Afonso Figueiredo: «No Aves nunca recebi um salário ao dia certo» - TVI

Afonso Figueiredo: «No Aves nunca recebi um salário ao dia certo»

Entrevista ao lateral esquerdo, internacional olímpico e capitão dos avenses na temporada de todas as dificuldades. «Tivemos de recorrer às poupanças para sobreviver.» - Parte I

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Há quatro anos, por estes dias, Afonso Figueiredo dava os primeiros passos no Rennes e na Ligue 1. Para assinar um contrato de quatro temporadas com os franceses, o lateral esquerdo recusara um convite do Benfica e outras abordagens de importantes clubes europeus.

O tempo passou, Afonso voltou a Portugal e na época 2019/2020 foi o capitão do Desportivo das Aves. Aos 27 anos viveu as experiências mais absurdas de uma carreira já com muito para contar e sentiu na pele o que é ter de contar os dias para receber um salário que nunca chegava no dia certo.

A entrevista ao Maisfutebol é um testemunho profundo sobre o futebol profissional real em Portugal, um depoimento de rara abertura e que mostra as dificuldades inaceitáveis vividas por um plantel da I Liga. Afonso resistiu até ao fim, em nome do respeito por um clube com 90 anos e pelo símbolo que transportava no braço esquerdo.

Já após o final da temporada, o internacional sub23 português rescindiu contrato e partiu para um retiro espiritual no Algarve. É um jogador livre e apetecível no mercado de transferências.

PARTE II: «O lateral que rejeitou o Benfica em 2016 está bem vivo»

Maisfutebol – No verão passado trocou o Rio Ave pelo Desportivo das Aves. Consegue explicar essa sua opção?
Afonso Figueiredo – Não foi bem uma opção minha. Surgiu essa possibilidade. O meu empresário ligou-me quando eu já estava de férias. Eu nem esperava sair do Rio Ave, porque tinha mais um ano de contrato, mas a verdade é que lá não joguei tanto como queria [15 jogos oficiais em 2018/19], até pela chegada do Fábio Coentrão ao clube. Não foi o ano que eu esperava para o meu regresso a Portugal. No Aves estava o mister Augusto Inácio e o meu empresário disse-me que ele me queria mesmo muito. Quando fui para o Rio Ave, fui mais por decisão do presidente e não do treinador. É sempre mais aliciante quando é o próprio treinador a desejar o jogador, porque é o treinador que decide quem joga. Penso que o mister Inácio se lembrou de mim depois do bom jogo que eu fiz pelo Rio Ave contra o Aves. Senti-me desejado e aceitei assinar por três temporadas com o Desportivo das Aves.

Que clube encontrou ao chegar à Vila das Aves?
Foi estranho. Eu fui dos primeiros reforços a chegar e ainda havia muitos atletas da equipa de sub23 a treinar com o grupo principal. Da equipa que eu tinha visto no ano anterior, acho que só estavam o Carlos Ponck, o Falcão, o Mato Milos e o guarda-redes Beunardeau. Depois também o Rúben Oliveira. Ou seja, encontrei uma equipa desconhecida e estranhei a falta das caras do passado. Foram entrando muitos reforços, malta que eu não conhecia. Foi um início estranho por causa disso.

O Afonso foi logo escolhido para capitão de equipa, apesar de estar a começar no clube.
Essa responsabilidade surgiu com a saída do Carlos Ponck. Ele saiu uma semana antes do primeiro jogo oficial, para a Taça da Liga, e seguindo a ordem normal o novo capitão seria o Falcão. O mister também o tinha escolhido, mas o Falcão tem uma personalidade muito própria e disse logo que não queria ser capitão. É um excelente rapaz, mas disse que não queria assumir essa responsabilidade. O mister, o staff e os meus colegas escolheram-me a mim. Cada um disse no balneário o nome que entendia ser o melhor para o cargo de capitão. Para surpresa minha, fui eu o eleito.

Nessa altura, nunca imaginou que mais à frente teria de dar a cara pelo grupo e combater uma série de injustiças.
Foi um presente meio envenenado. Foi uma honra, foi a primeira vez que fui capitão como futebolista profissional, senti-me feliz por estar a jogar e por ter um treinador aparentemente feliz comigo, mas mais tarde a braçadeira tornou-se num peso demasiado grande para mim. Vivemos episódios inexplicáveis, mas é nas dificuldades que crescemos. Ter sido capitão num contexto tão difícil deu-me bagagem para assumir qualquer desafio que me apareça.

