É verdade que ainda se lhe encontram laivos de irreverência, mas percebe-se como o futebol roubou a inocência a João Félix. Como a juventude deixou de ter lugar no corpo franzino onde, se esquecermos as marcas da puberdade no rosto, a juventude desapareceu demasiado cedo.
João Félix é um jogador feito.
E se dúvidas houvesse, a exibição neste dérbi, em casa do maior rival, dissipá-las-ia. João Félix transborda maturidade e deu uma pequena amostra logo aos 3m, quando recebeu no meio-campo, pressionado por dois adversários foge do meio para a linha arrastando ambos, mas deixa a bola de calcanhar em Pizzi que fica com espaço para progredir, mas não dá o melhor seguimento ao lance.
Os primeiros minutos do jogo mostraram um miúdo que não se atemoriza com meninos maiores. Nos primeiros 15 minutos, João Félix disputou lances aéreo com os jogadores do Sporting - Wendel (minuto 1), Gudelj (minuto 13) e André Pinto (minuto 14). Não ganhou todos, mas não deixou de os procurar.
Mas é com a bola à flor da relva que o futebol de Félix germina para outros patamares. Seja no ataque, seja no auxílio à defesa. Por isso o vimos a reclamar com Grimaldo logo aos 4m porque o lateral esquerdo demorou demasiado tempo a soltar a bola, quando Félix estava na cara de Renan. O lateral espanhol optou por levantar ao segundo poste quando ali ao pé tinha o camisola 79 a surgir solto.
A fechar o primeiro quarto de hora da partida, a primeira amostra de maturidade de João Félix: recuperação de bola junto à área do Benfica e progressão em velocidade junto à linha lateral do lado direito, aguentando a pressão de dois adversários; ao chegar junto da linha de meio-campo, trava a progressão, deixa batidos os dois jogadores do Sporting e joga calmamente atrás para a equipa começar a construir sem pressão.
Se é com a bola no chão que a mais recente joia do Seixal brilha de forma mais intensa, é a jogar entrelinhas que se percebe a inteligência acima da média do jogador de 19 anos. A técnica apurada ajuda muito, claro, mas antes de jogar com os pés, João Félix desenha tudo na cabeça. E fá-lo muito mais rápido do que a maioria dos adversários, o que lhe permite ganhar vantagem à partida.
Um exemplo? Minuto 22.
João Félix foge da marcação dos centrais do Sporting, recua para perto da linha de meio-campo, onde recebe de peito um passe de Rafa; apesar de estar de costas para a baliza, Félix percebe que Seferovic foge pelo corredor esquerdo e, ao rodar, coloca a bola redondinha no pé do avançado suíço… que recebe mal e fica a reclamar consigo mesmo.
Seria, porém, no minuto seguinte, que o génio de Félix iria surgir em todo o esplendor.
João Félix surge uma vez mais entre a linha de defesas e a de médios do Sporting, recebe de pé direito um passe de Pizzi, dá dois passos e, já de frente para a baliza, com um pequeno toque com o pé direito e uma simples finta de corpo, tira André Pinto do caminho, puxando a bola para o pé esquerdo; com caminho livre – e a tal inocência perdida – João Félix esquece os 19 anos, abstrai-se do ambiente proporcionado por um estádio com mais de 40 mil pessoas e, como faria no recreio da escola caso tivesse tido vida para isso, remata de pé esquerdo ainda antes da meia-lua da área, com a bola a entrar rasteira junto ao poste da baliza de Renan.
O momento seguinte é de comunhão num abraço pelos amigos mais velhos, todos rendidos ao talento do miúdo. E ninguém parece ficar chateado com ele quando, momentos depois, com recurso ao VAR, o árbitro anula o lance. Por culpa de Félix, que no início do lance tinha disputado com demasiada vontade uma bola com Wendel.
Siga a bola, que há mais truques para mostrar.
Nos minutos seguintes, Félix paga a ousadia mostrada. No espaço de dois minutos, sofre duas faltas de André Pinto a meio do meio-campo e disputa uma bola de forma mais intensa com Bruno Fernandes junto à área do Sporting. Faz falta sobre o médio dos leões e, já com o jogo parado, é derrubado de forma ostensiva por Gudelj.
