«Quando recebi a primeira encomenda, foi como marcar um golo» - TVI

«Quando recebi a primeira encomenda, foi como marcar um golo»

Miguel Vargas foi campeão da Europa de sub-16 em 1995, esteve ligado ao Sporting durante 13 anos mas nunca jogou pela equipa principal: «Ficaram a dever-me essa oportunidade». Depois de terminar a carreira e cortar o cabelo, é vendedor e sócio de uma empresa de engenharia

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«Depois do Adeus» é uma rubrica dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como sobrevivem os que não ficam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para o email vhalvarenga@mediacapital.pt.

Miguel Vargas foi uma das grandes promessas do Sporting e do futebol português nos anos 90. Um dos maiores talentos da formação leonina, o avançado disputou três Europeus e um Mundial pelas seleções jovens da seleção, sagrando-se campeão da Europa de sub-16 em 1995.

Moldado como ponta-de-lança ao longo da adolescência, sem a devida preparação para o que se seguiria, Vargas teve de reinventar-se no futebol sénior, devido à baixa estatura. Foi emprestado a Académica, Lourinhanense, Paços de Ferreira e Sp. Espinho antes de cumprir o último ano de contrato com o Sporting na equipa B: «Ficaram a dever-me a oportunidade de fazer pelo menos uma pré-época com a equipa principal.»

Saiu do Sporting em 2001, cumpriu três épocas no Alverca, passou pela União de Leiria e esteve ano e meio no Estoril antes de decidir emigrar. Aos 27 anos, sentiu que já não ia atingir os patamares imaginados e viajou para Chipre. Representou APOP, AEL, AEP e Ayia Napa até terminar a carreira, em 2013.

O pai desafiou-o a esquecer as chuteiras e a vestir um fato e gravata para trabalhar na Tecnilab Portugal, a empresa que criou em 1978. Miguel Vargas disse adeus à farta cabeleira que era a sua imagem de marca e assumiu-se como vendedor da Tecnilab Portugal no mercado internacional. Atualmente, trabalha na área comercial e faz parte da direção da empresa de engenharia que atua nas áreas de águas potáveis e residuais, energia e indústria, entre outras.

Esta é a sua história.

Maisfutebol – Miguel, como é que o futebol entrou na sua vida?
Miguel Vargas - Comecei no Sporting, com nove anos, com o saudoso mister César Nascimento, depois passando para o mister Osvaldo Silva, dois treinadores que me marcaram imenso. Fiz a minha formação toda no Sporting, até aos 18 anos, e tive contrato com o clube até aos 21. Cumpri a última temporada de ligação na equipa B.

Pelo meio teve um percurso assinalável nas seleções jovens. Qual o momento mais especial?
Fui internacional dos sub-15 aos 21, em todos os escalões da seleção. Diria que o momento mais especial foi mesmo o Campeonato da Europa de sub-16 em 1995, que Portugal venceu. Tivemos de eliminar seleções muito fortes como a Alemanha, a Bélgica que jogava em casa, Inglaterra, Escócia e na final a Espanha. Marquei na meia-final frente à Alemanha e estive ligado ao segundo golo na final, porque saltei com o guarda-redes e a bola acabou por entrar diretamente, após um livre cobrado pelo Vítor Pereira.



No Mundial de sub-17, perderam nos quartos-de-final com o Gana. Como foi esse percurso?
O Mundial foi realizado no Equador, num lugar muito difícil para se jogar, a mais de dois mil metros de altitude. Ainda por cima, fiquei doente antes dos jogos, com uma amigdalite. Começámos com uma derrota frente à Argentina e depois perdemos com a Guiné-Conacri. Precisávamos de vencer a Costa Rica por 2-0 no último jogo, eu estava no banco e estava 0-0 a dez minutos do fim. Os treinadores eram Rui Caçador e António Violante. Só faltava uma substituição e o António Violante disse ao Rui Caçador: ‘Mete o Vargas!’. ‘Eh pá, mas o gajo está morto, não consegue correr’. ‘Mete o gajo, mete, mete’. Lá entrei, fiz o primeiro golo aos 88m, o Adolfo fez o segundo e eu marquei o terceiro aos 90m. Conseguimos passar aos quartos-de-final mas levámos com os calmeirões dos ganeses, que eram fisicamente muito mais fortes e isso fazia uma diferença enorme nas camadas jovens.

Dessa geração, poucos foram os que chegaram ao mais alto nível. Porquê?
Não sei. Da minha seleção campeã europeia de sub-16, temos apenas dois jogadores que fizeram uma carreira ao mais alto nível: Marco Caneira e Hugo Leal. Se passarmos para os sub-18, temos Marco Caneira, Hugo Leal e Simão Sabrosa. Uma seleção que é campeã europeia de sub-16, vice-campeã europeia de sub-18, que pelo meio faz um Mundial de sub-17, merecia outro tipo de oportunidades. Se fosse hoje, pelo menos 50 por cento desses jogadores teria outro tipo de carreiras. O Jorge Cordeiro é um exemplo gritante. Era um avançado do Benfica, que apanhei desde a seleção de Lisboa, e era sempre o melhor jogador, um craque em potência. Eu assinava de cruz que ele seria jogador para fazer uma carreira estupenda, mas conseguiu muito pouco para o talento que tinha.

