"Nunca estivemos tão perto". O que pode acontecer se Putin usar armas nucleares? - TVI

"Nunca estivemos tão perto". O que pode acontecer se Putin usar armas nucleares?

Explosão Nuclear (Getty Images)

Com o exército russo a ser incapaz de travar os avanços ucranianos, o líder russo tem-se desdobrado em ameaças nucleares ao Ocidente. Mas o que podemos esperar? Os resultados de vários estudos são preocupantes

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Perante uma plateia da elite política, militar e religiosa russa, o presidente russo anunciou o combate contra o “colonialismo do Ocidente” e declarou a anexação ilegal de quatro regiões ucranianas. De olhos postos no líder, as figuras que mais beneficiaram dos anos da liderança do antigo oficial dos serviços secretos ouviram a explicação de Vladimir Putin de que os Estados Unidos “criaram o precedente” de utilizar armas nucleares em Hiroshima e Nagasaki e que a Rússia defenderá estas recém adquiridas regiões “com todos os meios” que tem ao seu dispor, abrindo novamente a porta para uma escalada nuclear na guerra.

Mas esta não foi a primeira vez que Vladimir Putin utilizou a retórica nuclear. Uma semana antes, durante o anuncio da mobilização parcial, já tinha alertado que não estava “a fazer bluff”. Estas mensagens são geralmente seguidas e amplificadas pelo antigo presidente russo Dmitri Medvedev, que reforça o que diz o líder russo com expressões como “apocalipse nuclear”.

A verdade é que, menos de 24 horas depois, a Rússia acabaria por perder a primeira cidade estratégica de uma das regiões anexadas, Lyman, na província de Donetsk, com as tropas russas cercadas e derrotadas pelo exército ucraniano. Se a notícia da anexação ilegal destas províncias tinha sarado algumas feridas do fracasso em Kharkiv, quando uma contraofensiva ucraniana apanhou de surpresa o exército russo e obrigou a uma debandada total, a queda de Lyman, enviou ondas de choque um pouco por todo o regime.

“Eu não me recordo de um precedente na história do mundo em que territórios que não são controlados militarmente são absorvidos por um país”, disse o especialista em relações internacionais russo Maxim Yusin, na televisão do seu país, para espanto dos restantes colegas de painel.

A incapacidade demonstrada pelo exército russo em travar a iniciativa ucraniana pode levar a que o líder russo, desesperado por mostrar uma vitória ao povo russo, empregue mesmo o uso de armas nucleares, mesmo com os sucessivos alertas dos Estados Unidos e da NATO de que não vão “ceder à chantagem nuclear” e que o uso de armas de destruição maciça terá “consequências catastróficas para Moscovo. Ao mesmo tempo, a aliança militar emitiu um alerta aos membros de que o submarino nuclear K-329 Belgorod, que carrega o míssil nuclear Poseidon – também conhecido por “arma do apocalipse” -, está em movimento. Mas como seria a guerra nuclear de Putin?

Quando pensamos em armas nucleares o nosso imaginário leva-nos para imagens de destruição total, com ogivas - conhecidas como armas nucleares “estratégicas” - que atravessam continentes em alta velocidade para atingir o seu alvo. Na Ucrânia, o uso de armas nucleares prende-se em bombas de natureza “táctica”. Estas armas têm um alcance muito mais curto do que as “estratégicas” e o seu poder explosivo também é inferior, embora sejam mais poderosas do que as armas que dizimaram por completo as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, no final da Segunda Guerra Mundial.

Imagem da Operação Castelo, uma série de testes nucleares no arquipélago de Bikini Atoll, 1954 (Getty Images)

Se Putin escolher não utilizar estas armas, não será por falta de apoio. Após a queda de Lyman, o líder checheno, Ramzan Kadyrov, apelou na sua conta de Telegram para que a Rússia tome "medidas mais drásticas”, entre as quais “a declaração da lei marcial nas áreas de fronteira e o uso de armas nucleares tácticas". E este pedido pode mesmo ser escutado pelo presidente russo, caso a Ucrânia se torne “uma ameaça existencial”.

“Vladimir Putin tem dois pressupostos para o emprego de armas nucleares. Se forem atacados com armas nucleares ou se tiverem uma ameaça existencial. Isto é, se o exército ucraniano tiver uma capacidade tão grande que leva a uma ameaça nuclear”, explica à CNN Portugal o major-general Agostinho Costa.