Do lance, resulta uma discussão entre Pizzi e Bruno Fernandes, Félix escapa do cartão que podia ter visto por jogo perigoso sobre o número 8 do Sporting, Gudelj também sai de fininho do lance e os amarelos são para Pizzi e Bruno Fernandes.
Com a confiança em alta, Félix cresce no jogo e, aos 36m, surge na área a rematar com a ponta da bota, meio de recurso, após passe de Seferovic.
No minuto seguinte, em zona frontal, tira dois adversários do caminho, mas perde a bola para um terceiro que surge na dobra.
Avisos suficientes? A resposta vem em forma de golo aos 38m.
Com a bola em Samaris sobre a direita, João Félix sai da zona de fora de jogo e coloca-se entre Coates e André Pinto, rodando em direção à baliza quando a bola chega aos pés de Seferovic. O suíço lê bem o espaço que existe entre os dois centrais e coloca para a corrida de João Félix que recebe de forma perfeita, encara Renan, espera que o guardião escolha o lado para cair e pica-lhe a bola por cima do pé de apoio.
Calejado pelo que acontecera 15 minutos antes, Félix quase não festeja, com receio que o golo lhe fosse retirado novamente. Cerra os punhos pouco depois, enquanto ainda se aguarda pela decisão final, mas a celebração é muito contida. Culpa da tecnologia que funciona como um anti-climax. Mas desta vez, há mesmo motivo para festejar.
No futuro, quando tiver tempo para saborear a história que está a escrever, João Félix pode contar que aos 19 anos já tinha marcado em dois dérbis.
Mas isso fica para depois, que ainda há muito para jogar.
Até ao final da primeira parte, as ações de João Félix são sobretudo defensivas, que este menino não se esquece das suas obrigações.
O dono da bola… e do jogo
O segundo tempo começa no pé direito de Félix, que dá o pontapé de saída. Na segunda vez que toca o esférico é derrubado em falta por Jefferson, junto à linha lateral.
Do livre, nasce o cruzamento para Rúben Dias apontar o terceiro golo do jogo.
Aos 51m, algo inédito até então: João Félix perde um duelo com os centrais do Sporting, não conseguindo levar a melhor sobre eles depois de receber de costas para a baliza e tentar furar entre Coates e André Pinto.
Com o Benfica a vencer por dois golos de diferença, Félix afasta-se da área e surge mais vezes em zonas recuadas, quase sempre sobre a direita. É dali que tenta servir André Almeida primeiro, Seferovic, depois, em jogadas que se perdem.
Na vez seguinte que aparece em zona de finalização, porém, é para fazer a diferença. Aos 72m, percebe o movimento de Grimaldo ainda perto do meio-campo, coloca-se uma vez mais entre Coates e André Pinto, recebe de frente para a baliza, entra na área e, ao desviar de Renan, acaba rasteirado pelo guarda-redes do Sporting. Penálti que Pizzi aproveita para fazer o 4-1.
Três minutos depois, o génio de João Félix novamente à solta no relvado de Alvalade. O 79 recebe a meio-campo, progride com bola e solta à direita em Pizzi, dando continuidade ao movimento para, depois de Seferovic rematar ao poste, fazer o único erro que se lhe pode apontar neste dérbi.
Com tempo para tudo e sem Renan na baliza, precipita-se no remate de pé esquerdo que sai muito por cima.
Imperdoável? A resposta surge no momento seguinte, quando a placa com o seu número sobe na linha lateral. Os adeptos do Benfica fazem-se ouvir e assinalam com muitos aplausos a saída de campo do dono da bola.
Ele, do alto da humildade, deixa-a em campo para os outros poderem continuar a brincar.
Faltam pouco mais de 15 minutos para o apito final e só depois deste soar voltamos a ver a imagem de João Félix nas câmaras da transmissão da Sport Tv.
O rosto imberbe, o aparelho nos dentes e o sorriso de menino. Aí voltamos a lembrar-nos que o dono deste dérbi é, afinal, um miúdo. E por muito que o futebol que joga mostre que lhe roubaram a inocência para a substituir por maturidade, o sorriso de menino não lho conseguem roubar.