João Almeida: «Trouxe 30 camisolas rosa, já não tenho quase nenhuma» - TVI

João Almeida: «Trouxe 30 camisolas rosa, já não tenho quase nenhuma»

A mãe do incrível João Almeida ao telefone: «Um misto de emoções»

Entrevista ao ciclista português que brilhou na Volta a Itália

Durante três semanas, João Almeida pintou Portugal de rosa. Um nome que poucos conheciam deixou todo um país a acompanhar ciclismo. E a sonhar.

Dia após dia, o miúdo que colocou A-dos-Francos no mapa deu provas de uma força inesgotável.

Etapa a etapa, deixou para trás alguns dos maiores nomes do pelotão internacional e colou cada vez mais gente à televisão.

À irreverência que mostrava na estrada e que surpreendeu tantas vezes os adversários, João Almeida exibia após as etapas uma humildade ambiciosa. Queria ganhar, mas nem ele sabia quanto tempo iria aguentar o ritmo que o próprio impunha.

Aguentou. Aguentou. E aguentou. Na primeira participação numa grande volta, o ciclista de 22 anos escreveu o nome na história do ciclismo português. Andou 15 dias com a camisola de líder de uma das provas mais duras do mundo.

Viu-a, depois, fugir-lhe do corpo numa das montanhas mais difíceis de escalar. Mas nem aí deu parte de fraco. Lutou para lá dos limites e minimizou perdas, conquistando definitivamente o reconhecimento dos adversários.

E também ele reconhece que outros foram mais fortes. Ponto. Mais lutas virão e ele está preparado para elas.

Depois de tantas escaladas na Volta a Itália, João Almeida subiu a encosta do Castelo de São Jorge e sentou-se à conversa com o Maisfutebol para uma conversa sobre ciclismo. E superação. Aquela com que conquistou o país.

Nas palavras, manteve-se mais humilde do que irreverente e falou quase sempre na primeira pessoa do plural. Por ele, pela equipa e pelo amigo Rúben Guerreiro, com quem partilhou dias de glória nas estradas italianas.

Mas não deixou de apontar ao sucesso. Até porque como ele próprio diz, «Não é por acaso que se faz quarto lugar num Giro».

Maisfutebol: Já voltou à Terra, ou ainda anda nas nuvens?

João Almeida: Já desci à Terra. Ou melhor, estou ali no meio, entre a Terra e as nuvens (risos).

MF: Mais ou menos no Stelvio, portanto…

JA: Estou no Stelvio, exatamente (mais risos). Com os pés na Terra, mas a cabeça ainda nas nuvens. Mas estou muito satisfeito. Nunca tinha vivido algo assim em termos de reconhecimento, com muitas entrevistas. Mas é o reflexo do nosso trabalho e do nosso resultado. Podemos estar orgulhosos.

MF: Como é que vai contar aos netos, um dia, aquilo que viveu?

JA: Boa pergunta, nunca tinha pensado nisso (pausa). Direi que foi o viver de um sonho. E espero poder dizer que foi o início de uma grande carreira.

MF: Foi uma das principais figuras do Giro, mas nem era para participar na prova. Como é que tudo aconteceu?

JA: A minha equipa teve bastante azar durante todo o ano, com várias quedas graves, e alguns colegas tiveram de ficar ausentes durante vários meses. Devido a isso, tivemos de reorganizar o calendário e por isso acabei por fazer o Giro de Itália. E acho que até correu bem (risos).

MF: Com que estatuto dentro da equipa é que chegou à Volta a Itália?

JA: Cheguei como um dos homens para lutar pela geral. Precisamente porque consigo trepar bem e sempre fiz bons contrarrelógios. Já tinha provado isso este ano também. Por isso, à partida era um elemento para lutar pela classificação geral tal como o [Fausto] Masnada e o [James] Knox.

MF: Mas não ia com o estatuto de líder da Deceuninck – Quick Step. Ou a equipa não tinha um líder definido?

JA: Normalmente, temos. Mas como eu nunca tinha feito uma corrida de três semanas, era a minha primeira vez, não sabíamos se eu conseguiria ser regular. Por isso, fomos com mais do que um líder em vez de apostar tudo em mim ou num dos outros ciclistas.

MF: Agora é fácil apontar para o Giro. Mas em qual das três grandes voltas sente que as suas características encaixam melhor?

JA: Depende, porque todos os anos os percursos são diferentes. Por vezes há dois contrarrelógios, noutras três. Mais ou menos chegadas em alto… Acho que daqui para a frente irei às grandes voltas e depois podemos ver.

MF: Olhando com mais distância, depois de tantos dias como ‘dono’ de duas camisolas – rosa e juventude – foi um grande dissabor não chegar com nenhuma delas até Milão?

JA: Não. Para mim, ter vestido essas camisolas tantos dias já foi um grande sonho. Andar 15 dias seguidos de rosa no meu primeiro grande tour, a defender a camisola com uma grande equipa ao meu lado, foi inesquecível. E quando perdi a camisola tive de manter o foco até ao final para conseguir acabar no quarto lugar.

