«Campo de Futebol»: um holandês filma ‘drama queens’ em pelados lusos - TVI

«Campo de Futebol»: um holandês filma ‘drama queens’ em pelados lusos

«Campo de Futebol» (Foto: Hans van der Meer)

Projeto «European Fields», de Hans van der Meer, passou por Portugal e levou imagens do futebol distrital. Fotógrafo e realizador diz ao Maisfutebol qual o seu recinto preferido

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Longe das câmaras de televisão, dos estádios imponentes e dos relvados imaculados, a bola continua a saltar. Pode ser num pelado irregular ou num sintético duro, mas a essência mantém-se. 22 bravos do pelotão empenhados na busca e salvamento do golo.

É esse o ADN que o holandês Hans van der Meer, 65 anos, procura recriar no seu trabalho artístico. A ligação genuína do atleta ao jogo e do jogo ao povo que o segue. Sem intermediários, interesses mais ou menos lícitos ou outro tipo de exploração comercial.

Nesta sexta-feira, 29 de maio, Van der Meer e a produtora Paradox apresentaram ao mundo a curta-metragem «Campo de Futebol», filmada exclusivamente nos campos em terra batida dos campeonatos distritais do nosso futebol nortenho.

O filme é um dos cinco a sair de um projeto mais alargado chamado «European Fields». Van der Meer publicou em 2006 um livro com esse nome e recupera-o agora em versão compatível com os desmandos da Sétima Arte.

O texto que acompanha a película é da autoria de João Nuno Coelho, sociólogo, investigador e comentador de futebol, que partilha com Van der Meer a paixão absoluta pelo jogo. Nestes dias duros de distanciamento social, o artista holandês resume a lógica de todo este projeto: «Quanto mais afastado do glamour da Liga dos Campeões, melhor.» Esta é a sua entrevista ao Maisfutebol.

VÍDEO: o trailer de «Campo de Futebol»

Maisfutebol – Onde nasce a atração artística do Hans pelo futebol não profissional?
Hans van der Meer – Nasce na minha pobre carreira como futebolista e, mais tarde, no projeto ‘Dutch Fields’ [Campos holandeses], já nos anos 90. Fui inspirado por imagens de arquivo, a preto e branco, da seleção da Holanda. Adorei fazê-lo, adorei as imagens obtidas nesse futebol desconhecido e repliquei-o na Bélgica e em alguns países do leste europeu. A recetividade foi boa e fui convidado a exibir as minhas fotografias em vários museus importantes e a colaborar com revistas e jornais. Mais tarde, em 2004, fui desafiado por um desses museus e a European Photography. O trabalho chegou a Inglaterra, ao sul de França e a Portugal. Estive seis semanas na região do Porto e no Norte do vosso país em 2004, antes do Campeonato da Europa. O livro ‘European Fields’, que organiza e reúne o meu acervo, foi publicado na primavera de 2006.

Mas o seu trabalho era exclusivamente composto por fotografias. Como aparecem agora estas cinco curtas-metragens?
Nos anos 90 surgiram as primeiras ‘handycams’ e eu comprei uma. Ia para os sítios de reportagem, fazia o meu trabalho enquanto fotógrafo e deixava a câmara a filmar durante três horas. As pessoas, mesmo as mais próximas, não sabiam que eu tinha tudo isto em filme também. É muito engraçado, até os jornalistas holandeses me perguntam ‘mas você também faz filmes?’ (risos). A câmara de filmar esteve sempre lá comigo, embora sem grande rigor.

Como nasce a ligação a Portugal e aos campos portugueses no seu trajeto?
Bem, o primeiro contacto com Portugal foi feito com a senhora Teresa Lago, que era a responsável pela ‘Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura’. Disse-me que o país teria o Euro2004 e que o meu trabalho encaixava naquilo que procuravam para alimentar o período pré-Europeu.

E a escolha dos campos foi aleatória ou recebeu informações de amigos portugueses?
Tive de procurar campos diferentes, que me marcassem. Não queria locais conhecidos, fiz uma enorme pesquisa e o meu lema era ‘Quanto mais afastado da Liga dos Campeões, melhor’ (risos). Fui futebolista amador e ainda seria se não fosse o raio do joelho. Sempre me senti atraído por essa paixão do atleta que entra em campo e sabe que nunca será famoso, nunca chegará aos maiores palcos. É só o atleta que está ali a pensar em divertir-se e em ajudar a equipa. Aterrei em Portugal, troquei umas impressões com conhecidos e fui à descoberta.

Encontrou uma realidade diferente da que esperava?
Nos arredores do Porto há campos de futebol maravilhosos, muito diferentes de tudo o que eu vi por essa Europa fora. O campo em Perafita [Complexo Desportivo do Aldeia Nova], encravado entre o oceano e a refinaria da Petrogal, por exemplo. No início do filme que agora vai ser exibido, eu mostro também o que tinha de viver para chegar aos campos de futebol. Abria a janela do carro, pedia indicações para o campo e as pessoas locais diziam-me ‘vai em frente e vira à esquerda’, ‘tem de subir a colina’. Bem, era muito complicado chegar aos campos. Eu não tinha mapas nem GPS, só a informação de amigos e essa ajuda das pessoas que viviam nas zonas visitadas.

