No laboratório do treinador Xavi, o ‘cabezón’ obcecado por bola - TVI

No laboratório do treinador Xavi, o ‘cabezón’ obcecado por bola

João Carlos Pereira trabalhou diretamente com o novo treinador do Barcelona no Qatar. A quatro dias do jogo contra o Benfica, o Maisfutebol revela as ideias e as obsessões do catalão

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Dias de partilha em Doha. Na mesma sala, os irmãos Xavi e Óscar Hernández e o português João Carlos Pereira. Futebol, sobretudo futebol, mas também família, viagens e gastronomia.

A Aspire Academy torna-se no laboratório onde fervilham as ideias do candidato a treinador. Ouve, aprende, também partilha. Anota sugestões, rabisca tentações, identifica as vantagens e os limites dos 3x4x3 e 4x3x3, só para chegar ao objeto definidor do bloco de notas.

A bola.

«O Xavi estava quase todos os dias connosco. Participava nos meus treinos – ou a convite meu ou a pedido dele – e o irmão dele, o Óscar, que lhe geria a carreira, trabalhava mesmo no meu departamento», revela João Carlos Pereira, treinador agora da Académica de Coimbra, ao Maisfutebol.

A poucos dias do decisivo Barcelona-Benfica, nada como juntar os elementos inegociáveis do jogo proposto pelo Xavi treinador à história de uma vida admirável e rara. À atenção de Jorge Jesus e dos responsáveis das águias.

No futebol de 2021 os segredos não existem, é certo, apesar de o pensamento guardar fragmentos só ao alcance de quem o controla. É aí que entra João Carlos Pereira, profundo conhecedor do pensamento – lá está – de Xavi Hernández, novíssimo técnico do seu Barcelona de sempre.

A ligação era muito forte, próxima mesmo. Visitávamos as casas uns dos outros, saíamos frequentemente para almoçar e jantar, falávamos muito sobre futebol, fazíamos workshops privados só com três ou quatro pessoas. Vivíamos diariamente o futebol à nossa maneira.»

João Carlos fica de 2013 a 2019 no Qatar. Xavi junta-se-lhe em 2015. «Ele era futebolista do Al Sadd, embaixador da organização do Mundial de 2022 e conselheiro da Aspire Academy, onde eu trabalhava. O Raúl González, por exemplo, teve as mesmas funções dele», explica o treinador português.

«Posso dizer, com orgulho, que tenho um conhecimento privilegiado sobre aquilo que é a forma do Xavi ver o jogo. E não só. Privei com um homem sério, uma pessoa de valores e de grande humildade. Mostrou sempre interesse em aprender e caiu num contexto onde isso era fomentado.»

Xavi e João Carlos Pereira conheceram-se em 2015

«Disse ao Xavi que ele não devia ser treinador de futebol»

A confiança tem destas coisas. Um amigo faz-nos uma pergunta à espera de determinada resposta e nós, genuínos, dizemos precisamente o oposto. Acontece-nos a todos e acontece a João Carlos Pereira numa conversa determinante com Xavi.

«Lembro-me do dia em que ele me perguntou o que eu achava da possibilidade de ele enveredar pela carreira de treinador. E eu divergi, achei que ele não devia seguir esse caminho», confidencia João Carlos Pereira, apresentando um bom argumento para isso.

«Disse-lhe que a imagem que o mundo tinha sobre um dos melhores médios de sempre seria perdida. A partir dali o que contaria passaria a ser o Xavi treinador. Venceu a paixão pelo treino.»

Esse Xavi, no final do percurso de futebolista e já a pensar pela cabeça de treinador, tem já «convicções muito fortes», embora influenciadas ainda pela «experiência enquanto médio».

A evolução é «rápida e evidente», auxiliada pelos bons auspícios de visitante famosos a Doha.

«O Xavi preparou-se muito bem. Convidava frequentemente treinadores que trabalharam com ele em La Masia e eles davam lá formação. Participei em muitas dessas conversas privadas», recorda João Carlos Pereira, antes de elencar os dois nomes que, provavelmente, mais influenciam o novo treinador do Barcelona: Guardiola e Cruyff, dois adoradores da bola.

Começa tudo por aí, pela bola. O Xavi vê e sente o jogo a partir da bola e de querer dispor da bola – o que é diferente de ter posse de bola. É preciso um critério, um propósito e o Xavi cresceu a ver e a fazer isso. Privou com o Guardiola e com o Cruyff e as conversas deliciosas que teve com eles, principalmente com o Cruyff.»

«O que nos envolve influencia os nossos comportamentos», prossegue João Carlos Pereira, «e o Xavi é obcecado pela bola». «Prefere procurar superioridade em zonas avançadas do terreno e correr riscos ao jogar em igualdade numérica na linha defensiva. É essa a mentalidade dele, influenciada naturalmente por tudo o que viu em Barcelona.»

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«O Xavi sabe seduzir as pessoas para que possam segui-lo»

A Cidade Condal suspira por bom futebol. Da Praça da Catalunha à Cidade Velha, atravessando as Ramblas e o Bairro Gótico, todos acreditam numa versão 2.0 da criação de Pep Guardiola e sus muchachos.