MF: Quantas camisolas trouxe?

JA: Trouxe bastantes. Trinta camisolas rosa – as da corrida e as do pódio. E as 15 camisolas brancas que recebia no pódio.

MF: Mas já não as tem todas…

JA: Não. Já não tenho quase nenhuma (risos). Tenho andado a distribuí-las, mas tenho de guardar pelo menos uma para mim.

MF: Não ter vencido nenhuma etapa foi um dissabor?

JA: Sim, fica aquele sabor agridoce. Porque fiz sempre segundo, terceiro… Mas isso confirma a minha boa forma física. Mostra que dei o melhor de mim e andei a discutir etapas. Nem eu sabia se conseguiria aguentar as três semanas num bom nível. Fui todos os dias à luta sem medo. Para aprender, crescer e evoluir.

MF: Ir todos os dias à luta significou também atacar quase sempre. É assim que gosta do ciclismo, com um líder que ataca em vez ficar na defensiva?

JA: Sim. É isso que marca o ciclismo. Acho que assim é diferente e tem mais piada. Se eu puder defender-me atacando, é isso que vou fazer. Porque acho que é o melhor. E nós mostrámos isso. Ter iniciativa é sempre positivo até porque mentalmente isso dá-me vantagens perante os meus adversários.

MF: O ataque no final da 16.ª etapa, quando ganhou dois segundos aos concorrentes, foi também para mostrar-lhes que estava forte?

JA: Sim, foi para mostrar que estava ali. A vantagem para o Kelderman também era curta, eram 15 ou 16 segundos. Decidi simplesmente acelerar e fazer um pequeno ataque para ver como eles reagiam. E isso abriu um pouco mais a corrida e deixou-os todos com os olhos em mim.

MF: Sente-se bem a ser o alvo a abater, portanto?

JA: Sim, porque só o mais forte é que ganha. E se for eu o abatido, é porque houve alguém mais forte (risos). Não há cá espaço para arrependimentos.

MF: Durante todo o Giro, só no Stelvio sentiu não ter pernas para acompanhar os adversários?

JA: Sim. Não tive um dia mau, estava em boa forma, só não estava ‘super’, como noutros dias. E sem dúvida que os adversários estiveram mais fortes.

MF: Aquilo é uma montanha que custa só de olhar. Como é subir tantos quilómetros a ver o topo tão longe?

JA: É duro. Eu já conhecia a subida, mas ver o topo, ainda por cima ir descolado da frente, mentalmente é duro. Mas é manter o foco e a concentração total na gestão do esforço.

MF: Como foi ver nessa etapa a ajuda do Rúben Guerreiro, que depois de ficar para trás na fuga, tentou puxar por si nessa subida?

JA: Apanhei-o quase no início da subida, eu já estava a descolar da frente. Ele perguntou-me se estava tudo bem, se eu precisava de alguma coisa. Eu disse-lhe que me estava a controlar um pouco, ia num ritmo muito alto e não conseguia dar muito mais. Como conhecia a subida, sabia que nunca conseguiria aguentar aquele ritmo. Restava ir a sofrer. A fundo, mas a sofrer.

MF: E apesar de tudo, diz que gosta muito daquela subida.

JA: Sim, não guardo qualquer tipo de ressentimentos. Volto a dizer que não tive um dia mau, simplesmente, os outros estiveram mais fortes.

MF: Como foi receber o apoio do seus pais no topo do Stelvio?

JA: Foi muita emoção. Porque tinha sido uma subida muito dura, já tinha descolado e ia a sofrer muito. E ver ali os meus pais, a bandeira de Portugal e os meus antigos treinadores deu-me muita emoção. Até verti umas lágrimas. Foi uma sensação indescritível. Deu-me muita força.

MF: E ter o nome pintado naquela rampa mítica?

JA: Isso só vi depois nas fotos. Porque o foco era tão grande em acabar a subida, que nem reparei no que estava no chão (risos).

MF: Ter tido mais apoio da equipa nas etapas em que ficou sozinho na frente podia ter ajudado a manter a camisola de líder durante mais tempo?

JA: Não. Acho que não faria qualquer diferença. Tal como eu, os outros líderes também não tinham ninguém…

MF: A Sunweb tinha sempre pelo menos o Kelderman e o Hindley, a INEOS também teve quase sempre dois homens…

JA: Sim, mas poucas equipas têm vários atletas para estarem na frente na montanha. Só mesmo os líderes conseguem ser suficientemente fortes. Além disso, os meus colegas, depois de me ajudarem, estando sempre na frente do pelotão, não tinham capacidade para mais. Na minha opinião, fizeram um trabalho espetacular todos os dias. Nós fomos a equipa com mais desgaste. A Sunweb andou sempre na nossa roda, por isso tinha mais energia no final.

