O doutor de Coimbra que segue a Académica há 65 anos - TVI

O doutor de Coimbra que segue a Académica há 65 anos

Carlos Aguiar de Melo

Carlos Aguiar de Melo começou a seguir a Briosa aos cinco anos e nunca mais parou: com ela viveu a universidade, a academia e tudo o que Coimbra tem de de mais singular

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«Até ao fim» é uma rubrica do Maisfutebol que visita adeptos que tenham uma paixão incondicional por um clube e uma história para contar. Críticas e sugestões para spereira@mediacapital.pt

Chama-se Carlos Aguiar de Melo, tem 69 anos – «quase, quase 70», corrige –, é médico ortopedista e traz Coimbra tatuada na pele da cabeça aos pés.

Ele próprio, portanto, e como cantava Amália Rodrigues, é uma lição.

«Ser adepto da Académica é ser um sofredor crónico», diz logo para início de conversa, com um sorriso na voz que se sente do outro lado da linha telefónica.

«O meu pai, enquanto estudava, jogou basquetebol no Sport Club Conimbricense e ficou-lhe dessa época um carinho pelo Sport. Mas era adepto da Académica. Não era grande adepto do futebol, gostava sobretudo de râguebi e um pouco de basquetebol, mas apoiava a Académica.»

Foi ele, o pai, que o levou as primeiras vezes ao estádio para ver a Briosa.

«Desde que tenho cinco anos que vou ver a Académica. As primeiras vezes foi o meu pai que me levou. Mas como não gostava muito de futebol, aquilo não lhe dizia grande coisa. Então passei a ir ao estádio com um primo do meu pai, que me levava nessa altura em que era criança.»

Começou a seguir a Académica já lá vão seis décadas e meia, portanto: aos cinco anos já ia ao estádio, aos 11 fez-se sócio, aos 18 entrou na universidade e integrou a Associação Autónoma.

Depois disso nunca mais parou.

Em casa, fora e até no estrangeiro, Carlos Aguiar de Melo vive uma relação de amor para a vida com a Briosa: um amor inexplicável como são os verdadeiros amores.

«A Académica ou se vive ou não se vive, não vale ser pela metade. Começo os jogos um dia antes e acabo muito depois do apito final. Se jogarmos ao domingo, o jogo começa no sábado», refere.

«Ainda na última semana jogámos à quinta-feira, ganhámos, de maneira que foi um fim de semana espetacular, uma pessoa até se sente a deslizar. Quando jogamos à segunda-feira, o fim de semana é um sofrimento, sem saber o que vai acontecer no jogo.»

Ora em 65 anos de vida em conjunto, Carlos Aguiar de Melo já viveu muitos dias felizes e muitos dias infelizes ao lado da Académica. Mas há um jogo, garante, que foi especial.

«A final da Taça de Portugal de 1969», indica.

«Aquilo foi a maior manifestação de sempre contra o salazarismo. Uns dias antes o então ministro da educação tinha dito que não se passava nada em Coimbra, o que causou enorme revolta.»

Recorde-se que em maio de 1969 a Universidade de Coimbra vivia dias tumultuosos, com manifestações, muito repressão e até prisão de vários estudantes que estavam contra a ditadura. A insatisfação em relação ao rumo que tomava a academia conduziu à insatisfação contra o regime.

Pouco depois, e por um feliz acaso do destino, a Académica marcou presença na final da Taça de Portugal, num jogo contra o Benfica. Os estudantes aproveitaram aquela oportunidade, em que o país olhava para o Estádio Nacional, para mostrar a insatisfação e desafiar o regime.

Carlos Aguiar de Melo tinha dezanove anos e foi um dos estudantes que se manifestaram no Jamor.

«Aqueles cartazes chamavam a atenção para o facto de as coisas não estarem bem em Coimbra e foi uma grande surpresa para todo o país. Foi uma atitude de desafio muito corajosa. Até os jogadores do Benfica perguntavam aos da Académica o que aquilo queria dizer», recorda.

