Erick, o campeão de bem com a vida que superou tanto (até uma longa doença) - TVI

Erick, o campeão de bem com a vida que superou tanto (até uma longa doença)

Erick Mendonça

Entrevista com Erick Mendonça, jogador do Sporting e recente campeão do mundo com a Seleção Nacional, que fala ao Maisfutebol sem filtros

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Erick Mendonça é um campeão de bem com a vida e sempre pronto para largar uma piada. Só fica sério quando fala da mãe. Aí quase se emociona, os olhos brilham e confessa que, ela sim, foi a verdadeira guerreira da família na luta contra a doença que o atingiu.

Tinha sete anos quando lhe foi detetada a doença de Perthes, que o atirou para uma cama, primeiro, para uma cadeira de rodas, depois, e para uma longa recuperação que durou sete anos, por fim. Foram sete anos sem correr, sem chutar, sem jogar futsal nesta história.

Erick diz que foi duro, muito duro, mas repete que não gosta do discurso do coitadinho. Porque nunca foi um coitadinho. Foram muitas privações, claro que sim, mas ele era só uma criança e contou com o conforto de uma mãe que sempre o amparou.

Ela sim, sofreu verdadeiramente. Por isso é uma heroína para o jogador do Sporting, que aos 26 anos já ganhou duas Ligas dos Campeões e já foi campeão mundial, numa história de superação que pode inspirar gente que nesta altura passa uma situação mais delicada.

Aos 26 anos já é campeão do mundo e já ganhou duas Champions de futsal. Isto não está a correr tudo melhor do que esperado?

Melhor do que esperado está a correr ao Zicky e ao Paçó, que têm vinte anos e já ganharam isso. Obviamente que não contava aos 26 anos já ter este currículo, mas não acho que haja um tempo para se ganhar títulos. Vencer duas Champions e um Mundial é algo que muita gente procura uma vida inteira e eu já os tenho aos 26 anos. O que posso dizer é que é inacreditável.

Mas acaba por ser lógico: o futsal está-lhe no sangue deste que nasceu, não é?

Sim, sim, desde que nasci. A minha família toda respira futsal. Tenho primos que jogam, primos que são treinadores, o clube em que fui formado foi criado em parte pela minha família, portanto... A raiz do futsal é enorme.

Pois, porque a Quinta dos Lombos foi criada pelo seu avô...

A Quinta dos Lombos foi fundada pelo meu avô e por mais cinco amigos dele. Ele foi um dos grandes impulsionadores do clube logo que veio de África.

O Erick também nasceu no México, mas veio com um ano para Portugal.

Sim, tenho muito poucas memórias do México. Sou mexicano de raiz, de origem, mas tenho poucas memórias. Vim com um ano para Carcavelos.

Portanto quando era miúdo nunca lhe passou pela cabeça jogar outra coisa que não o futsal?

Não, nunca tive aquela coisa de querer ser jogador de futebol. Desde muito cedo que me foi incutido o futsal. Tive uma passagem muito rápida pelo futebol, mas muito curta, até porque o que gostava mesmo do futsal.

Que passagem foi essa pelo futebol?

Nem se pode considerar uma passagem. Eu era criança e fui fazer uns treinos ao Cascais. Mas já nem me lembro bem, honestamente. O espírito estava todo no futsal. Quis experimentar, mas nem me ficaram muitas memórias desses treinos.

O futsal, esse sim, começou muito cedo...

Muito cedo, muito cedo. Nem sei especificar ao certo, mas o rinque já existia lá no bairro de Quinta dos Lombos, em Carcavelos, e eu jogava lá. Quando me aparece a doença que me obrigou a parar, também já jogava há algum tempo. E quando me foi possível regressar, regressei de imediato.

Essa doença de que fala apareceu com que idade?

Aos sete anos. A 23 de julho, por aí. Foi pouco tempo depois de fazer anos. Tanto assim que a minha mãe achou que não fosse nada de mais porque tinha tido uma festa lá no rinque e achava que tinha sido um mau jeito que eu tinha dado.

Uma festa que incluía jogar futebol, portanto...

Basicamente a festa era só jogar futebol. Soprar as velas era uma coisa que nos lembrávamos no fim. O resto do tempo era jogar futebol o dia todo. Então começou a aparecer-me uma dor na virilha, que se foi agravando aos poucos, mas a minha mãe pensava que era do jogo, por estar demasiado cansado ou algum mau jeito que tinha dado. Depois revelou-se que não.

Revelou-se que era muito grave...

Fui a uma clínica conhecida da minha mãe e as palavras da médica foram: ‘isto pode não ser nada, como pode ser uma coisa muito grave’. E encaminhou-me para um médico, que era um médico top nesta doença de Perthes. ‘Vai a este médico e ele logo te diz o que é’. Fui lá, era o dr. Cassiano Neves, e ele disse logo ‘o Erick já não sai daqui, tem de ficar internado, a mãe vá buscar coisas a casa porque o menino tem de ficar aqui’. Foi aí que descobri.

