«Admira-me não me perguntarem mais por jogadores do Equador» - TVI

«Admira-me não me perguntarem mais por jogadores do Equador»

Renato Paiva (Andre Penner/AP)

Entrevista Maisfutebol a Renato Paiva - PARTE I

Renato Manuel Alves Paiva. O Maisfutebol apanha-o a 28 de dezembro de 2021, um ano e um dia depois de ter cumprido o último de centenas (milhares?) de jogos enquanto treinador dos quadros do Benfica, onde esteve mais de década e meia.

Uma volta ao sol depois, a vida profissional do treinador de 51 anos - uma das dez figuras do panorama futebolístico nacional para a nossa redação em 2021 - mudou para melhor no distante e caliente Equador, onde conduziu o Independiente del Valle a um inédito título de campeão nacional. Casamento perfeito? Não podia sê-lo mais, pelo menos até agora. Renato ensinou o Independiente a ganhar e, com o Independiente, Renato teve sucesso, à primeira tentativa, no «futebol de resultado».

Em entrevista ao Maisfutebol, Renato Paiva fala sem fantasmas sobre todos os assuntos. Partilha a receita do sucesso no Equador, admite que um convite de uma equipa da MLS o fez balançar, mas garante: o sentimento de gratidão ao Independiente del Valle mais ainda e é por isso que está decidido a cumprir o contrato que o liga ao clube até ao final de 2022. Olha para a formação do Benfica, aborda a saída de Jorge Jesus e a promoção de Veríssimo. «Sou um tipo com azar», desabafa bem-humorado quem sonhou e continua a sonhar treinar um dia o clube do coração. Não tem problemas em elogiar a coragem de Ruben Amorim no Sporting e de notar o aparecimento de jovens da formação na equipa principal do FC Porto.

Sobre o momento do Benfica, no dia em que o clube encarnado anunciou a saída de Jorge Jesus, palavras sentidas de quem, já o dissera, fez parte da formação na universidade do terceiro anel. «Para haver estes problemas é porque o Benfica não está bem. E isso deixa-me muito triste!»

Esta parte da entrevista é dedicada ao percurso no Independiente del Valle.

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Maisfutebol – Fez ontem, 27 de dezembro, um ano do último jogo que fez enquanto treinador dos quadros do Benfica. Um ano depois, fala-nos na condição de campeão do Equador. Está mais convencido do que nunca de que tomou a opção de carreira mais acertada?

Renato Paiva – Totalmente! Podia até nem ter vencido o campeonato. Nós sabemos como são as finais: podem correr bem ou mal, se bem que esta era a duas mãos. Mas atingir a final e a época que fizemos de menos a mais deu-nos uma aprendizagem e um aumento de experiência inacreditável. No Benfica B continuaria a fazer o meu trabalho de formador, que é um trabalho tão legítimo como outro qualquer, mas era algo que já não me preenchia tanto. Numa equipa B muito jovem, obviamente que o mais importante é o crescimento dos jogadores, mas também já estava em causa o desgaste do treinador, porque perde-se mais vezes do que se ganha. Mas não foi só por isso. A minha interpretação não foi a de fugir de uma situação que me era adversa. Foi o timing. Se aparece outro clube qualquer, eu possivelmente não teria aceitado. Foi o timing de aparecer o clube exato no momento exato, em que eu me sentia mais do que preparado e decidido a sair. Hoje ratifico totalmente a minha decisão. Mas, repito, não por termos vencido o campeonato: se chegássemos à final e não a ganhássemos, diria na mesma que foi uma época tremenda ao nível de evolução individual e coletiva e tremenda ao nível da evolução enquanto equipa técnica.

MF – Conte-nos sobre essa evolução da equipa técnica.

RP – Crescemos muito com correções, com análises e com o que fomos alterando em andamento. E não tenho dúvidas de que tomei uma excelente decisão.

MF – E encontrou mesmo um «clube diferente», como diz o lema do Independiente del Valle?

RP – Totalmente! Um clube diferente para a realidade da América do Sul, mas muito parecido para a realidade de onde eu vinha. E aqui é que está o paradoxo da coisa. É um clube diferente para a realidade da América do Sul: é uma realidade que não é fácil, onde os clubes não nadam em dinheiro, não são muito organizados e não olham muito para a formação. E encontro um clube parecido com aquele onde eu estava. Em termos de estrutura, de filosofia, de metodologia e com uma forte aposta na formação. Claro que o Benfica tem uma dimensão incomparável com o Independiente, e que os diferencia, mas de resto foi tudo muito parecido. Portanto, foi um clube diferente, mas muito parecido com a realidade que eu deixava para trás.