Os resultados desportivos não apareceram e o Augusto Inácio saiu do Aves. Nessa altura os problemas eram só desportivos ou também já financeiros?
Bem, ao início as coisas pareciam-me bem encaminhadas. Jogámos bem no Bessa, ganhámos em casa ao Marítimo e a equipa estava a jogar com qualidade. Depois houve um jogo em Vila do Conde em que nada saiu bem à equipa e isso tornou-se numa bola de neve. A acumulação de maus resultados desportivos criou posteriormente uma enorme instabilidade na estrutura. Isso foi agravado com a saída do mister Augusto Inácio e financeiramente as coisas começaram a descambar.

Quais foram os primeiros sintomas destes problemas financeiros na SAD do Aves? Quando começou a sentir que as coisas não estavam bem?
Na altura em que começámos a perder demasiados jogos, sentimos que estávamos a ficar sozinhos. Não é fácil explicar, mas sentimos. A falta de diálogo, a ausência, não estávamos a ser capazes de dar a volta. Com o mister Leandro [Pires] as coisas pareciam estar a melhorar, estávamos a jogar bem, mas a verdade é que não ganhávamos. Sentimo-nos cada vez mais abandonados nesta luta.

Os elementos da SAD mais próximos da equipa eram a senhora Estrela Costa e o senhor Wei Zhao ou havia alguém que vos acompanhava de uma forma mais permanente?
Eram eles os dois, sim. Depois havia uma pessoa que fazia o elo de ligação entre o plantel e a direção da SAD, o [José] Vieira. Era ele que, em algumas situações, dava a cara pela SAD.

As notícias de salários em atraso surgiram em janeiro, no mercado de transferências. Foi essa a primeira vez que a SAD falhou convosco?
Não, não. Vou ser sincero: não me lembro de ter recebido um salário mensal no dia certo. Não me lembro. Ao início as coisas até fluíram. Os pagamentos foram feitos, embora nunca ao dia certo. Mas até os prémios de jogo estavam a pagar. As coisas começaram a atrasar cada vez mais. De um atraso de uma semana passou para duas, de duas para três e de três para um mês. A partir de janeiro, sim, tudo piorou e passámos a ter quase sempre dois meses de salários em atraso.

Enquanto capitão de equipa, o Afonso recebeu alguma explicação da SAD para esses atrasos sucessivos?
Não. Em janeiro disseram-nos que o dinheiro estaria congelado na China, de onde é o presidente da SAD, devido às restrições impostas pela pandemia. Esse era o argumento apresentado ao plantel. Diziam que a SAD tudo estava a fazer para regularizar as coisas e davam essa suposta explicação.

E vocês foram aguentando porque queriam jogar.
Certo, é isso mesmo. Tenho de enaltecer o comportamento dos meus colegas. Fomos bons profissionais até ao fim. Nesta situação teria sido muito fácil largar tudo e ir embora. Eu próprio afirmei que se estivesse no estrangeiro a passar por uma coisa semelhante, muito provavelmente também desistia.

Quando a Liga foi interrompida em março, as coisas ficaram ainda piores?
Lembro-me de estar em casa e pensar: ‘e agora, isto será melhor ou pior para nós?’. Nós estávamos numa situação má, pensávamos mesmo fazer um protesto público no jogo seguinte contra o Belenenses, para demonstrar ao exterior que a nossa situação era aquela. De repente… estávamos em casa, sem saber o que fazer, ainda sem dinheiro. Decidimos falar com o Sindicato de Jogadores. Era o desnorte total. Não sabíamos para onde ir. Falávamos entre nós, mas não havia respostas para nada e isso tornou o nosso confinamento ainda mais complicado.

O Afonso recebeu algum apoio por parte da SAD nessa fase do confinamento ou ficou mesmo por sua conta?
Mais à frente, quando estávamos em casa já há algum tempo, uma pessoa da SAD perguntou-nos o que precisávamos, nós respondemos e… esse apoio nunca apareceu. No meu caso, bem, fui investindo em material de treino e passei a andar muito de bicicleta. Combinava com os vizinhos do meu prédio e íamos andar uma hora. Também comecei a correr no Parque da Cidade. Tinha mesmo de sair de casa, passei a ir eu ao supermercado para proteger a minha mulher e o meu filho que ainda é muito pequeno.

