Vamos ignorar a ameaça neerlandesa ao futebol português? - TVI

Vamos ignorar a ameaça neerlandesa ao futebol português?

Sporting-Ajax (António Cotrim/Lusa)

Os Países Baixos estão a aproximar-se de Portugal no Ranking UEFA, mas essa nem é a pior notícia. É que a Liga Neerlandesa tem feito um trabalho a nível de aposta financeira, esforço de nivelamento e melhores políticas fiscais que, esse sim, é assustador. Perante isso os especialistas consideram urgente a Liga Portuguesa reagir.

Os Países Baixos aproximam-se de Portugal no Ranking UEFA e ameaçam roubar o sexto lugar: esse facto, contudo, não significa o fim do problema. Mais do que apenas assumir a sexta posição, a Liga Neerlandesa ameaça ganhar uma distância importante.

Ora para Portugal, perder o comboio do sexto lugar, que na última década tem conquistado com alguma recorrência, significa perder três equipas na Champions em definitivo.

Na base desta ameaça está toda uma conjuntura que não se deve ignorar: o futebol neerlandês tem feito um esforço de crescimento que começa a apresentar resultados.

Um trabalho que passa por vários indicadores: uma maior aposta financeira dos grandes clubes, um esforço de nivelamento da liga doméstica e políticas fiscais mais favoráveis.

O sucesso do Ajax, que ainda há três anos atingiu as meias-finais da Liga dos Campeões e esta época soma vitórias em todos os jogos, com goleadas ao Sporting e ao Borussia Dortmund pelo meio, o sucesso do Ajax, dizia-se, é o exemplo mais evidente do crescimento internacional do futebol neerlandês. Mas não é o único. Muito longe disso.

Vale a pena começar por aí, no entanto.

O Ajax tem sido muito o motor do crescimento interno da Liga. Depois de em julho de 2015 ter sido eliminado nas pré-eliminatórias da Champions pelo modesto Rapid Viena, numa ronda em que apresentou uma média de idades de apenas 21 anos, o que se tornou um recorde na competição, os dirigentes consideraram que o clube tinha batido no fundo.

O que significou uma alteração de política desportiva e financeira. Em primeiro lugar, o Ajax cortou com o teto salarial que impedia o clube de competir no mercado de transferências. Na época seguinte contratou David Neres e Hakim Ziyech, que juntos custaram 33 milhões de euros, e chegou à final da Liga Europa.

Mas isso não chegava.

Dois anos depois foi ao mercado inglês contratar Daley Blind e Dusan Tadic, algo que até então era impensável, também por 30 milhões, e chegou às meias-finais da Champions.

A partir de então, o Ajax estabeleceu um padrão. Nos anos seguintes contratou Quincy Promes, Sebastian Haller, Davy Klaassen, todos vindos das maiores ligas, e a folha salarial aumentou 39 milhões de euros por ano: um crescimento impressionante de 74 por cento.

Perante isto, clubes como o Feyenoord e o PSV sentiram que tinham de ir atrás do Ajax, para não deixar aumentar o fosso em relação ao rival. Ainda em fevereiro último, por exemplo, o PSV anunciou um investimento financeiro de 50 milhões de euros, através de um protocolo com um fundo de parceiros chamado Metropoolregio Brainport Eindhoven. O capital serviu para investir na equipa e para gerar novas fontes de receita relacionadas com o estádio.

«Queremos que o PSV esteja no topo e que nunca se contente com o terceiro ou quarto lugar. Não é essa cultura que queremos que viva no clube», disse o bilionário Robert van der Wallen.

Ora esta disponibilidade para investir dos grandes clubes podia significar um aumento do fosso na Liga Neerlandesa, mas isso não é o que tem acontecido. Dani, antigo jogador do Ajax, continua atento ao que se passa nos Países Baixos e diz que «a Liga não é tão desnivelada como a nossa».

«De vez em quando acontecem goleadas, mas também acontece logo na semana a seguir um clube grande perder pontos, como foi agora o caso do Ajax», adiantou.

João Fonseca, analista de negócios da FIFA e antigo membro do Gabinete Executivo da Federação Portuguesa de Futebol, assina por baixo.

«Os Países Baixos profissionalizaram-se em alguns tópicos mais cedo do que nós. Nós temos mais potencial internamente e isso foi visível historicamente. Mas chega a uma altura em que só o potencial não basta. É imperioso começar a alimentar um pensamento coletivo, coisa que nos Países Baixos existiu e existe, e que nós por cá pura e simplesmente não temos.»

Com efeito, basta ver o caso dos direitos televisivos, que nos Países Baixos são centralizados e apresentam um rácio de desproporcionalidade entre os clubes mais e menos bem pagos de 4. Em Portugal, recorde-se, esse rácio é de 15: o pior das ligas europeias mais relevantes.