Os três caminhos de Putin

O Kremlin manteve a retórica propositadamente vaga acerca do que poderá ser considerado uma ameaça existencial. Porém, os especialistas acreditam que existem três formas de a Rússia utilizar estas armas: a primeira consiste num disparo de ameaça para um alvo não habitado; a segunda para um alvo ucraniano; e a terceira para um alvo da NATO. A utilização de armas nucleares como ameaça pode não ser vista pelo Kremlin como a melhor opção, pois a Ucrânia pode ignorar e continuar a contraofensiva e Moscovo terá de lidar com as implicações políticas de ter utilizado “a bomba”.

Segundo o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, a liderança militar russa, à semelhança do que defende o líder checheno, poderá sentir-se tentada para atingir diretamente alvos militares, como aeroportos, centros logísticos, baterias de artilharia ou centros de comando. Porém, o efeito do emprego destas armas é debatível. Um estudo que coloca um cenário de guerra nuclear entre a Índia e o Paquistão demonstra que uma arma nuclear táctica tem o potencial de destruir “apenas” uma formação com 13 carros de combate. Num teatro de guerra onde o terreno é tão vasto quanto na Ucrânia, os peritos do Instituto estimam que são necessárias cerca de quatro ogivas tácticas para destruir uma brigada ucraniana com cerca de cinco mil soldados.

A acontecer, seria uma escalada ainda maior do que a anexação ilegal de territórios e obrigaria a NATO a responder. Washington já comunicou ao Kremlin através de vias de comunicação privadas qual será a sua resposta caso Putin decida “seguir por esse caminho negro”. A mais provável resposta do Ocidente foi a avançada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros polaco, Zbigniew Rau, que ameaçou com uma resposta “convencional”, mas “destrutiva”, contra as tropas russas na Ucrânia por parte da NATO.

Esse foi o cenário avançado pelo general norte-americano na reserva, Ben Hodges, que também já chefiou as forças americanas terrestres na Europa. O antigo militar diz que a América pode, em caso de ataque nuclear russo, destruir toda a capacidade naval russa no Mar Negro, além das suas bases e aeroportos. Um ataque dessa dimensão representaria um gigante retrocesso para as aspirações militares russas na região, mas também seria uma escalada de grande dimensão que colocaria as duas maiores potencias mundiais em risco de guerra nuclear.

“Se o conflito escalar para um patamar regional, ou seja, com a intervenção de países da NATO: aí sim, haverá o emprego de armas nucleares tácticas. Nunca estivemos tão perto de uma guerra entre o Ocidente e a Rússia”, acredita o major-general Agostinho Costa.

O cenário de intervenção da NATO levanta automaticamente uma questão: estarão os Estados Unidos da América dispostos a arriscar entrar numa guerra nuclear e a pôr em perigo a vida dos seus cidadãos para ajudar um país que não é um aliado militar formal? Apesar de estarem muito longe de ter o arsenal nuclear estratégico que tinham durante o auge da Guerra Fria, o número de ogivas detidas pelos dois é suficiente para deixar o mundo em suspenso.

A nuvem em forma de cogumelo da ogiva "Grable", a primeira arma nuclear a ser disparada por artilharia (Getty Images)

De acordo com o “Nuclear Information Project” da Federação de Cientistas Americanos (Federation of American Scientists, no original), existem 12.700 ogivas nucleares no mundo, com mais de 9.400 guardadas em depósitos militares, prontas para serem utilizadas em aviões, mísseis, navios ou submarinos. As restantes foram “reformadas” e encontram-se a aguardar o desmantelamento. Das armas ativas, cerca de 3.730 encontram-se destacadas em forças operacionais (em mísseis ou bases aéreas, prontas a serem colocadas a bordo de bombardeiros). Destes, aproximadamente 2.000 estão em alerta elevado. Os Estados Unidos e a Rússia possuem a vasta maioria deste arsenal.

E estas ogivas são muito diferentes da “Fat Man” e da “Little Boy” utilizadas contra as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. A ogiva nuclear B83, que compõe uma parte significativa do arsenal americano, é 60 vezes mais poderosa do que a bomba que destruiu Nagasaki. Além disso, um míssil balístico intercontinental Minuteman III atinge os 24.136 km/h no limite e pode levar duas ou três ogivas nucleares. Estima-se que os EUA tenham mais de 400 destes mísseis.

A fraqueza do Ocidente

Quando Ronald Reagan foi eleito presidente dos Estados Unidos, em 1981, vivia-se um período de grande tensão entre potências em plena Guerra Fria. As armas nucleares ainda eram vistas como uma ameaça realista e, por esse motivo, o ator de Hollywood transformado em líder republicano criou a Iniciativa de Defesa Estratégica, um ambicioso plano de defesa que os seus críticos apelidaram de “Guerra das Estrelas”.