O que é que aconteceu?

A minha cabeça do fémur desfez-se, porque o sangue não chegava lá. O tratamento era uma coisa muito simples: era uma espécie de dois pesos agarrados à parede a puxar as pernas para baixo. Eu tinha as pernas todas ligadas e essas ligaduras, que vinham até aos pés, estavam presas por uns arames a uns pesos que me puxavam as pernas para baixo, para haver espaço para o sangue voltar a chegar à cabeça do fémur e começar a regenerar.

Esse período foi um choque?

Foi um choque, sim, mas seria muito pior se fosse agora. Quando nós somos crianças, achamos sempre que os nossos pais são super-heróis. E quando aquilo aconteceu, a minha mãe teve a preocupação de me dizer logo: ‘ah, não te preocupes, que isto não é nada e vais ficar bem’. Então eu assumi aquilo sem duvidar. Foi chocante, claro que sim, porque tive de ficar internado, não podia fazer nada, não podia jogar, tinha que andar de cadeira de rodas. Mas ao mesmo tempo sempre tive na cabeça que era passageiro, porque era o que a minha mãe me tinha dito. Até podia não ser passageiro, mas na altura não tinha noção dos riscos. Hoje seria bem pior.

Ficou muito tempo de cadeira de rodas?

Muito. Não sei especificar ao certo, porque foi um processo demorado e de várias fases: estive internado, depois fui fazer o mesmo tratamento para casa, depois pude sair, mas de cadeira de rodas, e fiquei muito tempo de cadeira de rodas, depois foi muletas, depois comecei a andar, mas sem poder fazer exercício físico. Foram várias fases, ao longo de muito tempo. Ainda deu para engordar uns bons quilinhos e ficar uma bolinha numa cadeira de rodas. Foi difícil.

Estamos a falar de anos?

Sim. Eu lembro-me que a escola fez um esforço enorme, porque a minha sala de aulas era no segundo andar e a escola não estava preparada para receber cadeiras rodas. Então passaram a sala para o rés-do-chão e lembro-me de ter passado nessa sala um ano ou dois, de cadeira de rodas, a brincar com os meus brinquedos.

Nessa altura as brincadeiras tinham de ser numa mesa, não é?

Sim, eu não podia correr, não podia fazer nada. Então eu tinha uma mesa no pátio, que já era ‘a mesa do Erick’. Eu chegava com uma mochila com legos e brinquedos, sentava-me lá e ficava a brincar. Às vezes vinham miúdos brincar comigo e ficava lá a curtir as minhas cenas. Lembro-me que às vezes via o rinque cheio de gente ou malta a correr à minha frente e eu ali a brincar com legos, só me apetecia mandar com tudo ao ar. Mas é como digo, se fosse agora tinha sido tão, mas tão mais difícil. Teve alguns momentos difíceis, claro, mas sempre pensei que era passageiro.

Durante esse processo alguém disse que não ia poder voltar a fazer desporto?

Ah, sim, houve certamente pessoas que disseram isso à minha mãe. E mesmo os médicos falaram sempre que ia correr tudo bem, mas havia o risco de poder não correr bem. Uma das coisas que o médico disse à minha mãe foi: ‘vá buscar as coisas a casa e faça o que fizer, não vá à internet ler sobre a doença’. E o que é que a minha mãe fez? Foi à internet ler sobre a doença. Na internet uma pessoa está com tosse e tem logo cancro. A minha mãe foi ver e o que viu foi amputações, problemas na bacia, próteses, enfim, entrou logo em parafuso. Ainda hoje ela diz que foi a pior coisa que fez. Hoje quando ainda falamos disso, ela emociona-se a lembrar o que sofreu. Lá está, eu não tinha noção, mas a minha mãe passou por processos muito difíceis, emagreceu imenso. Eu estava muito pesado, vivíamos num segundo andar, a minha mãe tinha de carregar comigo, depois tinha de descer e carregar com a cadeira de rodas. A minha mãe conta que me deixava na escola, tinha de deixar o carro à porta porque não havia lugar de deficientes, tinha de carregar comigo e durante este processo as pessoas apitavam-lhe, ofendiam-na, chamavam-lhe palavrões. A minha mãe chorava, ficava com a cara em lágrimas, a pedir para a deixarem. Eu digo à minha mãe, se nessa altura fosse consciente e pudesse andar, eu não sei o que lhes fazia.

Foi muito mais difícil para a sua mãe do que para si...?

