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Cão fica cego depois de passear nas ruas de Viseu

Utilização de herbicidas pelas autarquias – designadamente com glifosato – tem originado muitas queixas e há empresas de agroquímicos já condenadas nos EUA, até por casos de cancro. Existem alternativas? Existem, pois. E já há municípios a pô-las em prática

Seria apenas mais um passeio matinal, como todos os dias. Lufeng Ye levou Boris à rua, na manhã do dia 23 de setembro. Foi trabalhar a seguir, como sempre. Nesse dia, o shar-pei de dois anos ficou cego. A autarquia de Viseu tinha andado a pulverizar algumas zonas com herbicidas dias antes. O último aviso, porém, datava de 8 de agosto.

Foi quando chegou a casa, cinco horas depois do passeio, que reparou que o cão piscava muito os olhos. “Comecei a entrar um bocado em pânico e limpei-lhe os olhos outra vez com soro fisiológico”. O dever chamava-o e foi novamente trabalhar para o restaurante. À noite, os olhos de Boris já estavam inchados.

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Na manhã do dia seguinte reparei que o cão tinha os olhos completamente brancos e levei-o de urgência ao oftalmologista canino, em Aveiro”.

O diagnóstico é claro: “Os sinais clínicos exibidos e a manifestação aguda são compatíveis com queimaduras de córneas bilaterais por agente químico.”. O médico não conseguiu identificar o agente em concreto, mas a causa da cegueira não deixa margem para dúvidas: algum produto tóxico.

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Ao dar conta da sua revolta no Facebook, o dono do cão - que está registado em nome da cunhada - verificou que havia várias queixas no Facebook de que a Câmara Municipal de Viseu andou a pulverizar herbicidas nas ruas e passeios durante a madrugada nos dias anteriores. A TVI24 recolheu essas queixas.

O dono de Boris acredita que ele “possa ter sido contaminado na zona do Inatel [bairro de Marzovelos] porque havia uma zona com ervas ligeiramente mais altas e daí o contacto mais direto com os olhos”..

É um perigo temível. Conforme foi com o meu cão, podia ter sido uma criança. Temo que, no futuro, possa voltar a acontecer.”

É tal a preocupação dos munícipes que já antes do que aconteceu com Boris tinha sido criado um grupo, no Facebook, com o nome STOP Glifosato Viseu. O glifosato é um componente presente em muitos herbicidas e é utilizado sobretudo para eliminar ervas daninhas nos jardins e ruas das localidade. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o glifosato afeta o sistema endócrino e é uma "provável" substância cancerígena.

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Facebook

O que diz a câmara

Ye Lufeng diz que os avisos da câmara, quando existiam, eram de 8 de agosto (o passeio foi a 23 de setembro), mas regra geral, não havia qualquer tipo de avisos.

Na impossibilidade de a Câmara não utilizar os herbicidas, que pelo menos ponha avisos que sejam visíveis. Uma folha A4 num raio de centenas de metros é quase impossível de ver. Deviam pôr umas placas maiores. No dia em que passei o Boris não vi nenhum aviso. Depois do que aconteceu com o meu cão, voltei a fazer o percurso todo com o intuito de procurar avisos e não encontrei nenhum. Agora, imagine percorrer a zona em passeio, sem esse intuito, é mais improvável e até impossível, vê-los”.

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Contactada pela TVI24, a autarquia respondeu, por e-mail, que “não efetua aplicação de quaisquer produtos fitofarmacêuticos em espaços verdes”. Mas ao mesmo tempo, assume que “na zona de Marzovelos foi aplicado, por uma empresa autorizada a aplicar produtos fitofarmacêuticos em espaços públicos (Vibeiras), herbicida Sereno na madrugada do dia 19/09 entre as 00:00 e as 07:00” e que, “por parte da autarquia”, foi utilizado “o herbicida Roundup Ultra Max”.

“No entanto o local alvo de aplicação fica a cerca de 620 metros de distância do local referido pelo munícipe aquando da exposição inicial”, acrescenta.

No bairro da Balsa, por onde o cão também passeou, o município também reconhece que “foi aplicado herbicida no dia 20/09”.

O passeio que o dono associa à cegueira ocorreu três dias depois. Os avisos da câmara, quando existem, pedem o afastamento dos locais pulverizados apenas durante 24 horas.

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"Avisos para 24 horas não são minimamente suficientes"

A câmara de Viseu faz notar que a ambos os produtos estão integrados na listagem de herbicidas para utilização em zonas urbanas e de lazer emitida pela Direção Geral de Agricultura e Veterinária, “sendo por isso autorizada a sua aplicação na via pública”. É verdade, mas a Quercus garante que “claro que sim, estes produtos são perigosos”.

À TVI24, Alexandra Azevedo, médica veterinária, coordenadora da Campanha “Autarquias sem Glifosato” e membro da Quercus defendeu que, “infelizmente estes produtos [Sereno e Roundup] estão classificados como não perigosos, e alguns [do género] nem têm classificação toxicológica, o que ainda é mais surpreendente”.

Para a especialista, é “completamente incompatível a utilização de pesticidas em espaços urbanos”, uma vez que “contactamos directamente com o produto”.

