Lucas Radebe: «O Bielsa obrigou o staff a andar com carteira de senhora» - TVI

Lucas Radebe: «O Bielsa obrigou o staff a andar com carteira de senhora»

Nelson Mandela chamou-lhe «o meu herói» e o povo de Leeds trata-o por «chefe». Onze temporadas em Elland Road transformaram o sul-africano numa personagem de culto. A entrevista ao Maisfutebol confirma o quão especial é este homem de rara amabilidade

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«This is my hero.» [Este é o meu herói] Nelson Mandela, o líder e pai espiritual da África do Sul, ele próprio um herói transversal a várias gerações, referia-se assim a Lucas Radebe. A expressão ajuda a descodificar a grandeza desta personagem dos Bafana Bafana e do Leeds United.

Na semana em que o histórico de Elland Road confirmou o regresso à Premier League, nada como falar com o homem que o representou durante 11 temporadas, de 1994 a 2005 e que se tornou no estrangeiro com mais jogos pelo Leeds (236) e uma espécie de capitão honorário do clube.

Lucas Radebe é uma figura de culto em Leeds, mantém ligação ativa ao emblema e está envolvido com várias organizações de cariz social. É embaixador da FIFA para a SOS Aldeia de Crianças, por exemplo.

O sorriso incontrolável de Radebe esconde uma vida feita, como tantas vezes sucede no futebol africano, de provações e superações. Foi baleado em 1991 no Soweto, sofreu duas lesões gravíssimas no joelho ao serviço do Leeds e sobreviveu a um ataque cardíaco em 2008, dois meses depois de ver a mulher perder a batalha para um problema oncológico.

Dez anos depois de falar ao Maisfutebol em vésperas do Mundial jogado no seu país – um Mundial que merecia ter jogado -, Lucas Radebe reencontra o nosso jornal, à distância. Gentileza de outro sul-africano que passou pelo futebol português: Mandla Zwane, lembra-se?

Falta dizer que Lucas Radebe fez 70 jogos pela África do Sul e esteve nos Campeonatos do Mundo de 1998 e 2002. Na Ásia até marcou um golo à Espanha. Mesmo assim, para ele nada é melhor do que recordar o seu Leeds. Basta ver os vídeos associados para confirmar que aquele sorriso é inesgotável.

Radebe (à esquerda) contra Montella, da AS Roma, num jogo europeu

Maisfutebol – 16 anos depois, o Leeds está de volta à Premier League. O que tem de tão especial este clube?
Lucas Radebe – Quando fui para o Leeds, em 1994, sabia muito pouco do clube. Quase nada. Tinham sido campeões dois anos antes, estavam na Premier League e o meu único objetivo inicialmente era aproveitar. Jogar, aprender e divertir-me. O futebol para mim não é só o que acontece dentro do relvado. Para mim era uma honra ir para Inglaterra e vestir uma camisola tão importante. Na altura fui com o Phil Masinga, outro sul-africano. Mal chegámos a Leeds percebemos que tínhamos escolhido um clube muito, muito especial, absolutamente fantástico. É um clube grande se pensarmos na herança social, na tradição e na cultura, na relação com as pessoas.

Acabou por ficar 11 anos e tornar-se capitão de equipa.
Honestamente, tive muitos convites para sair do Leeds e jogar em clubes europeus enormes. Mas eu sentia-me parte do Leeds e não me imaginava a jogar noutro lado, longe de Leeds. Havia um sentimento de pertença e posso dizer, agora, que estou orgulhoso da carreira que tive no Leeds. Onze anos a conhecer pessoas maravilhosas e marcantes.

Fale-nos de algumas dessas pessoas maravilhosas e marcantes.
Às vezes as pessoas referem-se aos futebolistas como egoístas, como tipos que não respeitam os adeptos. Há esse estigma. Em Leeds conheci precisamente o oposto e o primeiro colega que merece o meu elogio público é o Gary Kelly, o nosso lateral direito [jogou de 1992 a 2007 no Leeds, mais de 500 jogos]. Foi a pessoa mais incrível que conheci em Inglaterra. Aprendi com ele a ser um cavalheiro. E tenho de mencionar outra lenda, o guarda-redes Nigel Martyn. Há tantos. O que posso dizer do Jonathan Woodgate, do Alan Smith, do Ian Harte? Se me adaptei tão bem ao Leeds, foi por culpa deles. A camaradagem, a amizade, acabei por me tornar um homem fiel e equilibrado pelos exemplos que me rodeavam no balneário.

O que nos pode dizer da atmosfera nos jogos em Elland Road?
É um estádio especial. Quando descemos de divisão, vejam bem, lembro-me de falar com adeptos e jogadores de outras equipas que me diziam o quanto sentiam a falta de Elland Road. Isso diz muito sobre o nosso estádio. Não é um estádio grande [37 mil lugares], mas tem uma característica especial: os lugares das bancadas parece que caem sobre o relvado. Para os visitantes isso torna-se o inferno (risos). O barulho que aquele estádio consegue produzir é inacreditável, é diferente. Se o Leeds jogar a um nível alto, uau, então é a loucura completa. Tudo isto também é possível porque os adeptos do Leeds são muito especiais.

