História do debate «quente» como o país pós-revolucionário - TVI

História do debate «quente» como o país pós-revolucionário

Cunhal e Soares juntos no último debate

Em 1975, Soares e Cunhal confrontaram-se na RTP. Em ambiente de grande tensão, três horas e meia deixaram visíveis as marcas fracturantes de um país em ebulição. Para sempre, ficou a expressão «olhe que não, olhe que não»

Portugal vivia, em 1975, tempos «quentes» e conturbados. A instabilidade política, marcada por sucessivos governos provisórios e uma inflação galopante, deixavam as ruas em permanente ebulição.

A 6 de Novembro de 1975, em ambiente de grande tensão, Mário Soares e Álvaro Cunhal defrontaram-se na televisão. Foi o primeiro debate político a ser televisionado e transmitido no país inteiro. Até hoje faz parte da história da RTP. Uma resposta de Cunhal, quando Soares garantiu que o PCP queria instituir uma ditadura em Portugal, vulgarizou-se: «Olhe que não, doutor, olhe que não», entrou no léxico político nacional.

Mais do que um debate, o confronto tornou-se na apresentação de ideologias opostas e na divulgação das mesmas, vividas em tempos de grande politização do país. Portugal vivia na iminência da independência de Angola e prestes a viver o 25 de Novembro. As disputas partidárias internas eram sérias e fracturantes.

Joaquim Letria considera mesmo que a organização deste debate foi «uma tentativa da RTP para que aqueles dois senhores se entendessem, de modo a aliviar o clima radicalizado». Mas como o próprio acrescenta, «a verdade é que o debate não mudou o curso da história: Angola teve a sua independência e o 25 de Novembro aconteceu mesmo». O frente-a-frente durou 3 horas e meia. E permanece na memória dos portugueses. Os «inimigos íntimos» degladiaram-se sem tréguas, num debate decisivo.



Em Novembro de 1975, Cunhal e Soares eram líderes de dois dos grandes partidos portugueses, numa altura em que a sociedade se radicalizava entre esquerda e direita. Falaram durante três horas e quarenta minutos, demonstrando ao detalhe o que os dividia. Até ao fim, foi sempre bem mais do que o que os uniu, em tempos, no ódio ao Estado Novo.

Essa separação ideológica não impediu, contudo, que, em 1986, na primeira eleição de Soares à Presidência da República, Cunhal tenha «engolido um sapo» e apelado ao voto no socialista: «mesmo que seja preciso tapar a cara e fazer uma cruz no quadrado certo». A união da esquerda valeu a derrota de Freitas do Amaral, o primeiro nas sondagens.

No debate, os dois vultos da política nacional discutiram os temas «quentes» que preocupavam a sociedade da época: desde o Movimento das Forças Armadas, passando pelas manifestações de trabalhadores, a estatização da comunicação social, a descolonização e a ideologia socialista.

Acusando Cunhal de querer «transformar o país numa ditadura», Mário Soares recebeu um enigmático «olhe que não, doutor, olhe que não», que até hoje é usada no léxico político português. E no final do debate, Cunhal, sem rodeios, perguntou a Soares qual o caminho do PS: «vai o PS rever o seu sistema de alianças no sentido de deixar as alianças reaccionárias e procurar alianças com as forças de esquerda?»

De forma peremptória, Mário Soares respondeu: «Há duas concepções de socialismo, uma democrática e outra totalitária, que prescinde do valor das liberdades para organizar uma sociedade que se diz socialista, mas que não passa de capitalismo de Estado e de fachada socialista e de repressão política feroz». Ficou marcada para sempre a separação entre os dois líderes e os dois partidos.

Vinte e dois anos mais tarde, Cunhal e Soares voltaram a debater na televisão o futuro de Portugal, numa reedição «morna» do debate de 1975. Na altura, assumindo-se como um «vencido» da revolução, Cunhal surgiu mais «brando» e Soares mais à esquerda.

A União Europeia foi o tema central do frente-a-frente e Cunhal chegou mesmo a reconhecer que não há alternativa ao projecto europeu. Desta feita, foi Soares que repetiu a frase célebre de Cunhal no debate de 1975, negando uma citação de jornal: «olhe que não, olhe que não».
Continue a ler esta notícia