Quando voltou à Vila das Aves, o panorama era o mesmo? Algum abandono, alguma ausência por parte da SAD?
Era igualzinho. O plantel e o treinador Nuno Manta Santos sempre estiveram em sintonia, é preciso ressalvar isso. Tivemos muita sorte, porque o nosso treinador estava ali para ajudar-nos e defender-nos. Para perceberem melhor isto, posso revelar que o Nuno Manta pagou do próprio bolso aulas de yoga a todo o plantel. Duas vezes por semana, durante dois meses. E isso fez-nos muito bem, deu-nos uma serenidade que não tínhamos antes para lidar com os problemas. Também fomos a última equipa a fazer os testes de diagnóstico à covid-19, mas depois os nossos médicos explicaram-nos os procedimentos e as coisas foram normalizadas.

Tiveram algum caso positivo no plantel?
Sim, um caso. O Reko acusou positivo. Nunca teve sintomas, ficou bem. O nosso departamento médico foi fantástico. Todos impecáveis, sempre presentes, geriram muito bem as coisas. Só o Reko é que teve covid-19 e não houve contágios. Nós até brincávamos com o Reko e dizíamos que ele tinha voltado melhor (risos).

O departamento médico também foi demitido pela SAD na fase final da época.
É verdade, mas os médicos ficaram connosco nos últimos jogos e não sei como é que essa questão ficou. A verdade é que todos eles estiveram com a equipa até ao fim.

Nesta altura, quantos meses de salários é que a SAD deve ao plantel?
Três meses. Havia coisas anormais. Alguns jogadores recebiam no dia 10, outros no dia 20, uns tinham contrato de dez meses, outros tinham de 12, mas quase todos têm ainda três meses por receber. Eu tive de ser capitão, advogado, contabilista, e sei que alguns funcionários do clube – as pessoas da residencial, os roupeiros, os fisioterapeutas – têm cinco meses em atraso.

Algum colega passou por dificuldades no acesso às coisas mais básicas? Comida, casa, carro, eletricidade…
Sim, infelizmente sim e isso era das coisas que mais mexia comigo. Vi colegas meus estrangeiros a passar por isso e eu colocava-me no lugar deles. O que sentiria eu se passasse por isto num país que não é o meu? Portugal é um país evoluído, tem tanta coisa boa e depois há situações destas. Somos campeões europeus de futebol, temos treinadores fantásticos, os melhores jogadores do mundo de futebol e futsal, e estamos a dar esta imagem do país a todo o mundo. Isto não foi só um problema do Aves, foi um problema da Liga. Não é suposto um futebolista profissional passar por dificuldades, ter falta de acesso às necessidades básicas. Posso dar um exemplo concreto, um dos que mexeu comigo.

Um caso de um colega seu estrangeiro?
Sim, não vou revelar o nome por respeito, ele pode não querer. Mas ele deixou de ter dinheiro para pagar o carro e a gasolina. Passou a ter de fazer tudo a pé. Tinha de andar um quilómetro e meio para ir ao supermercado e depois voltar carregado para casa. Isto não faz sentido, é surreal. Houve dificuldades enormes. Outros tiveram de recorrer às poupanças, aquilo que à partida seria para estar quietinho até ao fim da carreira. Tivemos de ir às poupanças para sobrevivermos. Não era possível gerir as contas com o dinheiro do dia a dia, porque tínhamos muitas coisas em atraso.

Ficou satisfeito com a resposta do Sindicato ao longo deste processo?
Houve uma boa relação com o Sindicato desde o início. A equipa de sub23 passou exatamente pelos mesmos problemas, eu e o capitão dessa equipa estivemos reunidos com o presidente do Sindicato e logo nos falou da existência de um fundo de emergência. Teve um papel positivo e importante desde o início do problema.

Quando a SAD emitiu o comunicado a avisar que o Aves não iria a Portimão, vocês estavam a par de tudo ou foram apanhados de surpresa?
Estávamos em casa, a ver televisão e fomos apanhados de surpresa. Foi um choque. Toda a gente nos começou a perguntar o que se passava e nós dizíamos a verdade. ‘Não sabemos de nada, treinámos normalmente’. E de repente saiu uma bomba daquela. Fomos completamente surpreendidos e ficámos sem saber o que fazer.