Aldeia Nova-Estrelas de Guifões em 2004 no campo favorito de Van der Meer

De todos os campos que visitou em Portugal, qual o seu favorito?
O meu campo favorito é esse em Perafita, que fica mesmo ao lado do Atlântico. É um sítio maravilhoso para se jogar futebol. Eu cresci a jogar nos campos holandeses, rodeado de vacas, mas o campo de Perafita… uffff, mágico, mágico. Só lamento que todos estes campos sejam agora de relva sintética. Prefiro a relva natural ou a terra batida. Também fiquei maravilhado com o Campo de Futebol da Cumieira, perto de Santa Marta de Penaguião, e com o campo de futebol em Moimenta da Beira.

Essas viagens que fez implicam uma logística enorme.
Sim, mas colaboro com uma produtora chamada Paradox Films e eles tratam de tudo. Organizam a digressão e colocam em todos os países as minhas fotografias e estes novos filmes. Há muitas iniciativas associadas à obra ‘European Fields’. Alguns museus pegaram só no som recolhido por mim em campos de futebol e mostram-no a pessoas que estão sentadas numa sala. Só a escutar esses sons. É muito bonito e demonstra o poder do futebol.

O que o atrai mais no mundo do futebol?
Antes de tudo o resto, a possibilidade de jogá-lo. Sempre adorei jogar futebol. Curiosamente, sempre tive mais prazer em jogar do que em ver. Ia, de longe a longe, ver futebol profissional, claro, mas mais por motivos profissionais.

Há alguma parte do livro ‘European Fields’ que goste de forma especial?
Há e é uma parte que não foi feita por mim (risos). Há um texto assinado pelo Simon Cuper [jornalista e escritor britânico] onde ele retrata a experiência de um futebolista amador na primeira pessoa. Com o talento dele, o Simon fala do avançado que falha um golo de baliza aberta e que passa a semana a sentir-se muito mal. Esse avançado compreende, mesmo assim, que aquilo pode acontecer a qualquer um. E depois o Simon dá o exemplo na perspetiva do adepto. O adepto que vê o avançado da sua equipa também a falhar de baliza aberta e que ainda se sente pior, pois preferia ter sido ele a falhar (risos). Isso resume o que é o futebolista amador: um homem sem medo de se expor ao ridículo, se isso tiver mesmo de ser.

O seu coração sofre por algum clube em particular?
Amo o jogo, o futebol. Aprecio o estilo do Ajax, mas sou capaz também de aplaudir o Feyenoord. Tenho mais alma de futebolista do que de adepto. No momento em que entramos num campo de futebol para jogar, mudamos completamente. Vestimos uma camisola, uns calções e somos novamente miúdos. O filme que retrata os jogos em Portugal é disso uma excelente amostra. Os jogadores sofrem uma falta e atuam como um ‘drama queen’. Nunca fariam isso na vida real. São atores, isso também faz parte do jogo, como se algum espírito tomasse conta deles.

Como descreveria em poucas palavras o futebol amador?
O futebol amador é imaginação. Estamos em campo e imaginamos bancadas cheias, dezenas de milhares de espetadores. Sentimo-nos melhores do que realmente somos. Um dos rituais, principalmente no sul da Europa, é extraordinário: as equipas entram em campo e saúdam os espetadores, como se houvesse alguma bancada cheia de gente. Mas não há, é tudo imaginado. É lindo. No Campo da Cumieira, que fica no topo de uma colina, isso é especialmente belo. 22 futebolistas a saudarem o vazio. Só pode ser amor genuíno pelo jogo.

Há algum adepto que o tenha marcado na sua passagem por Portugal?
Há um senhor que está atrás de uma baliza a ver um jogo e está visivelmente insatisfeito. O silêncio dele é poético, a expressão não engana, mas nunca se manifesta com insultos ou palavrões. Não abre a boca. Adoro estes adeptos anónimos, que sofrem com o clube da terra.

O seu trabalho é uma carta de amor ao futebol?
Percebo a questão, mas eu até gosto de um tipo de imagem cru, despido. Há um elemento romântico no meu trabalho, claro, porque representa a minha ligação ao jogo. Mas se falarmos da forma como tiro fotografias e filmo, diria que há mais contemplação do que romance. Gosto de planos abertos. Futebol e fotografia é uma excelente combinação. Não gosto de planos aproximados. Para isso, só mesmo os posters dos nossos ídolos no quarto.

E quem foi o seu ídolo no futebol?
Rob Rensenbrink [internacional holandês entre 1968 e 1979]. Sempre ele.

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