MF – Quando chega ao Independiente, uma Taça Sul-Americana em 2019 era o único título grande do clube até à data. Lutar por um título inédito no palmarés foi um objetivo definido logo no momento em que o convidaram?

RP – Sim. Os objetivos era claros: potenciar a academia, abrindo aos jovens a porta da equipa A e a partir daí desenvolvê-los e trabalhá-los de maneira a que eles rendessem em termos desportivos e depois em termos financeiros para o clube. Esse objetivo foi conseguidíssimo. Depois, entrámos na Libertadores. Quando o sorteio saiu, com o Grêmio pela frente, pensámos que se calhar não ia acontecer, mas acabou por acontecer. Foi o primeiro objetivo que cumprimos em termos cronológicos. Depois, o objetivo sonhado que era trazer ao clube algo que nunca tinha sido conseguido, que era um campeonato nacional. Posso dizer que em termos de evolução individual de jogadores, ao fim de seis meses vendemos três e vamos ver quantos vamos vender agora neste período de janela de transferências [risos]. Temos jovens jogadores a jogar e afirmados: por exemplo, um guarda-redes [Moisés Ramirez] que pouco tinha jogado e que foi figura, dois laterais, Chavez e Hurtado, que pouco tinham jogado terminaram como figuras, um Alan Minda que veio da equipa B há cinco meses e ao fim de um mês e pouco era titular, mas teve um problema nos ligamentos de um joelho e não pôde dar mais o seu contributo quando estava em alto crescimento. A nível individual e coletivo, a equipa foi de menos a mais. Ao nível do futebol praticado, o que se diz no Equador e noutros lados é que não foi só o que ganhámos: foi como ganhámos e isso deixa-me extraordinariamente satisfeito. Não pode dizer-se que não atingimos claramente um objetivo. Ok, não conseguimos ganhar a primeira volta, que foi para o Emelec, e por isso é que houve final. Também na Libertadores e na Sul-Americana, mas aí também não tivemos sorte nos sorteios.

MF – Na Libertadores estiveram no grupo do Palmeiras de Abel Ferreira.

RP – O Palmeiras acabado de ser campeão da Libertadores e o Defensa y Justicia, que era era o campeão da Sul-Americana e até tinha vencido a Supertaça Sul-Americana ao Palmeiras. E, depois, somos eliminados e vamos para a Sul-Americana, onde levamos com o Bragantino, que acabou por chegar à final e tem um projeto fantástico no Brasil. Como disse, não tivemos muita sorte nos sorteios, mas o objetivo principal era entrar na Libertadores e isso foi conseguido.

MF – Falou há pouco do aproveitamento da formação do Independiente del Valle, que em 2020 venceu a Libertadores sub-20. Foi essencialmente por aí que se conseguiu fazer a diferença contra equipas historicamente mais favoritas, como o Emelec, o Barcelona SC ou a Liga de Quito?

RP – Não. Isso é uma consequência natural daquilo que o clube vem fazendo. Vou dar este exemplo: nos últimos dois jogos das eliminatórias, a seleção nacional do Equador acabou com dez jogadores formados no Independiente. Dez! No onze em campo, dez eram formados no Independiente. Jogadores que estão no Brasil, no México, nos Estados Unidos, na Europa. Mas são formação chancela Independiente, para se perceber a dimensão e o peso da formação. Isto continua a funcionar. Eles saíram, o Miguel Ángel Ramírez [anterior treinador] saiu e continuámos a apostar nos miúdos e vamos continuar a apostar.

MF – Isso é inegociável?

RP – É uma marca que não vai mudar e eu já o disse aos dirigentes. Mas para se ganharem títulos é necessário um upgrade em termos de experiência, porque não vamos lá só com miúdos. E foi isso que fizemos em julho, depois de analisarmos o trajeto da primeira volta. Dissemos que precisávamos de gente com experiência a jogar jogos grandes, finais, e que estivesse habituada a ser campeã e a levantar taças. E que, dentro dessa experiência, ajudasse os outros miúdos a crescer.

MF – E foi isso que aconteceu…

RP – Sim. Esse foi um dos dois momentos-chave da época. O primeiro é quando eu mudo de um sistema de 4x3x3 para um 3x5x2. Estou convencido de que durava dois/três meses no Equador se não mudasse.

