1986: Dinamarca-Espanha, a implosão da «Danish Dynamite» - TVI

1986: Dinamarca-Espanha, a implosão da «Danish Dynamite»

Dinamarca-Espanha, 1986

Anatomia de um jogo.

Dois anos antes, no Euro-84 de que os portugueses tão bem se lembram, a Dinamarca tinha sido eliminada nas meias-finais, no desempate por penaltis, pela Espanha. La Roja, que depois perde o título para a França de Platini, Giresse e Tigana, apresenta-se no La Corregidora, em Queretaro, novamente como adversário dos nórdicos. Jogam-se os oitavos de final do Mundial do México.

They were red, they were white, they were Danish Dynamite!

A Dinamarca dos anos 80 é um país a dar os primeiros passos no profissionalismo. É uma equipa de boémios que se diverte entre os bares e os campos de futebol, agora domesticados por um treinador alemão disciplinador chamado Sepp Piontek, e que prepara a primeira presença num Mundial. Uma horda de vikings com talento inato para sair a jogar em drible.

Michael Laudrup, aos 21 anos, já é the next big thing na Europa e, lá à frente, Preben Elkjaer-Larsen (em cima, na foto) é um aspirante a um Van Basten sem que Van Basten já seja tudo aquilo a que aspira. Na sala-de-máquinas estão Frank Arnesencom a mulher a passar mal em casa, com doença desconhecida, mostrou-se emocionalmente abalado no jogo anterior e não evitou a expulsão, falhando o embate com a Espanha – e Soren Lerby, enquanto um rapaz de 36 anos, Morten Olsen, faz de líbero.

Piontek é nomeado responsável por unir todas as pontas soltas e não olha a meios para atingir os fins: sessões táticas de três horas, treinos em altitude com máscaras de oxigénio e o que mais preciso fosse. Nasce uma equipa versátil, a mistura quase perfeita entre força, pulmão e técnica.

Início avassalador

O sorteio junta-a a Escócia, Uruguai e República Federal Alemã no grupo mais complicado da prova, mas nem isso baixou-lhe as aspirações. Elkjaer dá o primeiro triunfo frente aos britânicos, depois os sul-americanos são destroçados por 6-1, com um hat-trick do avançado do Verona, que ainda participa em outros dois golos, e um slalom mágico de Laudrup.

Segue-se a poderosa Mannschat. Piontek pode fazer descansar algumas figuras, mas quer fazer história. Tem a oportunidade de vencer um colosso do futebol continental, vice-campeão quatro anos antes e que também chegará à final nessa mesma prova. No entanto, nesse jogo são melhores os dinamarqueses, de uma ponta à outra do campo, na sua própria interpretação do futebol total. Ganham por 2-0, mas chegarão frescos aos jogos a eliminar?

Três vitórias em três jogos tal como o Brasil, equipa mais concretizadora e no grupo mais difícil, e passaporte para os oitavos de final. São já os favoritos do público.

El Buitre no meio de três dinamarqueses.

Novo drama frente à Espanha

Dois anos antes, nas meias-finais do Euro, os dinamarqueses amaldiçoaram a sorte. Duas bolas aos ferros, e um penálti desperdiçado no desempate por Elkjaer, que nunca falhava. Desta vez, há uma grande dose de culpa própria a juntar ao bolo.

Derrota com a RFA (0-1), e vitórias frente a Irlanda do Norte (2-1) e Argélia (3-0) – é com este currículo que os espanhóis se apresentam em Queretaro. Bem menos impressionante que os rivais, claro. Certamente que a balança do favoritismo começa a cair ainda mais para o lado dos nórdicos a partir dos 33 minutos com o penálti certeiro de Jesper Olsen. E, depois, com o intensificar das jogadas de ataque da equipa de Piontek.

O erro incrível de Jesper Olsen

Olsen faz o inimaginável a dois minutos do intervalo. Do lado direito da sua defesa, passa a primeira linha de pressão imposta por Julio Salinas e assina depois um passe cego para o interior proibido da sua área. Emilio Butragueño está lá e não perdoa. Não costuma. Sofrer um golo antes do intervalo já é mau, sofrer daquela forma é um murro agonizante no estômago.

Com quatro golos, Butragueño é o carrasco de uma das grandes seleções do México 86.

Do 1-2 ao risco total

A segunda parte começa novamente com os dinamarqueses a carregar. É contra a corrente que, aos 56 minutos, na sequência de um canto, Camacho assiste para o segundo golo da Roja, novamente por El Buitre («o abutre»).

Piontek arrisca tudo. Acha que não tem por que esperar e lança mais um avançado, John Erikssen, abdicando de um defesa (Henrik Andersen). A ordem é de assalto total, cego.

Ao destapar na defesa, a Dinamarca fica exposta ao contra-ataque, e de 1-2 passa rapidamente para 1-5, com um penálti de Goicoechea (69) e mais dois de Butragueño, que chega ao poker com mais uma grande penalidade (80 e 89).

