«Estava com o Kelvin no banco e disse-lhe: ‘Hoje vais marcar’» - TVI

«Estava com o Kelvin no banco e disse-lhe: ‘Hoje vais marcar’»

Porto Campeão (JOSÉ COELHO/LUSA)

Abdoulaye teve contrato com o FC Porto durante nove anos mas ficou apenas época e meia na equipa principal. Tempo suficiente para ser campeão português. O atual jogador do Deportivo da Corunha garante que tem «sangue azul» e não esquece o dia da reviravolta na Liga 2012/13, com uma vitória frente ao Benfica (2-1)

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Abdoulaye esteve vinculado ao FC Porto durante nove anos, entre 2008 e 2017. Chegou ao clube portista para representar os juniores e, entre vários períodos de empréstimo, ainda concretizou alguns sonhos: foi campeão nacional na temporada 2012/13, já depois de ter vencido a Taça de Portugal pela Académica, e disputou a Liga dos Campeões com a camisola azul e branca.

O internacional senegalês terminou o vínculo contratual com o FC Porto há três épocas mas a ligação sentimental ficará para sempre. Em entrevista ao Maisfutebol, o atual jogador do Deportivo da Corunha garante que leva o clube portista no coração e que tem «sangue azul».

O defesa-central disputou 24 jogos pela equipa principal do FC Porto, entre 2012 e 2014, aproveitando as épocas de cedência para evoluir. Nessa condição, representou Sporting da Covilhã, Académica, Vitória de Guimarães, Rayo Vallecano (Espanha), Fenerbahçe e Alanyaspor (Turquia) e TSV Munique 1860 (Alemanha), clube em que reencontrou Vítor Pereira, o treinador que lhe deu a oportunidade de ser campeão português.

Abdoulaye vibrou no banco de suplentes com a reviravolta do FC Porto frente ao Benfica, na penúltima jornada da Liga 2012/13 (2-1). Ao seu lado esteve Kelvin, o homem que viria a mudar a história daquele campeonato. «Hoje vais marcar», disse-lhe o senegalês. Assim foi.

O Rayo Vallecano contratou o senegalês após o adeus definitivo do clube portista. Ao serviço do clube de Vallecas venceu a segunda divisão espanhola e teve nova oportunidade de defrontar os maiores craques de La Liga. Após uma época com bons números (27 jogos), perdeu espaço no Rayo. A 12 de março, foi emprestado ao Deportivo da Corunha, do segundo escalão, mas a competição em Espanha foi suspensa logo depois, devido à covid-19.

Maisfutebol – O Abdoulaye chegou a Portugal em 2008, com 17 anos, para jogar nos juniores do FC Porto. Como foram esses primeiros tempos de adaptação a uma nova realidade?

Abdoulaye - Os primeiros tempos em Portugal foram complicados porque não conhecia a língua, já que só sabia falar francês, não estava habituado às comidas, etc. Mas tive bastante ajuda, conheci pessoas fantásticas, sobretudo da Casa do Dragão, que tornaram tudo mais fácil para mim.

MF – No primeiro período de empréstimo foi para o Sporting da Covilhã, da II Liga. Para um senegalês, ir para um clima frio não deve ter sido fácil.

A - O empréstimo ao Sporting da Covilhã acabou por ser bom para mim, já que tive a oportunidade de jogar bastante, mas fui muito difícil adaptar-me à cidade, muito fria e com neve, e uma competição diferente. Superei isso porque tinha o grande objetivo de regressar ao FC Porto e sabia que só com muito trabalho e sacrifício o iria conseguir. Quando sais do nada e Deus te dá um talento, tens de trabalhar para o aproveitar, para ajudar a tua família.

MF – Cresceu num cenário de dificuldades no Senegal?

A - Tínhamos uma vida humilde no Senegal e o meu sonho sempre foi tornar-me profissional. Aliás, penso que esse é o sonho de todos os jovens jogadores em África, mas só alguns o conseguem. Por isso sempre dei tudo, sempre dei o máximo, ficava depois do treino a trabalhar mais, fazia o que fosse preciso. Por isso é que admiro a mentalidade do Cristiano Ronaldo, que também saiu do nada e chegou ao topo. É um grande exemplo. Se ele conseguiu, porque é que eu não posso? Foi isso que pensei.

MF – Depois do Sp. Covilhã, seguiu para a Académica, equipa que disputava a Liga. Foi mais um passo na sua evolução?