Jogadores, treinadores e presidente do clube quiseram jogar até ao fim. A SAD demonstrou conformismo e pretendia não jogar. Foi assim?
Sim, basicamente foi isso. Nunca percebemos porquê. No comunicado a SAD falava de verdade desportiva e que a equipa do Aves não era suficientemente competitiva para ir a Portimão… isso magoou os jogadores que ficaram até ao fim. Não íamos a Portimão porquê? Não jogávamos contra o Benfica? Isso não fazia qualquer sentido. Com o treinador e com o presidente António Freitas assumimos que iríamos jogar até ao fim. Estamos a falar de um clube com 90 anos, com adeptos fantásticos e todos mereciam o nosso empenho até ao fim. Na verdade, legalmente todos poderíamos ter abandonado o clube com rescisões por justa causa. Falámos sobre isso entre nós, decidimos não julgar quem preferiu ir por essa via – até porque as dificuldades não eram iguais para todos -, mas decidimos ficar até ao fim. Nesse processo, insisto, o treinador Nuno Manta e o presidente António Freitas foram fundamentais.

Nessa fase mais aguda do problema, o que lhe diziam os colegas antes dos treinos e dos jogos?
O plantel era muito jovem. 90 por cento era dos sub23 e todos queriam jogar e aparecer. Para os mais experientes, como eu, era difícil arranjar vontade para treinar e jogar. Mas sabíamos que tínhamos de fazê-lo, era uma luta interior. O corpo treinava e a cabeça tinha de aguentar. Disse aos meus colegas que iria valer a pena, que a equipa tinha qualidade e que todo o país estava a olhar para nós.

Largas dezenas, talvez centenas, de adeptos acompanharam a equipa até Portimão. Isso é marcante.
Esse jogo e o jogo com o Benfica vão ficar marcados para sempre na minha memória. Tive outros jogos marcantes pela positiva – contra o PSG, pelo Rennes -, mas o que senti naquele dia do jogo com o Benfica… ainda hoje me arrepio ao falar desse dia. Houve enorme coragem. Antes de entrar em campo olhámos pelo varandim e vimos centenas de adeptos nossos. Deu-nos uma força incrível. No dia anterior tinham feito um cordão humano à volta do estádio. Essa gente mereceu todo o nosso esforço. Os adeptos do Aves são diferentes, muito apaixonados.

Quando falou pela última vez com as pessoas da SAD?
Foi quando me telefonaram a dizer que não ia haver treino antes do jogo contra o Benfica. Nesse dia não treinámos, a SAD cancelou tudo. Nós queríamos treinar, a equipa técnica queria treinar, mas ligaram-me a pedir para informar os meus colegas que não haveria treino por falta de segurança para o fazermos.

Rescindiu o contrato, é um jogador livre e certamente já terá muitas abordagens.
Ainda estou a assimilar tudo o que se passou connosco. Estar de férias em agosto não é normal e isto no Algarve tem sido quase um retiro espiritual para mim. Nunca precisei tanto de férias como agora. Tenho evitado pensar em futebol, tenho tentado desligar-me porque precisava mesmo de desligar o botão. Esta época desgastou-me bastante, mesmo em termos psicológicos. Precisava de fazer uma pausa e nos próximos dias, sim, voltarei a pensar na minha carreira. Sou um jogador livre e estou completamente motivado para o próximo passo que der. Estou tranquilo e vou decidir com calma.

Tem 27 anos, está no auge da carreira. O seu coração dá preferência a Portugal ou a uma liga estrangeira?
O meu coração diz-me que tenho de voltar a ser feliz no futebol. Tenho de voltar a ter a paixão que tinha quando aquele miúdo se estreou a jogar no Estádio do Bessa. Seja em Portugal, seja onde for, quero ter a alegria enorme que sentia a jogar, a paixão em tudo o que fazia. Isso não desapareceu, mas pode ter ido um bocadinho abaixo com toda a turbulência que me apareceu no caminho. Sinto-me com a mesma ambição, a mesma vontade, muito mais experiência e numa forma muito boa. Não tenho preferência por nenhum destino, mas tenho de sentir mesmo que é o passo certo.

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