João Ricardo: o empresário que sofreu o primeiro golo de Ronaldo - TVI

João Ricardo: o empresário que sofreu o primeiro golo de Ronaldo

João Ricardo

Guarda-redes no Sporting-Moreirense de 2002 e no Mundial 2006 voltou a Angola e apostou na área de madeiras, derivados e ferragens

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«Depois do Adeus» é uma rubrica dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como subsistem os que não ficam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para o email vhalvarenga@mediacapital.pt.

João Ricardo teve uma carreira recheada de momentos importantes. Esteve em duas subidas de divisão, foi campeão da II Liga pelo Moreirense, fez várias temporadas no escalão principal e foi o dono da baliza da seleção de Angola no Campeonato do Mundo de 2006.

O antigo guarda-redes foi o único atleta a disputar o Mundial como jogador desempregado, um ano após o final da ligação contratual com o Moreirense. João Ricardo foi tudo isso e mais alguma coisa: para a história ficou o Sporting-Moreirense de 2002, em Alvalade, no dia em que Cristiano Ronaldo marcou o seu primeiro golo como profissional.

19 anos após ter sido o guarda-redes que assistiu ao despertar de um craque do futebol mundial, João Ricardo fala com o Maisfutebol a partir de Angola, já na pele de empresário no ramo das madeiras, derivados e ferragens.

«Depois do Mundial de 2006, quis voltar para Angola e joguei no Petro de Luanda até ao final de 2007. Tive convites depois do Mundial para o Irão e a Austrália, mas já tinha 36 anos e quis vir para Angola, a ganhar menos dinheiro mas a perspetivar um futuro melhor. Vinha com sonhos, queria contribuir para a evolução do futebol angolano, mas infelizmente isso não aconteceu», esclarece.

O antigo guarda-redes nasceu em Angola e veio para Portugal com tenra idade, crescendo na região de Leiria. Em 2006, fez o caminho inverso, ainda esteve envolvido em alguns projetos na área do desporto mas acabou por fixar-se numa posição completamente diferente.

«O Petro Luanda, por má fé, aproveitou uma lesão de circunstância e fechou-me as portas. O clube não me deixava jogar mas também não me libertava do contrato. Foi quando terminei a carreira», desabafa, acrescentando: «Um par de anos depois, tive um convite do Benfica de Luanda, para ser treinador-adjunto e depois treinador principal. Os resultados foram excelentes, mas aconteceram coisas que me desagradaram. As pessoas que lideravam o clube foram maldosas e a réstia de esperança que tinha de voltar ao desporto perdeu-se.»

Nesse momento, João Ricardo disse adeus ao futebol como modo de vida: «Se houvesse alguma porta aberta, aí fecharam-se rapidamente. Se não fazes tudo o que os dirigentes querem, parece que és reacionista. Desde aí, nunca mais participei em atividades desportivas e fartei-me por completo. Já nem acompanho os jogos, só pontualmente.»

«Tive de arregaçar as mangas, porque tinha filhos pequeninos, e comecei a apontar baterias para outra vida. Antes de ser profissional de futebol, aí em Portugal, ajudava na empresa familiar ligada às madeiras. Eu tinha aqui alguns conhecimentos e, com a ajuda dos meus pais e do meu irmão que agora é o meu sócio, fundei a Madifer», explica.

A Madifer - comércio de madeiras, derivados e ferragens – nasceu em março de 2009 e João Ricardo teve de superar as adversidades para conquistar o seu espaço. «Nessa altura, não havia produção em Angola. Ainda hoje, pouco se produz aqui. Eu tinha de importar tudo, do meu pai e do meu irmão em Portugal, fazia a receção e depois a venda. Andava com a carga de armazém em armazém, foram quatro anos com a casa às costas», salienta.

Já com uma quota de mercado interessante, o antigo guarda-redes sente-se realizado. «Somos atualmente uma casa de referência e cá andamos, outra vez a crescer lentamente. Há quatro anos levamos aqui com uma desvalorização grande da moeda. Todo o país era um estaleiro enorme, depois veio a desvalorização e ainda nos estamos a refazer, mas não estamos como queremos. A construção parou um bocado, já ninguém faz stocks e é mais difícil fazer-se dinheiro. Mas estamos aqui para ficar», garante.

Aos 51 anos, João Ricardo não pensa voltar a Portugal: «Vou aí uma vez por ano, mas já passo bem sem ir. Tenho aí os meus pais, o meu filho mais velho está também aí nesta altura, mas fora isso, não tenho mais nada aí que me agarre.»

«Agora até abrimos outra empresa, o Escritório, especialista em apoio às empresas, seja contabilidade, recursos humanos, marketing, etc. Eu trato da parte comercial e a minha esposa trata do resto», remata.

«O futebol nunca foi o sonho único de menino»

João Ricardo conseguiu ter sucesso longe do mundo do futebol e um dos segredos passará pela relação saudável que sempre manteve com o desporto.

«O futebol nunca foi o sonho único de menino. A minha mãe jogava basquetebol em Angola e eu ainda joguei dois anos basquetebol. Ali pelos 15 anos, comecei a jogar futebol no Leiria e Marrazes, mas demorei até aceitar ser profissional», recorda.