Já agora, que outros jogadores tinham condições para atingir patamares muito elevados?
Jorge Cordeiro sem dúvida nenhuma, por tudo aquilo que representou nas camadas jovens do Benfica e das seleções. Depois, o Zeferino, que era uma referência, capitão da seleção de sub-16 que foi campeã europeia. Fazia a diferença na frente. Ele jogava na esquerda, eu no centro e o Jorge Cordeiro na direita. O Zeferino era o expoente máximo dessa seleção, mas foi com o Tinaia para o Real Madrid e nunca deu seguimento ao que prometia. Via-o como futuro ponta-de-lança ou extremo esquerdo do FC Porto. Em relação ao Tinaia, foi o melhor que eu vi jogar nas camadas jovens em Portugal, era uma coisa do outro mundo. Joguei também com o Nuno Gomes, central que fazia dupla com o Caneira e que era muito bom de bola, podia ter chegado a outros voos.

E em relação aos jovens do Sporting, consegue fazer um onze com os melhores companheiros de equipa que teve ao longo da formação?
É difícil. Era eu e mais dez, claro (risos). Joguei com dois guarda-redes excelentes, Márcio Santos e Nuno Santos, muito difícil escolher entre os dois, laterais direitos Patacas e Travassos, laterais esquerdos Carlos Fernandes e Gabriel, no centro Caneira, Gomes, Canoa, meio-campo o meu grande amigo João Martins que já não está entre nós, Alhandra, Nuno Assis, Simão Sabrosa, tantos nomes que dariam para fazer duas ou três equipas.

Quando a si, em 1997 é emprestado pelo Sporting à Académica, que estava na Liga. Como foi essa mudança de cenário?
Não foi fácil inicialmente porque em alguns jogos não fui convocado e ficava a pensar: ‘como é possível?’. Fazia golos, fazia assistências, mas faltava-me o equilíbrio defensivo. Imagine um jogador dos nove aos 18 anos a jogar no Sporting, em que havia cinco ou seis jogos a sério, o resto eram goleadas. Eu nem precisava de passar do meio-campo para trás. Na formação, joguei sempre como ponta-de-lança e nos seniores passei para extremo ou médio ofensivo, devido à minha baixa estatura. Só que até ali, eu não defendia. Tive muitas dificuldades.

Mesmo assim, foi utilizado em 21 jogos, marcou três golos mas foi da Académica, da Liga, para o Lourinhanense, que estava na II Divisão B. Não foi um grande passo atrás?
Na Académica, acho que devo a mim próprio melhores números, mas a Académica queria continuar a contar comigo, a título definitivo. Dizem que o Sporting pediu bastante dinheiro à Académica e não aconteceu. Na altura o Sporting tinha a ligação ao Lourinhanense, onde fiz meia-época excelente, com 17 golos em 14 jogos. O Sporting não estava assim tão bem, falou-se até de uma oportunidade para mim na equipa principal, mas não aconteceu. Depois estive no Sp. Espinho e cumpri a última época de contrato no Sporting B. Tive uma fratura no perónio no início da época, mas penso que não fez grande diferença. Se não tinha havido até aí interesse do Sporting em me dar uma oportunidade, não era com 21 anos que ela ia aparecer.

Sente que merecia essa oportunidade no plantel principal?
Sim. Por todo o trajeto que fiz, por tudo o que representei durante muitos anos no Sporting, sinto que ficaram a dever-me essa oportunidade de fazer pelo menos uma pré-época com a equipa principal. Fiz apenas jogos particulares onde até dei boa conta do recado e marquei alguns golos, mas queria pelo menos uma pré-época, uma oportunidade que nunca tive. Sempre fui um jovem em destaque na formação do Sporting e nas seleções nacionais, mas eram outros tempos. Hoje em dia, um jovem faz um ou dois jogos e fala-se de grandes equipas atrás dele. Com o destaque que eu tive nas camadas jovens, se fosse hoje, ia parar onde? Mas pronto, foi o que foi, sinto que podia ter feito uma carreira muito melhor do que aquela que fiz, mas também não foi uma carreira má.

Seguiram-se três épocas no Alverca. Foi uma boa aposta?
Sem dúvida. O Alverca era um clube muito bom, com alguma estabilidade, perto de Lisboa, com um treinador que me conhecia muito bem, o mister Carlos Pereira. Nem sempre joguei mas as coisas foram melhorando, fui conquistando o meu espaço e fiz três anos em Alverca, dois anos na Liga e um na II Liga. Não me importava de ter ficado lá mais tempo. Depois, assinei dois anos pela União de Leiria, num ano em que foram contratados muitos jogadores, mas só o Krpan e o Fábio Felício se impuseram. Diz-se que as contratações foram feitas pelo presidente João Bartolomeu, mas sem o aval do treinador Vítor Pontes, mas são coisas do futebol, nunca sabemos se é verdade ou não. Fiz apenas três jogos e acabei por pedir para sair, fui emprestado ao Estoril.

