«Morrer Como Um Homem»: cinema, ponto final - TVI

«Morrer Como Um Homem»: cinema, ponto final

  • IOL Cinema
  • Edmundo Cordeiro *
  • 12 out 2009, 23:04
«Morrer como um homem»

Nesta elegia de João Pedro Rodrigues não há uma única imagem que não seja, desde logo, para ver. O filme vai estrear em Lisboa nesta semana

Cinema gay? Cinema, ponto final. Trata-se, uma vez mais, do desenvolvimento de um dos motivos temáticos e iconográficos do cinema de João Pedro Rodrigues: a passagem de género. O filme é uma elegia, ocupado pela melancolia e pelo sofrimento calmo de um travesti que, sendo homem, é mulher, e que, sendo mulher, sabe que apesar de tudo é homem e é assim que quer morrer. Ditas assim as coisas, talvez dê vontade de rir. E sim, às vezes dá. No meio da melancolia, há momentos de ironia, de comicidade, subtis, muito controlados, muito assumidos.

O filme existe de uma maneira consistente, íntegra - cheio. Fica-se com uma percepção dessas existências de fronteira - é aí que João Pedro Rodrigues centra a sua atenção - vividas em inautenticidade. Seres que não encontram nem corpo nem espírito, mas que, sim - deve ser essa umas das razões por que João Pedro Rodrigues faz filmes -, são o objecto de uma experiência transcendental, singular, intensa, própria.

Imagine-se alguém que seja objecto de uma canção, da canção, radicalmente: que seja formatado pela canção, vivido pela canção... Qualquer coisa assim. Alguém que vive nessa inautenticidade fecunda, experimental. O travesti sempre me pareceu ser um ser de canção. O travesti canta e imita o cantar. E o próprio filme, a momentos, se encarrega de travestir-se, ele próprio, à maneira de uma técnica fotográfica antiga a que Man Ray chamava «solarization». É muito bonito quando isso acontece: é a imagem que se torna canção.

«Morrer Como Um Homem» é um filme que junta a tudo isto uma calma de imagem a imagem, uma toada, um ritmo próprio. Não há uma única imagem do filme que não seja, em primeiro lugar, desde logo, para ver. E isso não irrita, pelo contrário. É certo que em «Odete», a sua longa-metragem anterior, a imagem assume uma espécie de qualidade que cola aos olhos, hitchcockiana. Mas, mais uma vez, é uma questão de ritmo, ritmo visual, aliado à consistência humana das situações representadas. «Morrer Como Um Homem» aguenta-se mais, desse ponto de vista - pode não trazer tantos prémios como os seus outros dois filmes, mas é melhor filme.

Há coisas que às vezes fazem lembrar «The Trouble With Harry» - certas sugestões cromáticas, bem como o modo de presença do elemento humano na paisagem natural -, mas a imagem, e o filme, tem sobretudo uma qualidade buñueliana, que a sequência final, num belo movimento de composição, sintetiza. E terá cabimento dizer que talvez o filme pudesse ter ido mais longe e ter atingido uma dimensão mais dilacerante, e mais crítica ou iconoclasta, como sucede com alguns Almodôvar e como sucede, em sublime, com alguns Fassbinder? Perguntamos isto porque João Pedro Rodrigues parece querer acreditar em qualquer coisa... De qualquer modo, é um filme íntegro, sintético, justo - tanto para quem goste de cinema como para quem não ande pelo mundo, e pelas imagens, de olhos fechados.

* Crítico de cinema
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