MF – Foi fácil para um treinador proveniente do Benfica, onde há uma matriz clara de 4x3x3 na formação, fazer essa adaptação?

RP – A pergunta que me fazes é ‘onde é que tinhas trabalhado o 3x5x2?'

MF – Também pode ser?

RP – Em casa, no papel. Na teoria e no estudo. Nada mais! Mas a minha área do scouting, de analisar os jogadores individualmente e as suas características levou-me a entender que com jogadores com aquelas características o 4x3x3 nunca ia funcionar. Então, com a qualidade dos centrais e dos avançados que eu tinha e com a irresponsabilidade defensiva dos nossos laterais – que acabaram por ser mais extremos – eu disse: ‘Não! Isto é claramente a cara de um 3x5x2 ou de um 3x4x3. Vamos avançar para isso, porque é isto que as características dos jogadores pedem para eu pôr a equipa a jogar. Ficámos muito mais equilibrados com os três atrás mais o Pellerano [médio-defensivo] e acabámos por ser muito mais contundentes com os dois avançados na área e a criação que fazíamos. E isso foi fundamental.

MF – Tentou resistir a essa necessidade de mudança que identificou, insistindo no 4x3x3, ou percebeu rapidamente que esse era o caminho?

RP – Foi logo ao fim dos dois primeiros jogos. Duas derrotas fora para o campeonato. Depois do segundo jogo, na viagem de regresso de sensivelmente duas horas no autocarro, analisei os golos que sofremos nesses dois jogos e percebi onde estava a chave. Mas tinha de encontrar soluções.

MF – E depois?

RP – Quando cheguei a casa montei o meu quadro tático no chão, pus as minhas peças magnéticas e fiquei praticamente uma noite sem dormir a olhar para aquilo. A olhar para as peças e a fazer conjugações. E cheguei à conclusão de que era por ali. Quase nunca tinha trabalhado aquilo, mas sabia a teoria e era só pô-la na prática. No Benfica, quando estávamos a perder em 4x3x3, eu às vezes sacava um central, metia um ponta de lança e dizia aos laterais para se juntarem mais ao central que ficava. E não mexia muito na estrutura do triângulo, que foi o que acabei por fazer no Independiente. Não mexi no coração da equipa: o triângulo do 4x3x3 ficou lá e a largura dos alas também. Mantive muitas das dinâmicas. A ideia foi mudar sem mudar radicalmente e sem ter de desfazer tudo o que já estava feito.

MF – Já percebi que não é um treinador que «morre» com um sistema…

RP – Não! Ainda ontem perguntaram-me qual era o meu sistema preferido. O meu sistema preferido é em função dos jogadores que tenho. Tenho a responsabilidade de olhar para os meus jogadores e para as suas características, e colocá-los nos sítios exatos e dentro do sistema correto para que essas características sejam potenciadas. Um jogador de características x que joga num sítio que não potencia essas características é muito pior jogador. Essa é a minha responsabilidade e a minha experiência vasta de scouting, de analisar jogadores individualmente, ajudou-me muito nessa leitura. O meu sistema favorito é o sistema que potencia as qualidades de cada jogar num aporte para o funcionamento coletivo da equipa. Estou preparado para trabalhar em 4x3x3, 3x4x3, 3x5x2 ou em 4x4x2. Porque amanhã posso mudar de clube ou no Independiente venderem-me cinco jogadores e chegarem cinco novos com os quais não consigo jogar no sistema atual. Tenho de estar preparado e ter essa plasticidade tática. Dizer que sou fanático de um 4x3x3 e que ia com esse sistema até à morte seria muito mau. Era como tentar enfiar um quadrado num espaço redondo e ele não entrar.

MF – E o segundo momento-chave da época?

RP – É aquele em que avaliamos o plantel e eu digo: 'Meus amigos, precisamos de um goleador porque passámos a primeira volta do campeonato e a Libertadores com níveis de criação e situações de finalização enormes, mas com muita falta de eficácia.' Precisávamos de um goleador experiente.

MF – E chegou Bauman.

