O fim do excecionalismo americano - TVI

O fim do excecionalismo americano

    Germano Almeida
    Germano Almeida, 39 anos, é comentador de política americana. Publicou em 2010 o livro «Histórias da Casa Branca» e em 2013 «Por Dentro da Reeleição». No final de 2016 publicou livro sobre Hillary Clinton e a eleição presidencial
  • Germano Almeida
  • 22 jun 2018, 14:35
Donald Trump

Já há quem lhe chame a “queda do império”. Quando os valores essenciais que seguram uma grande nação são abalados sem que os seus líderes os travem de imediato, mesmo que se evite o pior há sempre algo de fundamental que se perde. A separação de famílias vai manchar negativamente a presidência Trump – mas revela doença mais profunda

"Cometer atrocidades na fronteira, atacar a primazia da lei, insultar líderes democráticos enquanto se elogia líderes autoritários e de reputação duvidosa, romper acordos multilaterais de comércio, tudo isso junta significa acabar com o excecionalismo americano, retrocedendo os ideais que fizeram dos EUA uma nação diferente das outras potências”
PAUL KRUGMAN, artigo no New York Times com o título “A Queda do Império Americano”

A crise da separação das famílias até poderá vir a ser minimizada, nos próximos dias, pela Administração Trump. Mas vai manchar, inevitavelmente, a história desta presidência, já de si recheada de momentos muito negativos. 

O tema - que já gerou duas capas notáveis (revistas “New Yorker” e “Time” do próximo dia 2 de julho, em mais um sinal da força do grande jornalismo em tempos de inquietação política) - é demasiado complexo para o reduzirmos a uma demonização de Trump (que tem muita culpa pelo extremo a que o problema chegou nos últimos dias, mas já assinou medida presidencial para evitar a separação de famílias). 

A incapacidade do poder político na América de encarar com um misto de eficácia e compaixão o problema da imigração ilegal vai muito para lá da era Trump -- de algum modo, Donald na Casa Branca é consequência e não causa. 

Sim, os democratas têm culpa (e aí Trump tem alguma razão), mas, caramba, os republicanos têm muito mais (basta ver como a posição "compassiva" de Jeb Bush nas primárias de 2016 levou a que fosse trucidado nas urnas). 

O modo como Trump lida com este tema -- sinalizando sempre à sua base que tem mão dura na questão do controlo de fronteiras, mas recuando no ponto de "separar as crianças", quando percebeu que estava a ser diretamente responsabilizado na grande opinião pública por uma situação indefensável e desumana -- diz muito sobre o perfil deste Presidente. 

Há, no entanto, uma demagogia imperdoável em que Donald insiste em cair: quando associa, mentirosa e perigosamente, a "subida do crime" (que não existe, mas exerce medo real) com "os imigrantes" (nenhum estudo demonstra tal coisa). 

Trump chegou a tuitar que “a Alemanha de Merkel está a pagar o preço de ter aberto a fronteira aos imigrantes, o crime está a subir em flecha”. Mentira: as estatísticas oficiais referem que o crime na Alemanha está em mínimos de duas décadas e meia: é o mais baixo desde 1992. 

É o reino das perceções levado ao limite -- e sem ponta de vergonha. 

Um problema que extravasa o “estilo Trump”

Sim, é verdade que Barack Obama não conseguiu resolver a questão da imigração ilegal em oito anos. 

Mas obviamente que a explicação tem a ver com o obstrucionismo cego da maioria republicana do Congresso durante os mesmos oito anos. 

Com uma lei de imigração obsoleta para a realidade americana, o presidente dos EUA que mais deportações assinou chama-se, ainda, Barack Obama. 

Ao menos por uma vez, paremos com o "double standard" de pôr culpas ao que Obama não conseguiu resolver e minimizar responsabilidades ao comportamento inaceitável do seu sucessor. 

Dizer que a culpa de separar pais e filhos na fronteira do Texas é "do obstrucionismo dos democratas", que para mais estão em minoria no Congresso, é o cúmulo da hipocrisia política e moral. 

Donald Trump, para ter conseguido chegar a Presidente dos EUA, tem que valer mais que isso. 

Mesmo no pico da retórica demagógica de campanha "we will build a great wall" e quando insinuava que iria criar brigadas especiais de deportação, mesmo nessa altura, Trump chegou a ter o cuidado de dizer que não permitiria que crianças menores fossem separadas dos pais. 