Em 2006 decidiu emigrar para o Chipre e nunca mais voltou a Portugal. Estava feliz por lá?
Fui pai com 27 anos e achei que a minha permanência em Portugal não ia passar disso, a minha carreira não ia passar daquilo e decidi arriscar. O meu amigo Bernardo Vasconcelos falou no meu nome, convidaram-me e acabei por ir. Fiquei lá sete anos, numa carreira sempre em crescendo, até ao último ano e meio, em que fui prejudicado por algumas lesões. Os maiores momentos foram ao serviço do AEL mas até comecei de forma curiosa.

Porquê?
Quando fui transferido do APOP para o AEL, a meio da época, fui à final da Taça de Chipre para defrontar precisamente o APOP. Acabei por perder a final mas, como já tinha jogado pelo APOP na prova, também fui vencedor da Taça. De resto, fui feliz no futebol de Chipre, eu e a minha família estávamos perfeitamente adaptados. Só que comecei a ter demasiadas dores na anca.

Ainda tem essas dores hoje em dia?
Tenho e sei que o meu destino vai ser colocar uma prótese. Já tive uma artrose na anca e se for jogar um jogo de futebol, mesmo de amigos, no final mal consigo andar. Mas as próteses têm tempo de vida útil, estou a adiar o máximo de tempo possível para só fazê-lo uma vez. Isto já vem de Chipre, numa altura em que senti uma dor e descobriram que tinha dois cortes na cartilagem. Só que já tinha 33 anos, falaram-me em seis meses de paragem e decidi não fazer a operação. Fui aguentando. O clique para terminar a carreira foi quando descobri um DVD de um dos meus jogos, fui ver e percebi a velocidade com que jogava na altura e a velocidade com que jogava naquele momento. Pensei que estava na hora de acabar.

Foi nessa altura que o cabelo comprido também desapareceu?
Isso mesmo. Quando acabei a carreira, antes de começar a trabalhar na Tecnilab, o cabelo foi à vida. Há alturas para tudo, a altura para o cabelo comprido terminou quando a carreira de jogador terminou. Se depois da bola me dedicasse à música, se calhar mantinha. O cabelo comprido era a imagem de marca do Miguel Vargas jogador, não do Miguel Vargas comercial/empresário.

Como é que a Tecnilab surge na sua vida?
A Tecnilab Portugal foi fundada pelo meu pai, Arlindo Vargas, em 1978. Arrancou com o meu pai e um colaborador, mas neste momento somos perto de cem. O convite surgiu porque, como qualquer pai, o meu tem o sonho de dar continuidade ao negócio de uma vida. É uma empresa de engenharia, que atua nas áreas de águas potáveis e residuais, energia e indústria, para citar as áreas mais importantes. A casa-mãe da Tecnilab é em Lisboa, no Restelo, temos um escritório no Porto, uma fábrica em Setúbal, uma fábrica na Covilhã e um escritório no Algarve.

E o que é que o Miguel Vargas faz na empresa?
Entrei para a área internacional da empresa, que não estava tão desenvolvida na altura, para aproveitar a minha experiência de vida. Falo corretamente inglês, alemão, espanhol penso que todos os portugueses sabem, e com a experiência em Chipre aprendi a falar algumas coisas em grego. Neste momento também faço parte da administração, já que sou igualmente acionista da empresa, portanto divido o meu tempo entre a área comercial e a gestão da empresa, a par do meu pai e do Hélder Pereira, outro sócio da empresa, que faz comigo à área internacional.

O futebol está completamente colocado de parte?
Completamente fora. Comecei a jogar à bola com nove anos e acabei com 35, foi praticamente toda a minha vida, mas o futebol é um mundo muito difícil. Não espero voltar. Joguei até há pouco tempo num campeonato amador no CIF, numa equipa chamada Madeira, da qual sou agora treinador, mas é uma coisa a brincar. De resto, claro que a transição foi difícil, houve ali um período de dois ou três meses em que fiquei a pensar se devia seguir este caminho, mas hoje em dia não tenho a mínima dúvida que foi a decisão correta e é isto que quero fazer durante o máximo de tempo possível.

Trabalhando com área internacional, continua a viajar bastante?
Sim, viajo praticamente todos os meses para acompanhar clientes. Ao início, ia muitas vezes lá fora mesmo sem reuniões marcadas para bater às portas e muitas vezes levar com a porta na cara. É difícil mas, quando se conseguem resultados, é como marcar um golo. Quando recebi a primeira encomenda, foi como marcar um golo, foi uma alegria enorme.

E que encomenda foi essa, já agora?
Foi uma encomenda para uma engenharia espanhola, a Amec Foster Wheeler, para um projeto na Irlanda. Foi uma encomenda pequenina, de cerca de 50 mil euros, pequena porque chegamos a ter encomendas de um milhão de euros para este tipo de sistemas, mas se calhar foi a mais saborosa para mim.

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