«A Académica acabou por perder esse jogo e não quero pensar no que teria acontecido se tivesse ganhado. Acredito que as coisas seriam muito mais graves se a Académica tivesse vencido a taça. Depois disso, voltámos à final em 2012, também numa época marcada por forte contestação ao governo. Dessa vez ganhámos, frente ao Sporting. Curiosamente em nenhuma das finais esteve o Presidente da República, o que foi pena, porque gostava que tivesse visto a contestação.»

Ao recordar estes e muitos outros episódios, Carlos Aguiar de Melo não evita encher o peito de orgulho: orgulho por Coimbra e orgulho pela Académica.

«É um clube como uma história especial, porque está nos momentos mais complicados do país e tem uma participação ativa na vida de Portugal.»

Numa viagem para o presente, o médico ortopedista admite que as coisas mudaram muito. Mas não se queixa: o mundo pula e avança. As coisas evoluem. Os estudantes já não vivem a Académica como era normal há quatro ou cinco década, mas esse é apenas um sinal dos tempos.

«Antigamente os estudantes vinham para Coimbra de capa de batina, porque era a roupa que os pais lhe davam para todo o curso numa época em que não havia dinheiro para mais», recorda.

«Vinham de facto viver para Coimbra. Passavam os fins-de-semana cá, iam aos jogos e experienciavam a academia. Hoje é completamente diferente: os estudantes vêm à segunda-feira, vão embora à sexta, não vão aos jogos, não vivem a Académica e não vivem de facto cá.»

Carlos Aguiar de Melo diz que verifica até um fenómeno curioso: quando vai ao Municipal de Coimbra, ouve mais estudantes a falar espanhol ou inglês do que propriamente português. São alunos de Erasmus, esses sim, a viver em Coimbra permanentemente.

«A vivência da Académica e de Coimbra é muito diferente hoje. Mas é assim, os tempos mudam, as coisas evoluem. O importante é o emblema da Académica continuar a viver o futebol profissional. O que não é fácil, porque o clube vive uma grave crise financeira», sublinha.

«Digo até que a atual direção teve muita coragem. Não é fácil encontrar quem queira meter-se nesta crise financeira tão grave. Vamos esperar que as coisas corram bem, porque lá está, o importante é o símbolo. Ficaria muito triste se a Académica saísse das competições profissionais.»

Carlos Aguiar de Melo vai continuar a correr o país atrás daquele símbolo, porque se apaixonou para toda a vida. Uma paixão que, conta, tem até constrangimentos. Por exemplo, as superstições.

«É um drama», sorri.

«Se um dia vou a um jogo com uma roupa e a Académica ganha, depois tenho de levar a mesma roupa. Ou os mesmos sapatos. Se vou almoçar a um restaurante e ganhamos, da próxima vez tenho de almoçar naquele restaurante e repetir o mesmo ritual. Tudo serve para superstições: roupa, lugar de estacionar o carro, lugar no estádio, posição a ver o jogo, enfim. É uma coisa irracional.»

O médico diz que é uma coisa que só lhe acontece no futebol: na vida não tem superstições.

«Acho que todos os adeptos são um bocado supersticiosos. Isto lembra-me uma história curiosa de quando era criança. Uma vez estava a ver um jogo sentado numa perna do meu pai. A Académica estava a jogar muito bem. Ele, entretanto, mudou-me para a outra perna e a Académica começa a jogar pior», recorda com um sorriso.

«Um senhor que estava ao nosso lado virou-se para o meu pai: ‘O senhor por favor sente a criança na outra perna que estava a correr bem. Desde que a mudou, isto está a correr muito pior’. Portanto, todos os adeptos têm qualquer coisa de supersticioso. O futebol potencia estes comportamentos.»

O futebol e, já agora, a Académica. Ou não fosse este um amor irracional.

MAIS «ATÉ AO FIM»

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