A Liga de Clubes está a trabalhar na centralização dos direitos televisivos, mas apenas dentro de alguns anos isso será uma realidade: pelo que vem com vários anos de atraso.

Mas não é só. Desde 2018, os clubes que vão às competições europeias distribuem os prémios financeiros por todos os clubes da Liga Neerlandesa: cinco por cento dos ganhos financeiros com a performance desportiva e cinco por cento dos ganhos financeiros com transmissões televisivas.

«Essa proposta partiu do Van der Saar, que sentiu que o Ajax só podia ser mais competitivo na Europa se fosse mais desafiado a nível interno. Era preciso aumentar o nível da Liga Neerlandesa para poder competir com o Manchester United ou com a Juventus», diz Dani.

«Nesse aspeto os neerlandeses são muito sérios e rigorosos. Não facilitam.»

Mas ainda há mais.

Há, por exemplo, o regime fiscal aplicado no futebol, que é muito favorável para os jogadores estrangeiros. Com efeito, os Países Baixos criaram a «regra dos 30 por cento», através da qual todos os trabalhadores estrangeiros que representem mão de obra qualificada beneficiam de uma vantagem fiscal, sendo que 30 por cento dos seus rendimentos não são taxados.

A Federação fez então um acordo com as autoridades tributárias através do qual todos os jogadores estrangeiros beneficiam dessa regra, sendo considerados mão de obra qualificada. O que serviu para contratar atletas de mais qualidade e aumentar o nível da Liga.

Para além disso, foi abolida a tributação suplementar sobre riquezas e a distribuição dos vários componentes tributários é inversa ao que acontece em Portugal: nos Países Baixos, a maior taxa prende-se com a contribuição para a segurança social (27 por cento), sendo que o imposto sobre o rendimento individual é de cerca de dez por cento. O que significa um sistema social mais forte, inclusivamente para os jogadores reformados, que beneficiam de pensões mais altas.

Em Portugal a Liga tem insistido num regime tributário mais favorável para os jogadores, o que permitiria aos clubes ter mais competitividade internacional, mas até agora sem sucesso.

Por fim, há outro detalhe muito importante na competitividade do futebol neerlandês: o rigoroso controlo das finanças dos clubes. À semelhança do que fez a Liga Espanhola, também os Países Baixos criaram um sistema de controlo económico, que proíbe os clubes de gastar o que não têm.

No caso da Liga Neerlandesa, foi decalcado o sistema de Fair-Play Financeiro da UEFA, que proíbe os clubes de apresentar prejuízo no conjunto de várias épocas. Isto porque os clubes neerlandeses enfrentaram graves problemas de dívidas, o que obrigou a Federação a criar um sistema de controlo, tal como faz Espanha após o colapso dos clubes em 2013.

Em Portugal, porém, não existe este controlo financeiro, existindo apenas a declaração de inexistência de dívidas para efeitos de licenciamento, que como se sabe não é muito rigorosa.

«O futebol português tem três pilares em que precisa urgentemente de apostar. O pilar da sustentabilidade financeira, no qual se inserem questões como a centralização dos direitos e o controlo financeiro dos clubes», começa por dizer João Fonseca, executivo da FIFA.

«O pilar da transparência, e aí estamos a falar da casa de transferências, que precisam de ser mais transparentes, mas estamos a falar também da transparência dos investidores, por exemplo. O terceiro pilar é a educação, porque quanto mais qualificação tivermos nos skateholders, mais caminharemos para a profissionalização. Estes três pilares têm de ser bem trabalhados, para que possamos caminhar para uma profissionalização crescente do futebol português.»

Ora enquanto isso, a Liga Neerlandesa é até agora, e com larga distância, o campeonato que somou mais pontos no Ranking UEFA. Por isso já subiu do décimo para o sétimo lugar e ameaça a sexta posição de Portugal, numa altura em que ainda tem as cinco equipas em prova (sendo que Ajax, Feyenoord e AZ Alkmaar praticamente já garantiram o apuramento na fase de grupos).

Quando o conseguir fazer vai retirar a Portugal a possibilidade de ter seis equipas nas competições europeias (três das quais na Liga dos Campeões).

Pior do que isso, porém, é esta ameaça de ultrapassar Portugal em qualidade, organização e profissionalismo, o que pode ter implicações a longo prazo na pirâmide do futebol europeu. A Liga Portuguesa ainda é hoje mais conceituada do que a neerlandesa, mas até quando?

«Precisamos de rapidamente trabalhar em soluções. Mas não acredito que essa perda da sexta posição seja irreversível, porque nós temos muita qualidade em Portugal, particularmente nos clubes», finaliza João Fonseca.

«Os clubes têm valor e potencial. Precisamos de uma Liga forte, profissional e liderante que os ajude a maximizar esse potencial e que potencie o quase inexistente pensamento coletivo.»

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