Consegue escolher os dois ou três melhores momentos enquanto jogador do Leeds?
Essa é uma das perguntas difíceis (risos). Em 11 temporadas vivi grandes, grandes momentos. Um desses momentos tem de ser o dia em que entrei para ser guarda-redes em Old Trafford (risos). Joguei 73 minutos e só perdemos 1-0. Outro… o jogo contra o Spartak Moscovo. Perdemos fora 2-1 e em casa tínhamos de ganhar. Estava 0-0 e perto do fim tivemos um canto. O guarda-redes falhou completamente a saída e eu, acho que de olhos fechados, cabeceei e marquei. Mesmo em frente aos nossos adeptos. Uau! Que loucura, que loucura. Quando a bola entrou na baliza dos russos, Elland Road explodiu. Ser do Leeds é isso, é acreditar até ao fim. Ainda agora sinto um frio na barriga ao falar disto. Mesmo neste período de 16 anos longe dos melhores, senti sempre que íamos voltar à Premier League.

VÍDEO: Lucas Radebe na baliza do Leeds em Manchester

Teve dois colegas portugueses no Leeds. Lembra-se deles?
Bruno Ribeiro, o esquerdino. Lembro-me bem dele e do guarda-redes, o Nuno Santos. O Nuno era muito próximo de mim. Eram dois jogadores de qualidade e a prova de que nessa altura o Leeds conseguia atrair futebolistas de muito bom nível. O Bruno e o Nuno, gajos muito especiais. É muito bonito porque eles chegaram, adaptaram-se muito e passaram a fazer parte do Leeds. É deste tipo de jogadores que precisamos, gente que perceba o que é o Leeds.

O Nuno Santos está a trabalhar com o José Mourinho no Tottenham.
O Nuno? Não sabia, que bom. Tenho de lhe telefonar, grande gajo. Pode passar-me o contacto dele? Muito obrigado.

O Lucas já esteve em Portugal?
Só uma vez, quando fui jogar à Madeira, a ilha do Cristiano.

Contra o Marítimo?
Isso mesmo, em 1998. Ganhámos 1-0 em Leeds e perdemos 1-0 no Funchal. Passámos nos penáltis. Gostaria muito de visitar Portugal com calma e estabelecer alguma ligação com um clube português.

VÍDEO: o Marítimo-Leeds com Lucas Radebe em campo

Como é que o Lucas Radebe celebrou a subida de divisão do Leeds, após 16 anos de espera?
Caro amigo, eu sou sul-africano (risos). Sabemos como celebrar. Festejei com os meus filhos, fomos para a cidade. Depois dos resultados do WBA e do Brentford, já sabíamos que a festa ia acontecer. E ganhámos facilmente ao Derby. Absolutamente fantástico, um sonho tornado realidade. O Norman Hunter, lenda do Leeds que faleceu em abril, deixou uma carta onde escrevia que o seu último sonho era ver o Leeds na primeira divisão outra vez. Acredito que o espírito dele, a alma dele, estiveram com a equipa até ao fim. Foi lindo. Recebi mensagens pelas redes sociais, malta de Inglaterra fez vídeo-chamadas aqui para minha casa na África do Sul. Devolvemos o Leeds ao sítio que pertence e sinto-me nas nuvens! Dou total crédito ao Andrea Radrizzani, o nosso chairman, e ao Marcelo Bielsa, claro.

Falta falar então do senhor Bielsa. Gostava de ter sido treinado por ele?
Claro, claro, todos temos ouvido histórias espetaculares sobre o Marcelo. Uma delas, contada por um dos meus amigos no clube, é esta: no primeiro dia em Leeds, ele obrigou os jogadores a apanhar os papéis e o lixo que estava no centro de treinos. Durante os jogos é fantástico. Não se senta no banco, senta-se num balde. O Marcelo é muito respeitado pelos homens do futebol. Por Guardiola, por exemplo. Isso diz muito sobre ele. É absolutamente maravilhosa a forma como pegou na equipa e a transformou no que é hoje. Adorava ter sido treinado por ele, claro (risos). Olhem para ele. Não parece ser um homem amável e que gosta de sorrir, mas quando ouvimos as histórias maravilhosas sobre as coisas estranhas que faz… os meus amigos do Leeds dizem-me que uma vez, como castigo, ele obrigou o seu staff a ir para o aeroporto com carteira de senhora ao ombro (risos), é de loucos. Aliás, a alcunha dele é ‘El Loco’. O Marcelo é um ‘Special One’ e criou uma ligação fabulosa com o nosso ‘chairman’, o Andrea Radrizzani. Quando o Andrea o foi contratar, percebeu logo que tipo de treinador estava a levar para o Leeds e sentiu que era um treinador que encaixaria na perfeição. A paixão e o amor que o Marcelo levou ao Leeds são inacreditáveis.

Na próxima temporada veremos o Lucas Radebe a ver o Leeds em Elland Road?
Completamente, completamente. Tenho imensas saudades das celebrações no estádio. Quero estar no primeiro jogo do Leeds na Premier League, espero que já possa haver público na bancada. Você já viu como foi a celebração pela subida? Imaginem se conseguirmos fazer algo importante na Premier. Quero muito ver estes jogadores a jogar, de forma merecida, na primeira divisão. Estou curioso para perceber que contratações o Leeds vai fazer. Sinceramente, com o Bielsa e o Andrea por lá, o Leeds vai apontar a voos muito altos. Nos próximos dois anos, acredito que veremos o Leeds a jogar nas competições europeias.

E sempre a ouvir os Kaiser Chiefs, a banda de Leeds.
(muitos risos) Sim, ‘I Predict a Riot. ‘Ruby, Ruby, Ruby’! (nomes de músicas do grupo) São rapazes porreiros. Sabe o significado do nome da banda?

Sim, eles são fãs do Leeds e adoravam o Lucas…… e por isso deram à banda o nome do meu clube na África do Sul. Isso mesmo. (risos) Sempre que estou com eles sinto-me um deus, eles são malucos. Tive de decorar algumas músicas, os rapazes merecem. Tipos impecáveis.

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