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«O Pep teve a vantagem de ter os melhores cinco futebolistas do mundo nas suas posições naquele momento – excetuando o Cristiano Ronaldo. O Messi, o próprio Xavi, o Iniesta, o Busquets e o Puyol. O Xavi não vai ter isso», adverte João Carlos Pereira.

«Com esses intérpretes tudo era mais fácil. De longe a longe aparece uma geração assim. As expetativas são elevadas e fazem todo o sentido, embora os protagonistas sejam muito diferentes.»

Insistimos na questão, até pela expetativa cristalizada nas publicações catalãs especializadas, do Mundo Deportivo ao Sport. João Carlos Pereira reage cauteloso.

Ainda hoje falei com o Óscar, o irmão do Xavi e adjunto dele, e ele diz-me que as sensações iniciais são muito boas. Sentem que toda a gente está alinhada nas ideias deles, sentem-se muito confortáveis no clube, estão entusiasmados e até um pouco ansiosos pelo jogo de estreia, mas o Xavi precisa de tempo.»

É verdade que a equipa está traumatizada pelos maus resultados e o mau futebol herdados de Ronald Koeman. O antigo central, holandês de classe e pé canhão, nunca foi capaz de perceber o clube onde tantas vezes foi feliz nos anos 90.

«O Barcelona de Koeman jogava e vivia o jogo de uma forma distinta. Vai haver um período em que as ideias conflituam, depois o novo treinador persistirá nas suas convicções e a harmonia acabará por se impor. É preciso assumir que é preciso algum tempo e que os intérpretes têm de estar ao lado de quem chega. O Barcelona é uma equipa em plena transição.»

O Benfica poderá aproveitar esta fase de passagem de testemunho, naturalmente, mas João Carlos Pereira acredita que, «mesmo em pouco tempo», no dia 23 o Barcelona já será o Barcelona de Xavi.

«É difícil impor uma ideia tão vincada num espaço temporal tão curto, mas posso garantir que o Xavi vai fazê-lo. Primeiro porque a mensagem, vinda da voz do Xavi, é muito mais fácil de ser assimilada, porque ele tem de facto autoridade. É um líder discreto, mas que sabe seduzir as pessoas para segui-lo. Depois, porque tem enorme facilidade na comunicação e não pensa noutra forma de jogar. É assim ou assim, não vai fugir um centímetro ao que idealiza porque é um ‘cabezón’, como dizem em Espanha.»

«O Al Sadd jogava em 3x4x3, mas o Barcelona jogará em 4x3x3»

Em três anos como treinador do Al Sadd, Xavi Hernández conquistou sete troféus. Descontando o grau competitivo mais reduzido, os números demonstram que a equipa tinha qualidade e sabia o que queria fazer em campo.

Que Al Sadd, afinal, criou Xavi?

«Quem percebe de futebol vê comportamentos padrão na equipa dele. No Qatar, o Xavi jogava em 3x4x3: apenas três defesas, quatro médios, dois avançados abertos e um ponta-de-lança. Corria riscos e assumia a igualdade numérica atrás, porque sabia que teria 70 por cento de posse de bola», descreve João Carlos Pereira.

«Ele tinha os melhores jogadores do país, olhou sempre para o talento emergente do Qatar – com quem trabalhávamos na Aspire Academy – e foi tendo a possibilidade de recrutar os jogadores que lhe podiam encaixar no que desejava. Teve tempo e recursos para montar a máquina.»

João Carlos Pereira diz mesmo identificar «uma equipa de autor», com «um cunho pessoal evidente» de Xavi Hernández. Algo que será naturalmente replicado no Barcelona.

O rigor, o método, a análise orwelliana a cada um dos seus agentes dentro de campo continuarão inalterados.

«O Xavi tem uma preocupação grande em relação ao perfil dos jogadores que trabalham com ele. No Barcelona vai jogar em 4x3x3, embora possa recorrer pontualmente a 3x4x3. Vai manter a linha clássica do Barcelona, com dois extremos bem abertos e dois médios muito ofensivos a ferir o adversário entre linhas», concretiza João Carlos Pereira, dando depois exemplos muito concretos daquilo que Xavi exige.

Neste Barcelona há ainda muitos jogadores transportadores de bola e o Xavi vê o jogo pelo prisma posicional. Os jogadores têm de guardar a sua posição e a bola é que circula entre todos. Cada um tem de ser paciente e aguardar que a bola entre na sua zona de ação. Vai ser um grande desafio mudar isso.»

Frenkie de Jong é um dos que poderá ter mais problemas na adaptação a este ‘xavinismo’.

«Era típico vê-lo a transportar a bola, a romper a pressão com o transporte e o drible, e o Xavi não pretende isso. Os jogadores movimentam-se, mantendo a estrutura. Oferecem linhas de passe a quem tem a posse, mas é a bola que circula e não o jogador. Sempre com critério, de linha para linha, até criar uma superioridade ou um ‘1x1’. Aí sim, ele dá liberdade total para a criação. Ou então, com médios a receber entre as linhas defensivas contrárias e a tentar desmontar a última linha contrária.»

A estreia de Xavi Hernández está marcada para o dérbi de sábado, contra o Espanhol. O segundo jogo será logo na terça-feira, frente ao Benfica e decisivo para a Liga dos Campeões.

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