Muito mais, muito mais. A minha mãe sofreu muito, muito, muito. A minha mãe é uma guerreira. Dificilmente ela não se emociona a falar destes momentos, principalmente este momento de me deixar na escola e as pessoas ofenderem-na gratuitamente.

Depois ultrapassou este momento e até foi um dos casos de maior sucesso em Portugal...

Sim, exatamente, fiquei com 95 ou 97 por cento do fémur reconstituído. O que não é normal.

E não se sabe explicar porquê...

Não. Ao que sei, dificilmente o osso regenera totalmente. O grande problema desta doença é que quanto mais tarde são descobertos, mais difícil é a regeneração. Por isso é que muitas vezes há questões de amputação em pessoas mais velhas, porque é mais difícil regenerar ossos. Conseguir 95 ou 97 por cento é uma coisa utópica. Tudo o que é acima de 90 é impensável. Normalmente uma boa recuperação fica com 85 por cento ou 83 por cento do osso regenerado.

Lembra-se como foi voltar a correr?

Nem me lembro da sensação de voltar a correr. Lembro-me, sim, que perdi a coordenação motora toda. Anos sem correr, as primeiras corridas que fiz eu parecia não sei o quê. Voltar a correr bem, voltar a correr normal, voltar a ter capacidade motora foi um processo duro.

E voltar a ter técnica?

Não, técnica nunca tive, técnica nunca tive.

Aquela jogada na final do Mundial não diz isso...

Destoou um bocado. Agora a sério, nunca fui muito técnico, fui sempre mais na base da força.

E voltou logo a jogar na Quinta dos Lombos?

Sim, logo que o médico me deu alta para fazer exercício, embora tenha continuado em observação, voltei para a Quinta dos Lombos. Tinha 14 anos. Voltei logo a jogar para a Quinta dos Lombos. Era muito gozado, porque corria super torto, mas em termos de dor não sentia praticamente nada. Sentia pouca mobilidade, o que é normal, mas jogar, ir à bola, remates, tudo bem.

E psicologicamente como estava?

Psicologicamente estava impecável. Depois de estar de cama, depois de estar de cadeira de rodas, depois de estar de muletas, dizem-me: ‘olha, chuta à vontade’. Como diz o Pauleta, eu aí estava no gás. Já estava no gás, completamente.

Hoje o Erick é claramente um caso de superação.

Sim, pode dizer-se que sim. Lá está, passei por algumas coisas que me fizeram crescer muito e palavras como guerreiro ou superação podem assentar-me. Mas às vezes as coisas são pintadas de uma forma que não é... Eu não sofri assim tanto. Não tive noção de muita coisa e isso ajudou-me imenso. Se fosse agora e ver a minha mãe sofrer ia custar-me muito mais. Fui um guerreiro, sim, tenho que o dizer, porque foi uma doença que é prolongada e custa, mas ajudou ser criança.

Mas não acha que hoje, tendo passado por isso e sendo campeão do mundo, é um raio de esperança para muitas pessoas que enfrentam doenças?

Acho que sim, acho que o meu caso pode ser visto assim. Acima de tudo pode ser um exemplo para pessoas que têm a mesma doença perceberem que está ao alcance de qualquer um ter uma vida normal. O problema desta doença é que não é muito falada e por isso quando chega o diagnóstico é um choque, mas no seio clínico os médicos dizem que não é incomum. É importante que pessoas que são apanhadas por ela tenham exemplos de gente que se superou e conquistou coisas. Nesse sentido, sinto-me um exemplo.

E, já agora, se hoje pudesse dizer alguma coisa àquele miúdo de sete anos, o que dizia?

Acho que batia na mesma tecla. ‘Nem sabes a sorte que tens em não saber o que o mundo é, sobretudo por causa das pessoas que te rodeiam. Continua ingénuo’. Acho que sobretudo isso: ‘Continua ingénuo’. Se fosse mais velho tinha-me custado muito mais. Sobretudo pela minha mãe. Pelas histórias que ela conta. Acho que voltava a andar só para ir atrás de quem a tratou mal.

Para além da sua mãe, há outra pessoa importantíssima na sua vida que foi a sua avó.

Muito, muito, muito. A minha avó foi a pessoa que nos acolheu, a mim, à minha mãe e à minha irmã, quando voltámos do México. Passámos algum tempo em casa dela, até nos mudarmos para uma casa nossa. Isto tudo lá no bairro da Quinta dos Lombos. E mesmo depois de mudarmos de casa, a minha mãe ia trabalhar, eu ia para o rinque jogar e à hora que fosse vinha a minha avó à janela: vem tomar o pequeno almoço, vem almoçar, vem lanchar.

Era uma avó muito presente...