No caso de Boris, “com o tempo muito seco pode ter havido dispersão” do químico.

Ninguém pode afirmar que foi a causa, nem se pode descartar que não terá sido, o que não podemos afirmar categoricamente é que não foi. Faz todo o sentido haver a suspeita”.

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Uma suspeita reforçada pelo facto de o glifosato se constituir como um perigo, depois de aplicado nas ruas, durante muito mais tempo do que aquele que consta nos avisos. “24 horas não é minimamente suficiente”, garante Alexandra Azevedo.

O glifosato dissolvido na água mantém-se estável pelo menos durante dois anos. Quem nos deu informação foram laboratórios que analisaram. No solo, precisa de pelo menos 90 dias para se metabolizar a metade e os metabólicos também têm ação tóxica. Trata-se de um cocktail de pesticidas e outros químicos. Não é fácil livrarmo-nos do glifosato”.

Boris, recorde-se, foi passear pelas zonas pulverizadas três dias depois.

O município de Viseu garante que “cumpre a legislação estabelecida e coloca os avisos 24 horas antes da aplicação, procedendo à sua retirada, por norma entre 24 a 48 horas após a mesma, por precaução, para alertar os munícipes para a aplicação”.

O produto aplicado não tem qualquer indicação no rótulo pelo que a reentrada é efetuada após secagem do produto. No entanto os avisos permanecem pelo menos 24 horas após tratamento por precaução. A equipa que coloca os avisos não é forçosamente a equipa que retira os avisos, motivo pelo qual algum possa ter ficado eventualmente esquecido (08/08). Aquando da aplicação a 20/09 foram aplicados previamente novos avisos no local que foram posteriormente retirados, tal como acontece regularmente”.

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Aviso do dia 8/8 continuava no local a 3/10

A Quercus entende que, “mesmo cumprindo a lei”, o cuidado na comunicação deveria ser outro. “Nunca vi colocar baias ou fitas para impedir o acesso às áreas em que são pulverizadas”, nota Alexandra Azevedo.

Tem constatado, de resto, muitas queixas de pessoas por esse país fora: morrem rebanhos, cabeças de gado, cães e gatos, até coelhos que são “empurrados” para fora dos eucaliptais, onde são aplicados herbicidas por particulares.

Há alternativas

Existem abordagens mais mecânicas, manuais e mulching (cobertura morta de solo) para o controlo das ervas espontâneas nos espaços públicos. As ervas daninhas, em determinados locais, são também cada vez mais toleradas como parte da paisagem viva da cidade.

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Uma série de cidades europeias já adotou este tipo de políticas, como é o caso de Edimburgo, no Reino Unido; Allerød e Copenhaga, na Dinamarca; e de Münster, Saarbrücken e Witten an der Ruhr, na Alemanha. Já existe, inclusive, a Rede Europeia de Localidades Sem Pesticidas e a Quercus tem tentado, desde 2014, sensibilizar as autarquias portuguesas para aderirem ao “Manifesto Autarquia sem Glifosato / Herbicidas”.

Porém, a freguesia da Estrela, em Lisboa, “é na verdade a primeira, e até agora a única, autarquia portuguesa que assinou o compromisso” a nível europeu, assinala Alexandra Azevedo.

Contactada pela TVI24, a câmara disse que já excluiu "por completo o uso de glifosatos nos espaços públicos da cidade", sendo que enviou esta semana um inquérito a todas as juntas de freguesia "para darem feedback de que produtos que estão a usar". Algumas "demoraram um bocadinho mais de tempo" a adaptar-se à nova política, mas para além da Estrela, por exemplo Alvalade começou a utilizar vinagre com sal nos passeios. 

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Os custos aumentaram significativamente, com a utilização de produtos biológicos, libertos de toxinas, que não contaminam animais e espaços aquifugos. Temos feito a lavagem de árvores com sabões biológicos garantindo que a árvore fica saudável e fica a crescer de forma equilibrada e sustentável".

Há outros exemplos em Portugal:

  • Góis (Coimbra): a autarquia explicou à TVI24 que "as vantagens associadas a esta politica [que começou a ser posta em prática em 2005) são a diminuição do risco de contaminação de solos ou lençóis freáticos pelo uso excessivo ou inadequado destes produtos", realçando, por outro lado, que "face às alterações climáticas obriga a mais trabalho de manutenção dos espaços verdes". Os custos "aumentaram", pelo que autarquia "viu-se obrigada a contratar empresas que pudessem levar a cabo as limpezas e manutenção dos espaços uma vez que os recursos da autarquia são manifestamente insuficientes".
  • Carvalheira (Terras de Bouro), situada numa área natural protegida. O executivo camarário, em funções desde 2013, passou a usar “unicamente meios moto-manuais (motorroçadora) e manuais (enxada)”. No total, são cuidados cerca de 12 quilómetros de caminhos e 1 quilómetro de espaços verdes.
  • Freguesia de Praia do Norte (Horta, Faial, Açores). O executivo camarário que tomou posse em 2009 e decidiu abandonar os herbicidas a partir de 2011, "assim que o stock existente acabou". No ano passado, começou a ser testada uma solução composta por 40 gramas de sais de Epsom (sulfato de magnésio), um litro de vinagre e duas colheres de sopa de detergente Fairy (N.C.) azul no cemitério e na envolvente do edifício sede da junta de freguesia e do pavilhão polidesportivo, segundo a Quercus.“Fazem o controlo quase todos os meses, exceto em janeiro, março e novembro, dado que o clima dos Açores é ameno e húmido o que favorece o desenvolvimento das vegetação”. Há apenas um funcionário para estas funções, pelo que “é difícil assegurar de forma adequada o controlo das ervas, por isso sempre que possível recorrem a programas ocupacionais contratando mais dois funcionários, deste modo cada tarefa de controlo demora uma semana”.