RP – Que tinha sido o melhor marcador da primeira volta do campeonato. Quanto lhe liguei, disse-lhe: ‘Oh Jonathan [Bauman], se tu no Mushuc Runa estás com esses números, agora imagina-te numa equipa que gera um jogo ofensivo como nós geramos. Se vieres para aqui, vais fazer ainda mais golos do que no Mushuc Runa.’ E, depois, a experiência de um [Júnior] Sornoza, de um [Fernando] Gaibor já campeões do Equador, habituados a finais e a jogar no estrangeiro, foi tudo um upgrade e nós alcançámos ali um equilíbrio fantástico entre a juventude e a experiência, o que acabou por ser fundamental para ganharmos o campeonato. Mas o Bauman trouxe-nos eficácia e, com ele, passámos a gerar e a marcar.

MF – O Brian Montenegro, que foi o melhor marcador da equipa até ao verão e acabou por sair, não dava isso?

RP – O Brian Montenegro é muito bom jogador de futebol, mas não é um goleador. Essa é que é a questão. É um jogador que sai da área, tabela, tem um primeiro toque excelente e tecnicamente é fantástico. Mas falta-lhe o dom do golo. Eu lembro-me sempre do Jardel e do Cardozo. Não eram jogadores tecnicamente evoluidíssimos, mas eram jogadores que a um ou dois toques… como Inzaghi ou Hugo Sánchez, que eram jogadores a quem ao terceiro toque a bola já atrapalhava, mas a verdade é que entre o primeiro e o segundo a bola ia para dentro da baliza. E o Bauman, além de nos ter trazido isto, trouxe-nos também capacidade de ligar jogo, sair da área e associar-se.

MF – E a adaptação ao Equador e à primeira experiência no estrangeiro?

RP – Foi muito fácil. O treinador português tem uma capacidade de adaptação incrível. E nós tivemos: ao país, às pessoas e ao clube. Não chegámos lá com a mania que sabíamos tudo, que vínhamos da Europa e que íamos mudar tudo. Fomos humildes e tivemos a capacidade de perceber o contexto e de aproveitar o que estava bem, acrescentando as ideias que achávamos fundamentais para fazer a engrenagem funcionar.

MF – O Renato já tinha experiência de futebol profissional através da equipa B do Benfica, mas sempre com a formação no centro de um projeto. Agora foi pela primeira vez para o chamado «futebol de resultado». Teve dores de crescimento?

RP – As dores de crescimento foram as dores normais do tempo que precisamos para implementar o nosso trabalho. É como um jornalista mudar de órgão de comunicação social. E aqui é igual: precisamos de tempo para nos adaptarmos e para sedimentar o trabalho.

MF – Mas, por exemplo, teve de alterar alguns comportamentos? Comunica-se de forma muito diferente com seniores do que com jogadores de 19, 18, 17 anos, aos quais estava habituado na equipa B do Benfica?

RP – Tem de ser: 19/18 não digo tanto. Mas eu tenho um [Cristian] Pellerano com 39 anos, com uma carreira em vários países – tal como o Bauman – e não posso falar com ele da mesma forma como falo com o Hurtado, que se estreou na equipa A este ano. E essa é que é a grande mais-valia do treinador: perceber que atrás de um jogador de futebol está um indivíduo. E, primeiro, há que analisá-lo. É um miúdo que vem da formação? Um jogador que tem uma vivência inacreditável de títulos e de diferentes campeonatos? Aí, o discurso tem de ser diferente. E isso requer capacidade de adaptabilidade. Eu passei pelos escalões todos e quando cheguei aos sub-19 não falava da mesma maneira como falava com os sub-14. E todo o trajeto na formação do Benfica ajudou-me bastante a que agora, num patamar sénior, eu perceba os indivíduos que tenho à minha frente. Cada indivíduo que tenho à minha frente é diferente e tem um passado. E tenho de me adaptar às características de cada um.

MF – Mas no Benfica não tinha esse perfil de indivíduos. Com esse tal lastro no futebol.

RP – Não tinha. Mas obviamente tinha de trabalhá-los em função das suas características. Perceber como era cada um. O Tiago Gouveia é diferente do Úmaro Embaló em termos de personalidade, de características. E isso também requer adaptação da nossa parte, claro. Quando eu cheguei à equipa B, o Ferro já tinha quase dois anos de equipa B e não poderia tratá-lo da mesma forma que a um Tomás Araújo que estava a acabar de chegar à equipa B. Mas, ao contrário do que acontecia no Benfica, onde conhecia todos os miúdos, aqui no Independiente tive de fazer um raio-X a cada jogador assim que cheguei.