A – Isso mesmo. Foi na Académica que conquistei o primeiro título da minha carreira, a Taça de Portugal. Esse dia e essa vitória frente ao Sporting (ndr. 1-0 a 20 de maio de 2012) ficarão para sempre, já que a Académica não ganhava a Taça há 43 anos, penso. Entrei na história do clube e também tive a oportunidade de jogar na primeira divisão, por isso ficarei sempre grato à Académica e ao Pedro Emanuel, que apostou em mim.

MF – Quando é que soube que ia regressar ao FC Porto para a temporada 2012/13?

A - Tinha ido visitar a minha família, não sabia onde ia jogar na época seguinte e recebi um telefonema do Vítor Pereira. Disse-me que iam contar contigo, que ia fazer parte do plantel, e isso para mim foi uma alegria enorme, porque tinha trabalhado muito para esse objetivo, tinha um enorme desejo de representar aquele emblema.

MF – Regressou ao FC Porto, fez 15 jogos, disputou a Liga dos Campeões e foi campeão nacional. Mesmo assim, esperava maior utilização?

A - O FC Porto tinha grandes centrais como Otamendi, Mangala, Maicon e Rolando, que saiu a meio da época, mas eu era jovem, era impaciente, tinha feito mais de 30 jogos pela Académica, era capitão da seleção do Senegal, só queria era jogar. O Vítor Pereira foi honesto comigo, disse-me que eu ia ser o terceiro central e isso já era um grande orgulho para mim, mas não fui paciente, foram erros de jovem e aprendi com isso.

MF – Foi por isso que acabou por sair para o Vitória de Guimarães no final dessa época?

A - No ano seguinte, ficaram ainda o Otamendi, o Mangala e o Maicon. Por isso é que pedi para sair, com o compromisso de regressar se algum saísse. Fui para o Vitória de Guimarães e voltei em janeiro (ndr. Otamendi foi vendido ao Valência), só que pouco depois saiu o Paulo Fonseca e fiquei com o Luís Castro como treinador. No ano seguinte entrou o Lopetegui. Enfim, foi azar para mim, nunca tive continuidade no FC Porto, a oportunidade de fazer novamente uma época completa, ou até fazer duas épocas com o mesmo treinador na equipa principal do FC Porto. Mas vivi períodos muito bonitos ali.

MF - Por exemplo?

A - Por exemplo, fazer parte de uma equipa que esteve tantos jogos sem perder em casa, com o Vítor Pereira. Para aquele FC Porto, qualquer jogo em casa era como se fosse o último jogo das nossas vidas. Só de imaginar que tínhamos ali o Pinto da Costa a ver-nos, não podíamos imaginar sequer perder em casa. Se já com um empate ficávamos chateados, quanto mais se perdêssemos.

MF – E aquele dia da reviravolta frente ao Benfica, como o viveu?

A - Vou contar-vos uma história. Na véspera do jogo com o Sporting de Braga, no mês anterior, eu fiquei no quarto com o Kelvin e disse-lhe que ele ia marcar. Que tinha de marcar um golo, senão eu cortava-lhe o cabelo. Ele entrou e marcou dois (ndr. FC Porto venceu por 3-1)! Nesse dia o Kelvin disse-me para passar a fazer sempre isso, dizer-lhe que ele ia marcar, porque tinha resultado. O jogo seguinte em que estivemos juntos foi precisamente no banco do FC Porto-Benfica.

MF – Voltou a dar-lhe sorte, portanto?

A – Não sei se teve alguma influência ou não, mas sei que eu estava com o Kelvin no banco e disse-lhe: ‘Hoje vais marcar’. Quando o Vítor Pereira o chamou para entrar, eu brinquei com ele, tal como o Fabiano e o Liedson, que depois até foi fazer o passe para o golo. Dissemos-lhe que ele ia ser decisivo. Mas claro que ninguém esperava que o jogo terminasse daquela forma, com aquele remate.

MF – Foi o momento de maior emoção durante a sua ligação ao FC Porto?

A - O que mais me marcou não o golo em si, foi a celebração do Kelvin. Depois de marcar um golo tão importante como aquele, não se esqueceu de nós e veio celebrar connosco. Aquele grupo era muito forte, era como um bloco, um muro. Era igual quem estava dentro e quem estava fora, estávamos todos unidos pelo mesmo objetivo.

MF – Sente que isso continua a ser uma realidade no clube?

A - Vê-se que o espírito do FC Porto voltou com o Sérgio Conceição. O clube passou por uma fase difícil e foi perdendo grandes jogadores como o James, o Falcao, o Hulk, etc. Foi como uma tempestade, mas é preciso ter uma força muito grande para superar isso, para aguentar o mau tempo e recuperar, para voltar a ser campeão. Foi isso que o FC Porto conseguiu com Sérgio Conceição. O mais importante é o grupo. Tem de ser como uma fortaleza, ou como um comboio, em que não importa que carruagens vão lá, mas que todos sigam na mesma direção.