Este sistema de defesa nuclear funciona de forma a detetar as ameaças com antecedência para destruir o míssil antes deste atingir o seu alvo. Numa primeira fase, este mecanismo passa por um complexo sistema de satélites que tem como função detetar o lançamento de um míssil intercontinental. Este processo pode demorar cerca de 30 segundos, dependendo do clima.

Assim que vários satélites confirmam a existência de um míssil, a trajetória do projétil é calculada. O alvo, porém, é muito mais difícil de adivinhar. Os mísseis balísticos intercontinentais podem transportar várias ogivas nucleares com alvos distintos pré-programados. O míssil russo Sarmat, por exemplo, tem capacidade de transportar até 15 ogivas capazes de atingir, em teoria, 15 alvos.

Por isso, os primeiros segundos são cruciais. A estrutura de comando militar encarregue da defesa antiaérea tem de tomar a decisão rápida de abater ou não um alvo, podendo atingir o míssil durante uma das suas três fases do voo.

A primeira etapa, a de propulsão, é a fase em que o míssil é lançado e o jato levanta voo. Este período dura entre dois a cinco minutos e é a melhor fase para atingir estas armas, uma vez que é a fase em que o alvo é maior e ainda se encontra a ganhar velocidade.

Na segunda fase, o foguete e as ogivas separam-se. O alvo torna-se mais pequeno e mais veloz, atingindo velocidades de 24 mil quilómetros por hora. Num ataque a solo americano, esta fase duraria cerca de 20 minutos, porém, os especialistas alertam que atingir um míssil nesta fase é como acertar numa bala com outra bala.

Explosão da bomba "Badger", com 23 kilotoneladas, disparada em 1953, no deserto do Nevada, no EUA (Getty Images)

Este sistema de antimísseis chama-se Ground-based Midcourse e os EUA contam com 44 mísseis intercetores localizados estrategicamente nos Estados da Califórnia e do Alasca, com o propósito de defender o seu território continental. Cada um destes mísseis custa uns exorbitantes 75 milhões de dólares, atualmente quase o mesmo em euros.

Os resultados de vários estudos são preocupantes. A American Physical Society (APS), por exemplo, aponta para várias falhas de design, de qualidade e de quantidade que tornam este sistema quase inexistente frente a um potencial ataque nuclear de larga escala.

“Essa ideia de um escudo impenetrável contra um enorme arsenal de mísseis russos é apenas uma fantasia”, alertou Laura Grego, investigadora do Laboratório de Segurança e Política Nuclear do MIT que codirigiu a equipa da APS que escreveu o relatório, em entrevista aos meios de comunicação norte-americanos.

Inverno Nuclear

Num estudo publicado na revista científica Nature, os cientistas do departamento de estudos ambientais da Universidade de Rutgers utilizaram pesquisas anteriores para determinar as consequências de um conflito nuclear no ambiente. Os resultados são reveladores: a fuligem expelida para a atmosfera após a detonação das bombas nucleares teria sérios efeitos na produção de alimentos, uma vez que bloquearia a luz solar direta na superfície da terra, provocando um “inverno nuclear”.

Estes efeitos podem durar quase uma década, mas os efeitos mais fortes seriam sentidos nos primeiros cinco anos.

Uma guerra entre as duas maiores potencias nucleares corre o risco de reduzir a produção calórica do planeta em 90%, quatro anos após o início do conflito. Neste cenário, os cálculos dos cientistas apontam para que cerca de 75% da população mundial passe fome dentro de dois anos. Isto significa que, uma guerra entre EUA e Rússia, mataria muito mais pessoas fora destes países do que dentro das suas fronteiras.

Até mesmo o cenário mais contido de conflito nuclear entre Índia e Paquistão teria consequências catastróficas, podendo reduzir em 7% o total de calorias produzidas a nível mundial, o que seria suficiente para obter resultados catastróficos.

“Por exemplo, a camada de ozono seria destruída pelo aquecimento da estratosfera, produzindo mais radiação ultravioleta na superfície, e precisamos entender esse impacto no fornecimento de alimentos”, explicou a especialista.

A única verdadeira forma de dissuasão nuclear que os EUA têm é, na verdade, o seu próprio arsenal nuclear, com a famosa doutrina de Destruição Mútua Assegurada (com a sigla MAD em inglês). A doutrina assume que cada lado tem armamento suficiente para destruir o outro lado e a si próprio, em caso de ataque. O resultado é uma escalada imediata, com os dois lados a disparar todas as suas armas em simultâneo, culminando na destruição total de ambos.

Se era verdade na Guerra Fria, e hoje continua a ser verdade, não existem vencedores no uso de armas nucleares. “Os dados dizem-nos uma coisa muito clara: devemos evitar que uma guerra nuclear aconteça”, avisou Lili Xia, autora do estudo.

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