O guarda-redes habituou-se desde cedo a trabalhar na empresa do pai: «O meu pai era um expert em madeiras, sobretudo em madeiras exóticas. Eu trabalhava com ele, sempre tive abordagens para ir para uma equipa profissional mas eu resisti bastante. Ainda me obrigaram a ir treinar ao Boavista do Manuel José, quase contra a minha vontade, e só dois anos depois é que abracei o convite do Académico de Viseu.»

«O primeiro ano foi extremamente difícil. Eu tinha 23 anos, a equipa subiu à II Liga, eu não joguei. Para além disso, estava habituado a estar com o papá e a mamã. Portanto, foi tudo mau. Depois, a equipa desceu, o orçamento baixou, entrou o mister João Cavaleiro e foi um ano excelente. Passei a titular e subimos de divisão», frisa.

Após cinco temporadas no Académico de Viseu, entre 1993 e 1998, João Ricardo chegou à Liga com a camisola do Salgueiros: «Cheguei lá e vi o Abílio, o Semedo, o Paulinho, gajos que estava habituado a ver na televisão. Eu já tinha 28 anos mas foi quando comecei a ter a certeza que era mesmo profissional. O único problema foi ter apanhado o Jorge Silva.»

«Levei com três anos do Jorge Silva em grande. Era o capitão, foi chamado à seleção e a qualidade estava lá. Quando assim é, temos de reconhecer. Foram três anos em que joguei pouco. Tive ainda uma proposta para renovar por dois anos, garantiram-me que o Jorge Silva ia sair – como saiu, para o Santa Clara -, mas eu tive convites do Nacional e do Moreirense, que estavam na II Liga, e quis tentar relançar a minha carreira», explica o antigo guarda-redes.

Em 2001, já com 31 anos, João Ricardo chegou ao Moreirense e partiu para quatro temporadas a grande nível: «No primeiro ano, fomos campeões da II Liga. Depois, iniciei a segunda época novamente como titular e foi quando sofri o primeiro golo como profissional do Cristiano Ronaldo, em Alvalade. Aliás, marcou o primeiro e o segundo, já no fim do jogo.»

7 de outubro de 2002, Estádio de Alvalade, Sporting-Moreirense (3-0). «Ainda há dias fez mais um aniversário e todos os anos alguém me faz recordar essa história. De cada vez que faz anos ou que o Ronaldo atinge mais um número redondo de golos, lá circulam de novo as imagens do lance, o Ronaldo a passar por toda a gente, eu irritado porque ninguém fez falta, ele a rematar e eu a aparecer no chão», diz o guarda-redes.

«O Ronaldo devia dar-me o dízimo, apareço a fazer figura de urso»

«Fiz os primeiros nove jogos da época, depois fiz uma sub-luxação num treino e nunca mais joguei. Mandaram-me congelar, por assim dizer, para o Roberto Tigrão jogar. Enfim, negócios do futebol. Depois fiz mais duas boas temporadas com o Moreirense na Liga e acabei por aceder ao convite do Oliveira Gonçalves, que insistiu bastante para eu voltar à seleção de Angola», recorda.

Em 2005, com 35 anos, João Ricardo terminou contrato com o Moreirense e ficou numa posição caricata: «Tive um convite do Paços de Ferreira, mas o que me ofereciam não eram os mínimos que eu estabelecia para ser profissional de futebol. Para além disso, sabia que o Peçanha é que ia ser a aposta e não aceitei. Tive ainda convites menores, que me honraram, mas também não aceitei.»

«Entretanto, falei com o selecionador de Angola e ele disse-me para me focar na preparação para o Mundial de 2006. E foi assim, dediquei-me à causa, com treinos bi-diários. Pedi ao Fátima para treinar com eles mas recusaram. Depois recorri ao Portomosense, que era treinado pelo Nuno Presume e a quem tenho de agradecer publicamente. Ele pôs-me à vontade para treinar lá e assim foi durante uma época. Treinava com eles e fazia jogos pontuais por Angola, como a Taça COSAFA para seleções da África Austral», explica.

João Ricardo chegou ao Mundial de 2006 com 36 anos e com o estatuto de único jogador desempregado na competição, depois de um ano sem clube: «A maior alegria foi quando o Akwá marcou o golo ao Ruanda e garantiu o apuramento, aí sim houve uma festa tremenda. Depois, foi fantástico estar no Mundial, sermos apadrinhados por Portugal, subir ao relvado, ouvir aquele barulho todo, aquele ambiente de festa, de alegria. O Mundial correu-me bem e, no geral, Angola esteve de parabéns. Não defraudou as expectativas, pelo contrário.»

 

Angola perdeu pela margem mínima com Portugal (1-0) e empatou com as seleções do México (1-1) e do Irão (0-0), terminando na terceira posição do Grupo D. «Depois do Mundial, o objetivo era voltar a casa e assim foi. Vim para Angola com a minha mulher e os meus filhos pequenos, carregado de sonhos, para poder ajudar a evoluir o futebol angolano, passar um pouco a minha experiência. Infelizmente, isso não aconteceu, mas fica essa experiência para partilhar com os meus filhos.», remata o antigo guarda-redes.

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