MF: No final da 17.ª etapa, o Kelderman, então segundo classificado, disse que a subida não tinha sido suficientemente dura e que por isso não lhe tinha conseguido ‘roubar’ a liderança, como pensava que ia fazer. Como recebeu essa declaração?

JA: Eu ouvi isso e por acaso nem tinha tido um grande dia. Mas senti-me bastante bem. O meu companheiro, o Masnada, impôs um ritmo forte e os nossos adversários ficaram um bocado intimidados. Ele [Kelderman] atacou várias vezes, mas percebeu que nós não estávamos a passar dificuldades e não insistiu muito porque também não devia estar tão forte como queria.

MF: Durante a prova, tinha noção do impacto que estava a ter em Portugal?

JA: Não tinha muito tempo para acompanhar, mas os meus pais mandavam-me sempre as publicações e algumas fotografias do que acontecia em Portugal. Percebíamos que as pessoas estavam a acompanhar bastante. E que vínhamos nas capas dos jornais, o que não acontecia com o ciclismo há tantos anos… Mas só quando chegámos cá é que percebemos o impacto que causámos. O ciclismo é feito dos fãs e ver tantas pessoas a apoiar-nos e a gritar o nosso nome é vibrante. É algo que marca.

MF: E tiveram um impacto grande também nas crianças…

JA: Sim, já várias pessoas me contaram episódios com crianças a vibrar. E esse é o meu grande orgulho: ver crianças felizes por nós e perceber que as marcámos. Porque o futuro são elas e é bom poder ser um exemplo para que façam desporto e andem de bicicleta. Isso é a cereja no topo do bolo.

MF: Qual é a sensação de se ter tornado num exemplo?

JA: É um enorme orgulho, como pessoa e ciclista. Porque da mesma forma que eu via grandes ciclistas e sonhava ser como eles, agora ser essa pessoa que uma criança quer ser, deixa-me sem palavras.

MF: Quem eram as pessoas que seguia como exemplo?

JA: Sempre admirei muito o Chris Froome. Também seguia o Rui Costa. Mas ‘voltista’ internacional, sempre foi o Froome. Gostava muito da personalidade dele, aquilo que ele demonstrava nas entrevistas que dava, por exemplo.

MF: Uma das coisas que os comentadores da Eurosport [canal que transmitiu o Giro] repetiram muitas vezes é que Portugal agora tem um ciclista para provas de três semanas. Confirma essa ideia?

JA: Sim. Eu ainda sou novo, estou a começar, mas cresci e aprendi muito nestas três semanas. Nunca tive uma grande quebra, por isso acho que posso vir a ser um ‘voltista’. Não é por acaso que se faz quarto num Giro. E o meu objetivo é focar-me nas grandes voltas.

MF: O que sente precisar de trabalhar para vencer uma das maiores provas?

JA: Ainda tenho de evoluir e ficar mais forte. Acho que no contrarrelógio já sou bastante bom, apesar de dar sempre para melhorar. No fundo, é aumentar a capacidade física, que é aquilo que interessa mais na montanha. É na alta-montanha que se fazem as grandes diferenças.

MF: Em tempos disse que era «difícil crescer e ser um grande corredor» em Portugal. O que é urgente mudar?

JA: A grande montra é lá fora. Teríamos de ter mais corridas internacionais em Portugal, mais equipas profissionais e talvez uma equipa World Tour. A seleção já faz um grande trabalho, com os meios que tem.

MF: Tem 22 anos e está a começar. Mas nunca correu em Portugal como sénior. Isso é algo que vá querer fazer?

JA: Sim, talvez mais tarde. Mas o grande nível está lá fora e nós queremos estar nas grandes corridas.

MF: Vincenzo Nibali, um dos maiores ciclistas da última década, disse sobre si numa carta que enviou para o jornal Record que durante o Giro os outros ciclistas não sabiam qual seria o seu limite. Você sabia?

JA: Não, ninguém sabia o meu limite. Nem eu próprio. Porque só tinha feito corridas de uma semana, dez dias… Só tentei viver o dia a dia e dar o meu máximo.

MF: Ele disse também que entre os vários jovens qualidade que estão a aparecer, o João vai ser um dos melhores…

JA: Espero que sim. Tenho de continuar a trabalhar porque sem trabalho não se vai a lado algum.

MF: Como é ouvir essas palavras de uma referência da modalidade?

JA: Ele é um dos maiores de sempre, já ganhou as três grandes voltas. Sempre gostei dele e agora gosto ainda mais. Demonstrou que tem uma excelente personalidade e é muito boa pessoa, além de ser um grande ciclista. Ter reconhecimento dele deixa-me sem palavras. É um grande orgulho.

MF: O que é que o público português pode esperar do João Almeida daqui para a frente?

JA: Podem esperar que dê sempre o meu máximo. E vou tentar fazer outros grandes resultados.

 

 

 

 

 

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