Estava sempre de olho em mim. A minha mãe saía às oito para ir trabalhar, ‘largava-me’ no rinque, porque aquele bairro era todo da minha família e ali estava entregue. Uns dias ia tomar o pequeno almoço a casa da minha avó, no dia a seguir ia a casa da minha tia que era no prédio ao lado, era tudo meu. A minha avó nisso era incansável. Depois era uma figura incontornável. Sportinguista máxima, sempre a ver jogos lá em casa.

Até tinha rituais para ver o Sporting, não era?

Tinha, tinha uns rituais, era uma estupidez... Lembro-me de coisas parvas. Um dia num jogo qualquer alguém disse que as meias em cima da televisão davam sorte, então toda a gente tirava as meias e metia em cima da televisão. Quando foi o apuramento para a final da Taça UEFA em Alkmaar, a minha avó insistia que tinham sido as meias.

E havia muita gente a ver os jogos do Sporting?

Nós estávamos lá mais vezes, mas a minha avó dava guarida a outros primos, havia sempre comida ou cama para quem precisasse, por isso havia sempre lá gente a ver o Sporting.

O Sporting que um dia foi ver um primo seu jogar e contratou-o a si...

Contratou os dois. É curiosa essa história porque o treinador dos juniores foi ver o meu primo Bernardo e falou com o meu primo Ricardo, que tinha sido atleta no Sporting com esse treinador Jorge Monteiro. O Ricardo disse a esse Jorge Monteiro que se ele ia ver o Bernardo, tinha de ver o Erick também. E assim foi. Acabou por nos trazer aos dois.

Ir jogar para o Sporting, numa família de sportinguistas, deve ter sido uma felicidade...

Foi, mas foi muito duro, também. Eu jogava na Quinta dos Lombos e era a estrela, digamos assim, e venho para o Sporting, uma realidade muito mais profissional, em que pura e simplesmente deixou de jogar. Lembro-me que nos primeiros jogos só fiz asneiras e pensava: ‘eh pá, isto não é para ti, tu não tens qualidade para isto’. Fiquei muitos jogos sem jogar, sem um minuto sequer. Foram para aí cinco jogos seguidos sem ser convocado.

Pois, já li que no primeiro jogo só fez asneiras, não foi?

Só fiz cagada, só fiz cagada. Meu Deus, cada vez que me lembro desse jogo só me apetece rir. E a malta goza, vocês é que não têm noção. O Pauleta jogava no Belenenses, jogávamos muitas vezes um contra o outro e ele diz à malta: ‘pá, vocês não têm noção de como era o Erick quando chegou aos juniores’. E era verdade. Quando fui renovar com o Sporting para o meu segundo ano, o nosso diretor dos juniores, que era o António Medinas, disse-me: ‘Erick, quando chegaste ao Sporting eu perguntei ao treinador o que ele tinha visto em ti’. Porque era impossível. Mas pronto, nessa altura já estava a jogar e por isso renovei. Depois no segundo ano fui capitão, deu-se a seleção, fiquei mais confiante, aprimorei alguns aspetos e agora estou aqui, campeão do mundo.

Depois ainda foi emprestado ao Quinta dos Lombos...

Eu não fui emprestado, eu fui dispensado.

Foi dispensado?

Sim, sim, eles gostam de dizer que fui emprestado, mas eu fui dispensado. Primeiro ano de seniores, fazia a pré-época com os seniores, ainda fiz alguns jogos, mas depois disseram-me que não contavam comigo. Fui para a Quinta dos Lombos, que coincidiu com o primeiro ano do clube na I Divisão, depois fui dois anos para o Fundão. O Sporting contratou-me no final do primeiro ano e deixou-me lá emprestado no segundo ano.

A partir daí foi sempre a subir até ser campeão do mundo.

Exatamente. No primeiro ano em que volto ao Sporting ganhámos a Champions, depois voltámos a ganhar a Champions e agora campeão do mundo.

Ainda pensa como é que aquele golaço na final bateu na trave?

Não. Eu não penso nisso. Eu não sou muito de fazer golos. Neste último ano, por acaso, fiz vários golos e assistências, foi bom para as estatísticas, mas não sou muito de fazer golos. Preferia muito mais, em vez de ter feito aquilo e bater na trave, ter-me mandado de cabeça contra o poste para evitar um golo, por exemplo. É muito mais a minha capacidade, que é defensiva. Obviamente era um golaço, não sou hipócrita, era uma coisa incrível. Mas não fico com isso a matutar na cabeça.

E lembra-se do que sentiu quando o árbitro apitou pela última vez?

Eh pá, não me lembro de nada. Só me lembro de tirar a t-shirt, que não sei porquê, mas é o que faço sempre que ganho um título importante. Depois desatei por lá a correr, a correr, a correr, até que me mandei para o chão a chorar. Depois veio o Afonso e abraçou-me, logo a segui o Paçó. E o resto é história.

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