MF – O Renato já disse que é na América do Sul que está a essência do futebol e é lá que se encontram os jogadores em estado puro. Foi fácil fazê-los interiorizar conceitos com os quais não estão muito familiarizados e que permitem no fundo que uma equipa seja mais equipa num sentido europeísta?

RP – Não foi fácil! A parte mais difícil foi o desenvolvimento tático dos jogadores em função da nossa ideia de jogo. E tivemos inclusive de fazer downgrades à nossa forma de jogar, porque estávamos a exigir demasiado. E quando a informação não é assimilada, é informação em excesso e os efeitos acabam por ser contrários. Tivemos de lhes passar a informação indispensável, não os afogar em tática e deixar que a tática promovesse as características individuais de cada um.

MF – (…)

RP – O foco no qual nos concentrámos mais, que ao fim e ao cabo é o foco no qual as minhas unidades de treino e os meus exercícios de treino se centram, foi na questão da tomada de decisão. Eu continuo a achar que a tomada de decisão de um jogador, se for bem tomada, fá-lo interpretar muito bem o jogo num 4x3x3, num 4x4x2 ou num 3x5x2, porque o sistema deixa de ser o mais importante. Se ele conseguir decidir, dentro das decisões dele, em função do colega, adversário, espaço e bola, a partir daí consegue resolver os problemas que aparecem no jogo. E foi isso que fizemos: treinar exercícios de superioridade numérica para identificar o homem livre para podermos progredir no terreno, criar exercícios onde potenciássemos espaços a penetrar e eles percebessem o momento de atacar esses espaços. Foi tudo sempre baseado na tomada de decisão. E essa foi também a melhor decisão que tomámos.

MF – Simplificação de processos.

RP – Tal e qual.

MF – E encontrou o talento que esperava no Equador?

RP – Encontrei. Claríssimo! Continua a haver o futebol de rua, não há muitas escolas de futebol, continua a haver esse futebol, entre aspas, selvagem. Os jogadores chegam-nos ao clube selvagens e com uma capacidade de relação com bola incrível. Encontrei isso e continuamos a potenciar esses jogadores. A nossa equipa também acaba por ser muito procurada pelas capacidades individuais dos nossos jogadores. Mas não há dúvida nenhuma de que ali [no Equador] o futebol ainda não está tão civilizado como na Europa. Ainda se joga na rua e há muitas dificuldades económicas que fazem com que os miúdos joguem na rua. E isso ajuda muito, especialmente no desenvolvimento das características individuais deles.

MF – É mais estimulante para um treinador trabalhar com jogadores com este perfil?

RP – É mais estimulante. Desde que haja qualidade, claro. Se houver, ótimo! Às vezes dizem: ‘Como é que vai fazer agora com um plantel tão forte? E as dores de cabeça?’ Dor de cabeça é trabalhar com plantéis fracos e com jogadores sem qualidade. Agora, quando há qualidade à disposição é altamente motivante trabalhar em cima das características dos jogadores para que eles evoluam e consigam fazer maravilhas. Isso nunca será um problema: será sempre uma vantagem.

Renato Paiva com a equipa técnica que o acompanhou. Da esquerda para a direita: Luís Martins, David Pereira, Renato Paiva, Ricardo Dionísio e Rui Tavares

MF – Em que jogadores do Independiente vê potencial para darem o salto em breve?

RP – É uma boa pergunta mas à qual não vou responder. Lamento.

MF – Já calculava…

RP – Percebo a pergunta, mas já vamos ter focos inacreditáveis em cima de nós por termos sido campeões. Estou à espera que o meu telefone toque a qualquer momento e que o meu presidente ou o meu diretor me digam: ‘Tenho esta proposta irrecusável e ele vai ter de ir embora’. Aquilo que eu não quero é desmantelar uma equipa campeã. Pelo contrário: quero reforçá-la como já o fizemos. Hoje em dia, o futebol está muito global e os clubes têm muito dinheiro para terem gabinetes de scouting. Até vale a pena, porque o Independiente joga bem. Eles que vejam, porque realmente temos ali muita qualidade, mas eles que façam o trabalho deles.

MF – Mas, pelo menos, recomenda que se olhe mais para o campeonato equatoriano, portanto…

RP – Recomendo! E não só para o Independiente. Porque assim também levam jogadores da concorrência. E lá também há bons. Aliás, admira-me não ter recebido mais sondagem e perguntas sobre jogadores do Equador. Porque não é um mercado caro e porque é um mercado com qualidade. Admira-me, mas tudo bem…

MF – E que jogadores da concorrência recomendaria?