MF – Em 2014 foi emprestado ao Rayo Vallecano, em 2015 ao Fenerbahçe, em 2016 ao Alanyaspor e em 2017 ao TSV Munique 1860. Onde é que foi mais feliz?

A – Vivi bons momentos em todos, mas na Turquia senti-me em casa, no Fenerbahçe tinha ao meu lado jogadores como Souza, Diego, Fabiano, Raul Meireles, Bruno Alves, ficou tudo mais fácil assim. Foi um ano em que cresci bastante, em que me senti muito bem, mas depois correu tudo mal. O Fenerbahçe queria ficar comigo mas não chegou a acordo com o FC Porto. O Porto mandou-me regressar mas também não me queria no plantel, queria meter-me na equipa B. Era algo que não fazia sentido para mim naquela fase da carreira. Se tivesse ficado no Fenerbahçe, a história da minha carreira podia ter sido diferente.

MF – Assinou pelo Rayo Vallecano quando saiu do FC Porto e após duas temporadas o clube foi cedido ao Deportivo da Corunha. Foi uma boa opção para si?

A – Sim, porque o que mais quero é ter prazer em jogar futebol. O Deportivo é o clube ideal para isso mas, infelizmente, três dias depois de ter sido apresentado a competição parou. Fala-se de voltar a jogar à porta fechada mas não é a mesma coisa, isso não é bem futebol, são apenas 22 pessoas a jogar à bola. Falta alguma coisa, como se fosse comida sem sal. O que desejo é que isto passe rápido e que possamos voltar a ter uma vida normal, as nossas rotinas, as coisas que gostamos de fazer. Tudo menos ficar em casa, que é desesperante.

MF – Mesmo tendo saído do FC Porto, sente que continua a ter uma ligação ao clube?

A - É engraçado porque os adeptos do FC Porto continuam a seguir-me, aqui em Espanha vão aparecendo adeptos portistas a ver os meus jogos e isso é muito bom. Perto ou longe, estarei sempre com o FC Porto. Tenho o FC Porto no coração e tenho o sangue azul. Nunca me esquecerei que, se hoje estou onde estou, o devo ao FC Porto.

MF – Regressar à seleção do Senegal também é um objetivo para si?

A - Tenho apenas 29 anos e sinto que ainda posso ajudar a seleção do Senegal, como quando fui capitão da seleção que disputou os Jogos Olímpicos de 2012. Essa equipa é a base da seleção atual. Vou continuar a trabalhar para regressar, tudo depende de mim. Algumas pessoas da Federação têm falado comigo, sei que me têm acompanhado, não vou à seleção há três anos mas acredito que um dia voltarei, só preciso de trabalhar e também preciso de ficar numa equipa de forma regular. Agora estou no Deportivo, espero ficar aqui muitos anos e ajudar o clube a subir à Liga espanhola.

MF – O que recorda dessa presença história do Senegal nos Jogos Olímpicos de Londres?

A - Foi a primeira vez que o Senegal conseguiu o apuramento para os Jogos Olímpicos, foi histórico! Empatámos com a seleção que tinha os melhores da Grã-Bretanha, os ingleses mais o Ryan Giggs, o Craig Bellamy, o Joe Allen. Ficou 1-1 e ainda estivemos perto de ganhar. Depois vencemos o Uruguai do Luis Suárez e do Cavani, empatámos com os Emirados Árabes Unidos e infelizmente acabámos por perder com o México de Herrera, Raúl Jiménez e Giovani dos Santos. Tínhamos uma grande seleção.

MF – Nessa seleção destacava-se, entre outros, um jovem chamado Sadio Mané.

A – Sim, mas eu já conhecia o Sadio Mané antes desses Jogos Olímpicos. Sempre foi um rapaz muito brincalhão e extremamente humilde, uma caraterística que já vem do povo senegalês. Ele tinha o sonho de ser o melhor jogador africano e um dos melhores do mundo, já fazia a diferença, tinha ali um talento em bruto para explorar e só precisava de um bom treinador para isso acontecer. Mantenho o contacto com ele e não me esqueço de uma frase que ele me disse há pouco tempo: ‘Eu sei de onde venho e nunca vou esquecer isso’. Ele tem ajudado o Senegal como os restantes senegaleses que jogam na Europa. Formámos um grupo e temos ajudado porque temos lá as nossas famílias e sabemos que, se o vírus atingisse África como atingiu a Europa, seria muito pior.

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