Sim, Joe Biden também pode fazer esta quadratura do círculo. Mas já será a terceira vez que tenta chegar à Casa Branca e completará 80 anos a meio do próximo ciclo presidencial.

Geralmente, as eleições americanas são sobre o futuro, não sobre o passado (2016 foi uma estranha exceção).

Beto O’ Rourke, 46 anos, o político mais popular de El Paso, congressista estadual no Texas entre 2012 e 2018, fã dos Metallica e baterista de bandas punk na juventude, casado com a professora texana Amy Hoover Sanders e pai de três filhos, formado em Columbia (como Barack Obama), descendente de famílias irlandesas e galesas (como apelido bem denuncia), arranca hoje para uma viagem arriscada, improvável até – mas potencialmente vencedora.

A oportunidade está lá.

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