A Danish Dynamite implode. A grande seleção, uma das melhores de sempre a não ganhar nada, vai-se desfazer-se aos poucos. Jesper Olsen torna-se réu pela eliminação, Morten está no final da carreira e Elkjaer sofre lesões sucessivas e não chega a cumprir tudo o que prometia.

O destino por vezes é cruel. Outras, e talvez seja o caso, repõe a justiça. Seis anos depois, uma Dinamarca menor, menos explosiva, sem Laudrup, que se incompatibiliza com o selecionador Richard Moeller-Nielsen, vence o Euro-92. John Sivebaek, o lateral-direito, é o único que resta do México.

São os underdogs supremos, convocados à ultima hora face à Guerra na Jugoslávia, a fazer festa. Incrível! Um título que Elkjaer e Michael Laudrup mereciam talvez (muito) mais.

Ah, a Espanha em 1986? É eliminada logo a seguir pela Bélgica.

Os melhores momentos:

FICHA DO JOGO

Campeonato do Mundo, oitavos de final
8 de junho de 1986
Espanha-Dinamarca, 5-1

Estádio la Corregidora, Queretaro (México)
Árbitro: Jan Keizer (Holanda)

ESPANHA – Zubizarreta; Tomás, Gallego, Goicoechea e Camacho; Julio Alberto, Victor, Michel (Francisco, 84) e Caldere; Butragueño e Julio Salinas (Eloy, 46)
Treinador: Michel Hidalgo

DINAMARCA – Hogh; Busk, Morten Olsen, Nielsen e Andersen (Eriksen, 60) Berggren, Jesper Olsen (Molby, 71), Bertelsen e Lerby; Laudrup e Elkjaer-Larsen
Treinador: Sepp Piontek

Marcadores: 0-1, Jesper Olsen (33 gp); 1-1, Butragueño (43), 2-1 Butragueño (56); 3-1 Goicoechea (69 gp); 4-1 Butragueño (80), 5-1 Butragueño (90 gp)
Disciplina: cartão amarelo a Goichoecea, Camacho e Michel; e Andersen

OUTRAS ANATOMIAS:
1953: Inglaterra-Hungria, o jogo que mudou o jogo (e um país)
1958: Brasil-URSS, Garrincha, Pelé e os melhores três minutos da história​
1967: Celtic-Inter, a primeira ferida mortal infligida ao catenaccio
1970: Itália-Alemanha, o jogo do século
1973: Ajax-Bayern, o futebol nunca foi tão total
1974: RFA-RDA, o dia em que a Guerra Fria chegou ao Grande Círculo
1976: Real Sociedad-Athletic Bilbao, o dérbi da bandeira
1977: Liverpool-Saint-Étienne, o milagre que cria quatro Taças dos Campeões
1979: Barcelona-Fortuna Düsseldorf, a primeira tem sempre mais encanto
1980: Argentinos-Boca Juniors, e o melhor guarda-redes chama gordo a Maradona
1982: Brasil-Itália, morre o futebol ou a sua ingenuidade?
1982: França-Alemanha, o jogão que o crime de Schumacher abafou
1986: Argentina-Alemanha, a vitória de uma nova religião
1988: RFA-Holanda, vingança servida fria, no país rival e com golo no fim 
1989: Milan-Steaua, a mais bela estrofe na métrica de Sacchi
1991: Estrela Vermelha-Bayern: drama, frangos, cheiros a guerra e o fim da história
1991: Inter-Sampdoria, o conto de fadas italiano
1992: Leverkusen-Estugarda, três quase-campeões a cinco minutos do fim
1994: Milan-Barcelona, o fim do sonho do Dream Team
1994: Leverkusen-Benfica, empate épico sentido como grande vitória
1994: Holanda-Brasil, o Escrete menos enfadonho e a celebração para a história
1996: Nigéria-Brasil, o génio de Kanu a fazer história para África
1996: Liverpool-Newcastle, o clássico que deu a fama toda à Premier League
1999: Bayern-Manchester United, o melhor comeback de sempre
1999: Arsenal-Manchester United, Giggs feito Maradona e punch line para o treble
2002: Real-Leverkusen, a marca de Zidane e dos Beatles de Madrid
2004: Holanda-Rep. Checa, o futebol de ataque é isto mesmo
2004: Sporting-FC Porto, o clássico da camisola rasgada
2005: Milan-Liverpool, o fim do paradigma italiano
2005: Argentina-Espanha, a primeira página da lenda de Messi
2009: Liverpool-Real Madrid, pesadelo blanco aos pés da besta negra
2009: Chelsea-Barcelona, Ovebro vezes 4, Iniesta e o início do super-Barça​
2010: Barcelona-Real Madrid, a manita ao melhor do mundo​

ANATOMIA DE UM JOGO é uma rubrica de Luís Mateus (@luismateus no Twitter), que recorda grandes jogos de futebol do passado. É publicada de três em três semanas na MFTotal.

Continue a ler esta notícia