Isso é o mínimo básico que qualquer país civilizado garantirá, independentemente da sua política, legítima, de controlo de fronteiras e gestão dos fluxos migratórios. 

A lei de imigração ainda não foi atualizada (correm neste momento duas propostas de alteração, encravadas no labirinto legislativo da Câmara dos Representantes), mas há sempre um papel decisivo das autoridades, e logo de início da Administração americana, para definir a forma como ela se aplica. 

O ponto é que Trump está a surfar a onda de se mostrar mais durão que os europeus e aproveitou os últimos dias para clamar: "Os EUA não serão um campo de migrantes nem servirão de instalação para manter refugiados. Temos que manter um domínio americano do nosso território". 

Se não fossem trágicas, estas declarações até seriam cómicas. Milhares de pessoas, mais 2000 delas crianças, foram colocadas nos últimos dias em instalações na fronteira sudoeste do Texas, referidas como "prisões de imigrantes ilegais". 

O senador Jeff Merkley, democrata do Oregon, denunciou: "Estes miúdos que foram postos nestas 'jaulas', algumas com cerca de 20 crianças, para serem separados dos pais, ficarão traumatizados para o resto da vida". 

O congressista Peter Welch, democrata do Vermont, apontou: "Acabei de sair de um ponto de controlo fronteiriço conhecido como "icebox". Aquilo é nada menos que uma prisão. Vi crianças muito pequenas serem postas numa caixa entre grades, sentadas num banco de metal, separadas dos pais, à espera em silêncio. Como se fossem prisioneiros". 

A mentira como argumento presidencial

Trump, usando uma tática que repete desavergonhadamente, inverte o essencial da questão: "Há crianças a serem usadas para justificar as posições de criminosos que queriam entrar no nosso país. Não o podemos permitir!" 

Mas a demagogia de alguém que não é bem um Presidente dos EUA ainda vai mais longe: “Alguém tem estado a olhar para os crimes que acontecem a sul da fronteira? Alguns desses países são os mais perigosos do mundo. Isso não vai acontecer nos Estados Unidos”.   

Desgraçadamente, a ignorância, a mentira e a exploração do medo são três armas muito poderosas nesta era da perceção e das 'fake news'. 

O melhor e o pior da América

O que se passou nos últimos dias revela o pior mas também o melhor da América.

Perante a demora presidencial em travar o inaceitável, os governos estaduais e as câmaras municipais das principais cidades americanas começaram a agir, libertando fundos para que se comece o processo de “reunificação” das famílias separadas.

É um trabalho urgente: há crianças pequenas afastadas dos pais, sendo que a partir de certo ponto nem sequer as autoridades locais que as recebem têm a informação sobre onde estão detidos os progenitores.

De acordo com Bill de Blasio, mayor de Nova Iorque, pelo menos 350 crianças foram enviadas para um abrigo em NY nos últimos dois meses – e a maior parte delas não sabe onde estão os pais. Voltar a juntar estas famílias não será fácil e pode demorar semanas. 

Em causa está uma grave falta de informação e mesmo confiança entre os serviços da Homeland Security (ministério do Interior da Administração Trump) e as autoridades estaduais e locais. 

O tema imigração dominou a corrida presidencial de 2016. Trump percebeu melhor que ninguém que a questão da identidade e o medo do “outro” mexe com boa parte do eleitorado americano. 

O atual Presidente dos EUA foi eleito numa plataforma de protecionismo económico e reforço de fronteiras. Ambos os temas remetem para as noções de “segurança” e “nacionalismo”.

Mesmo com este aparente recuo, talvez ditado pela indignação em escalada na opinião pública e nas redes sociais (se há político que percebe a força que pode ter uma imagem é Donald Trump), o Presidente dos EUA não abdicará da sua agenda anti-imigração.

É isso que o distingue de republicanos tradicionais como George W. Bush ou John McCain e foi isso que lhe deu a vitória em estados decisivos.

É uma espécie de “último grito” do poder ainda dominante, mas em claro declínio, da “América branca tradicional”.

Mas não é isso que define a força da América. A maior força dos EUA reside na sua diversidade. Atacar desta forma o maior trunfo de uma nação não pode ser um gesto inócuo. 

Algo de muito profundo está a perder-se.

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