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Há uma maior sensibilização por parte das autarquias, em geral, com a associação ambientalista a destacar o “reforço dos meios mecânicos, motomanuais e manuais e muitas têm adquirido equipamentos de monda térmica”.

No Porto, por exemplo, já não se semeiam relvados (normalmente mantidos “com preparações comerciais que juntam herbicida seletivo e fertilizante”), mas sim prados (misturas de sementes de várias espécies herbáceas).

Entretanto, já aderiu mais uma autarquia, que não consta no mapa: o município de Alvito, no distrito de Beja.

Casos de cancro

O glifosato é, tão-só, o herbicida mais utilizado em Portugal (corresponde a 70% do total de vendas), segundo relatórios de Vendas de Fitofarmacêuticos da DGVA. Ao mesmo tempo, há elevados níveis desse herbicida detetados na urina de portugueses: “cerca de 260 vezes acima do valor permitido para a água de consumo e 20 vezes maiores do que os detetados noutros países europeus”, cita o mesmo documento da Quercus.

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Torna-se impossível ignorar o seu potencial de responsabilidade  [do glifosato] nas dramáticas estatísticas do cancro em Portugal (por muito que as opções políticoeconómicas proclamem a sua inocência)”.

É um problema que extravasa fronteiras. Uma sentença histórica nos Estados Unidos condenou há três meses uma das maiores empresas agroquímicas pelo cancro que matou um jardineiro no país. A multinacional Bayer - que comprou a Monsanto, que fabrica tanto o herbicida Sereno como o Roundup, utilizados em Viseu e noutras autarquias - teve de pagar uma indemnização de 250 milhões de euros.

Ainda esta semana, a SIC noticiou o caso de um jardineiro português, da Câmara Municipal de Castelo de Paiva que diz que contraiu a doença por causa da exposição ao glifosato usado em herbicidas.

A Bayer enfrenta, de resto, litígios decorrentes de mais de 9.500 queixas nos EUA, a maioria de agricultores, que culpam a exposição ao glifosato para terem linfoma de Hodgkin. O próximo julgamento que a empresa vai enfrentar começará entre dezembro e fevereiro.

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No final de setembro, a revista Critical Reviews in Toxicology, que analisa riscos para a saúde decorrentes de produtos químicos, veio reforçar a tese de que a Monsanto escreveu resenhas sem suporte científico para rebater as alegações de que o glifosato presente no Roundup pode causar cancro.

E agora, Portugal?

No último ano, o combate ao glifosato juntou 1,3 milhões de pessoas, numa petição entregue pela Greenpeace a comissários europeus em Bruxelas.

Em agosto, na altura daquela condenação, a Comissão Europeia defendeu que a autorização para os herbicidas com glifosato, válida para os próximos cinco anos, "está baseada em provas científicas" e recordou que os países têm liberdade de proibir a sua utilização.

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Questionámos a Direção-Geral de Alimentação e Veterinária sobre se haverá, num futuro próximo, alguma mudança na listagem de herbicidas para utilização em zonas urbanas e de lazer. Ainda não obtivemos resposta.

Custos na base de decisões políticas

A Quercus defende que “cada vez é mais difícil às autarquias justificarem a utilizarem pesticidas e herbicidas”

É impossível conciliar defesa da saúde pública e do ambiente e aplicar estes produtos. Exposição mais directa, estamos a levar os pesticidas agarrados à nossa roupa, aos nossos sapatos. As alternativas estão cada vez mais disponíveis e demonstradas”.

É tudo uma questão de decisão política. Os pesticidas têm custos baixos, sim, e a associação ambientalista reconhece que, numa primeira fase pode haver aumento dos custos na higiene urbana, mas acaba por compensar. Trata-se também de uma questão de saúde pública.

Daniele Chiaroni, que lidera a câmara de Occhiobello, em Itália, defende-o com unhas e dentes, no documento da associação ambientalista. “A saúde das gerações futuras e um ambiente seguro não podem ser comparados com uma limpeza artificial dos espaços públicos". 

As advertências feitas pela OMS e os casos de cancro que já foram parar aos tribunais reforçam a importância do combate ao glifosato. Um produto tóxico que, como outros, pode ter ainda outras consequências.

Quanto a Boris, o susto prolongou-se durante semanas. As feridas entretanto já sararam e já vê melhor do olho direito; o esquerdo continua baço, mas totalmente cego já não fica.

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