RP – João Rojas, do Emelec, o Byron Castillo, lateral direito do Barcelona SC, que para mim é o melhor ou um dos melhores jogadores do campeonato, o Martínez, também do Barcelona, o Leiguizamón, central do Emelec, o Alejandro Cabeza, ponta de lança do Emelec que foi expulso no primeiro jogo da final contra nós e não jogou o segundo e ainda bem. Há muita qualidade no Equador e admira-me que não me perguntem mais vezes por jogadores.

MF – Refere-se a outros treinadores? A olheiros?

RP – Sim. Deixei em Portugal um lastro grande de conhecimento de jogadores, relação com muita gente ligada ao scouting e achei estranho ninguém me telefonar a perguntar por este ou por aquele jogador do Equador. Achei estranho, mas pronto, tudo bem: se calhar as pessoas estão ricas e gostam mais de ir a outros mercados gastar mais dinheiro. É uma opção que respeito…

MF – Depois da conquista inédita do campeonato, quais são os objetivos já definidos para a próxima época?

RP – Bicampeonato! Na noite do título, foi dito aos jogadores ainda no balneário que já estávamos a trabalhar para o bicampeonato. Até já tínhamos duas contratações feitas. E, obviamente, fazer uma Libertadores melhor do que a que fizemos. Ganhar a Libertadores é difícil, porque o poder está no Brasil, mas passar a fase de grupos é o mínimo que podemos exigir a nós próprios.

MF – Ainda tem mais um ano de contrato, mas acredito que o telefone já tenha tocado algumas vezes. Já houve algo que o tenha feito balançar?

RP – Já. A MLS fez-me balançar, mas também me fez balançar o carinho de quem apostou em mim e me deu um contrato de dois anos, o carinho dos meus jogadores, que sentiram que eu poderia sair e encheram-me o telefone de mensagens a pedir-me para continuar, e eu sinto que devo gratidão a quem confiou em mim e me foi buscar quase ao outro lado do Mundo. Era muito fácil dizer: ‘Ganhei, tchau e vou embora, porque a fasquia já está alta’. Era muito fácil, até porque a cláusula nem é muito alta. Mas tenho uma relação quase familiar com quem manda no clube e devo-lhes esse agradecimento, assim como aos jogadores, que são outra família para mim. Não me sentiria bem se não acabasse este ciclo. Falta-me um ano e eu sinto que ainda podemos fazer coisas muito bonitas no ano que aí vem e é isso que eu vou fazer.

MF – E um Maradoniano confesso e fã de equipas argentinas não gostava de experimentar um dia o campeonato argentino, estando agora tão perto dele?

RP – Um jornalista da ESPN da Argentina perguntou-me uma vez, depois de conhecer toda a minha história e a minha ligação quase umbilical à Argentina, se treinar na Argentina era um sonho que eu tinha . E eu disse que sim. É um país que sempre admirei. Desde há 22 anos para cá que via esse campeonato praticamente todas as noites e tenho um conhecimento forte dos clubes e dos jogadores. É um país futeboleiro a 100 por cento, o que me atrai bastante. Obviamente que seria um passo absolutamente fantástico treinar na Argentina. Até mais do que no Brasil, com todo o respeito por este país, que é também super-futeboleiro e com uma dimensão futebolística enorme, mas pelas minhas ligações treinar na Argentina seria um sonho.

MF – Há cada vez mais treinadores portugueses apontados ao futebol brasileiro. No Equador também já lhe pediram para indicar nomes de treinadores portugueses? Sente que esse seu sucesso pode também abrir portas neste país?

RP – Pode. O sucesso do Jorge Jesus abriu portas, o do Abel poderá abrir portas. Mas a mim ainda ninguém me perguntou sobre treinadores de Portugal. Mas não tenho dúvidas de que estes êxitos podem abrir portas. O que se diz é: ‘A Libertadores foi ganha nos últimos três anos por portugueses’. Agora saquem as conclusões… Também não é por acaso que, teoricamente, o Flamengo tinha como opções para treinador o Carvalhal, o Vítor Pereira, o Paulo Sousa, o Jorge Jesus… Isto é o normal e não é só na América do Sul. Basta olhar para o sucesso dos treinadores portugueses pelo mundo fora. É normal essa procura.

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