Mariana Campaniça, a dona de uma taberna às moscas - TVI

Mariana Campaniça, a dona de uma taberna às moscas

  • Rui Araújo
  • Imagem Valter Leite | Edição de Imagem Miguel Freitas
  • 19 ago 2018, 21:26

Reportagem no Alentejo conta a história de uma mulher que desde sempre foi livre, rebelde

Alentejo, uma tarde destas abrasadora. O horizonte é largo e bravio. Terras agrestes e escalvadas. Primeiro, um casario velho, em ruínas. Um dia, já lá vão muitos anos, aqui, neste monte, viveu gente.

Lá ao fundo, na estrada secundária (as mais interessantes!), damos com dois pastores e um rebanho. E com os carris. Calha bem, o nosso destino é a Gare de Ourique. Na estação já não param comboios. Os poucos que ainda passam por este ramal da Linha do Alentejo são os da mina (de cobre e zinco) de Neves Corvo.

Diante do edifício fica o Café Primavera. Clientes, esses, nem vê-los ou quase. O estabelecimento está às moscas.

Mariana Maria, conhecida desde cachopa por Mariana Campaniça, é a dona da taberna. Tem 86 anos feitos, nasceu no Atravessado. 

"A minha vida foi sempre no campo e sempre a trabalhar. Eu desde os 10 anos, vim a trabalhar: cuidar bestas, cuidar vacas, descalça, vim trabalhar.
Ia ganhar um panito. Ia ganhar uns 5 tostões ou 10 tostões. Nesse tempo era assim. E era para levar para casa que era para a gente comermos todos. Era o pai e a mãe a trabalhar e não chegava. Doze moços de roda de uma mesa, não dá. Com mais 2, o pai e a mãe..."

É preciso deixar passar as horas e os minutos. E o tempo, aqui, quer se queira quer não, anda devagar. Mariana Maria, vive, aqui, sozinha, paredes meias com a negrura do lugar e as recordações do mundo que é o seu. E com os sonhos. "Quando era criança queria ser muita coisa. (ri-se) Era o que eu podia fazer. Queria ser rico, queria ser rica, queria ser bonita, nunca fui uma coisa nem outra".

Mas o pior é a miséria. Começou a trabalhar ainda criança. E nunca parou, até hoje. É a mulher dos sete ofícios. Correu o país: Odemira, Vila Nova, Beja, Serpa, Carregueiro, Funcheira... até que um dia comprou a tasca, em Ourique.


"A minha vida foi andar ceifando e mondando no campo.  E quando eu ia para casa, ia a um baile, a uma festa, via as outras senhoras, outras meninas, todas vestidas de ar, todas bonitas e eu com o vestido de chita, daquele que nem sequer se podia tocar numa esteva. Não havia cascanhol... Eu, com o vestidinho de chita, digo: vida de um cabrão. Só eu é que nasci pobre".

Mariana Maria é, acima de tudo, uma rebelde. Faz o que quer (sempre fez!) e não tem medo de ninguém. "Eu não tenho medo! Tenho ali uma debaixo da cabeceira que é assim deste tamanho.  (DISPARA) Está mesmo debaixo da cabeceira da cama. Se eu ouvir mexer na porta, não preciso de me levantar. É só olhar para a porta e quando aparecer qualquer coisa lá à porta, toma".


Ia à caça, fumava, bebia uns canecos e era danada para o fado, para as "modas" e para o "cante ao baldão" (o despique, as desgarradas!). Era e continua a ser...



Vou cantar a moda da Marianita. Oh, não. Vou cantar outra...

Quero ir para o altar que eu daqui não vejo bem...

Quero ir para o altar que eu daqui não vejo bem...

Quero ir ver o meu amor,
Visitar lá mais alguém...

Quero ir ver o meu amor,
Visitar lá mais alguém...

Agora é que eu vou andar, 
Agora é que eu vou andando...



Da noite para o dia, o pai das suas três filhas partiu. E nunca mais voltou. Mariana Maria não se queixa. Há males maiores. Há a morte. A morte de uma filha. 

Mariana - Quem é que viu Deus? Ninguém vê, mas eu já o vi. Fui obrigada a vê-lo...
Rui - Como?
Mariana - Eu vou-lhe contar...


A filha morta apareceu-lhe uma noite no quarto. A imagem pode parecer irreal, mas cumprida uma promessa a morta sumiu-se. Para Mariana Maria, Deus... Deus e a Fé datam  daí.

Todas os dias rezo na minha cama quando me deito e quando me levanto. Tenho uma oração que eu digo todas as noites.
"Com Deus me deito. Com Deus me levanto. Por amor de Deus e do Espírito Santo... - Digo isto três vezes." 


Foi uma vida sacrificada, mas cheia. Há sentimentos que ganham hora a hora outra dimensão. 

Aqui fora, o dia está a morrer.  A luz incerta do lusco-fusco (ou da penumbra) anuncia o momento das despedidas.

Lá dentro, Mariana Maria dorme ou vela. Ou fecha os olhos, simplesmente, a pensar que amanhã continuará a lutar... já que a condenaram a viver só apesar de estar entrevada.

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