Rui Costa: o Milan, a «árvore de Natal» e a transformação de Pirlo - TVI

Rui Costa: o Milan, a «árvore de Natal» e a transformação de Pirlo

Grande entrevista nos 20 anos do Maisfutebol

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5 de junho de 2000. Na verdade, já era quase dia 6 quando o Maisfutebol finalmente nasceu. Começava uma grande aventura e no princípio estava Rui Costa. O então jogador da Fiorentina e da seleção nacional, de partida para jogar o Euro 2000, fazia manchete nesse primeiro dia, com uma entrevista já então feita também em vídeo. 20 anos mais tarde, Rui Costa volta a associar-se a este momento especial, ele que foi protagonista e espectador privilegiado destas duas décadas, como jogador e como dirigente. Nesta terceira parte, a mudança para um Milan repleto de talento, tanto que descobriu uma nova vocação para um tal de Pirlo.

- É inevitável considerar a passagem para o Milan como uma subida de estatuto. Foi assim que a viste?

Se tivesse de sair da Fiorentina, como veio a acontecer, o clube que eu escolheria era o Milan. E tive a grande felicidade de o Milan me querer, é tão simples quanto isto. Era a primeira vez que o meu presidente Cecchi Gori admitia ter-me no mercado, porque nos outros anos ele dizia que preferia vender antes o clube (sorriso). Na altura em que estou para sair, das várias equipas que aparecem, nunca me preocupou saber qual a que me dava melhores condições financeiras, mas sim a que me dava mais condições para satisfação pessoal e de projeto desportivo. Havia entre outras o Parma, que também era uma superequipa, e a possibilidade de sair de Itália para grandes equipas europeias, mas eu tinha crescido a ver o calcio, da altura dos holandeses, Rijkaard, Van Basten e Gullit. O Milan era o Milan. E quando soube que o Milan estava na corrida, a única indicação que dou é essa: é para ali que eu quero ir, não me interessa que ofereçam mais noutros lados.

- E chegas com a camisola 10, que tem um simbolismo evidente e sempre foi o teu número. Que importância tinha isso para ti?

- Eu já tinha sete anos de Itália. Nesse ano sai o Boban, que era o 10, e há essa passagem de testemunho que é algo de grande peso em Itália e particularmente no Milan. Por isso, nesse dia, quando vi a camisola 10 com o meu nome senti-me nas nuvens. A tristeza de sair de uma cidade fantástica, que encheu um estádio para se despedir de mim, foi compensada pelo facto de chegar à nova casa e ser recebido da mesma forma. Tinha mesmo de dar um bom casamento. A única mágoa que tenho é ter chegado a essa equipa numa idade já mais próxima do final do que do início da carreira.

- E o teu primeiro ano é difícil. Alguma vez voltaste a ter tantas lesões?

- É muito, muito difícil, é desastroso. 2001/02 é o ano com mais paragens por lesão, embora felizmente nenhuma tenha sido muito prolongada. Mas eram sucessivas, impediram-me de chegar à boa forma porque ao fim de três, quatro jogos, quando estava a melhorar, aparecia outro problema e tinha de parar. Tinha na cabeça o selo dos 42 milhões por um jogador de 30 anos, o que na altura era muito pesado. Sentia uma necessidade quase diária de provar que valia aquilo e muito mais, numa equipa que também tinha problemas e sentiu dificuldades para garantir o quarto lugar e o acesso ao play-off da Liga dos Campeões. E se calhar por isso, no fim desse ano, o Milan contrata o Rivaldo…

- Pensaste que vinha para o teu lugar?

- Nessa altura tudo indicava que a minha passagem pelo Milan não teria significado. E é aí que ganho mais coragem, ao ganhar um rival – grande amigo, e grandíssimo jogador – que me fez puxar pelo orgulho e lutar pelos meus objetivos. E nesse segundo ano, da Liga dos Campeões, acabo por ser totalista e por bater o recorde de assistências.

- Chegaste a um Milan em fase de transição, mas que cresceu muito depressa…

- Sim, e é com a minha contratação, e a do Inzaghi, que vem da Juventus, que o Milan arranca o plano de ataque à Liga dos Campeões em 2001. E a verdade é que os resultados são rápidos: depois desse primeiro ano difícil, em 2003 somos campeões europeus, em 2005 perdemos a final mais incrível da história do futebol com o Liverpool, a ganhar 3-0 ao intervalo, e em 2007, já sem mim, mas no prolongamento desse projeto, o Milan volta a ganhar. Nos cinco anos em que estive lá, tivemos duas finais da Liga dos Campeões, um campeonato, uma Taça, uma Supertaça Europeia (N.R.: diante do FC Porto). Estamos a falar de um colosso europeu, ao qual estarei sempre grato, em particular a Berlusconi e Galliani, por me terem dado a oportunidade de fazer parte de uma equipa que será sempre histórica. Até esta fase atual do Real Madrid e, antes, do super Barcelona do Guardiola, mais nenhuma equipa tinha feito três finais em tão pouco tempo.

- E de repente o Milan tem de conciliar os talentos de Rui Costa, Seedorf, Pirlo, Rivaldo, e mais tarde Kaká…

- A história do Pirlo acaba por ser engraçada porque no meu segundo ano, no ano em que somos campeões europeus (2002/03), nós estamos a pré-temporada toda, com o Ancelotti, a tentar conciliar-me e ao Pirlo no mesmo onze. Na altura ele jogava a 10, era inclusive o 10 dos sub-21 de Itália. E o Ancelotti queria que um de nós os dois fosse a primeira saída de bola. Nós iríamos montar ali um sistema que ficou conhecido como a árvore de Natal, um 4-3-2-1 a afunilar na frente, com dois 10 atrás do Shevchenko e dois laterais que pareciam extremos, a darem largura à equipa. Ele pretendia que esse jogador à frente da defesa, na mesma linha do Gattuso, mais do que ser um trinco para roubar bolas, fosse a primeira referência de saída. E então estamos a pré-temporada toda, um dia treina ele ali e eu à frente, outro eu atrás e ele à frente. Acabou por ficar o Pirlo ali… e acabou por ser o melhor médio do Mundo (risos).

- Um processo semelhante ao de Paulo Sousa, por exemplo…

- Sim, o Paulo nos juniores era segundo avançado, ou extremo-direito, e uma bandeira da formação do Benfica. E depois acaba, também ele, por tornar-se o melhor trinco do Mundo, no seu tempo. A jogar numa posição completamente diferente daquela em que se formou. E isto só se dá porque são dois jogadores com uma noção de jogo tremenda. Se tivessem sido adaptados a laterais também saberiam desempenhar o seu papel.

Falta explicar aos mais jovens que até essa altura a Série A era claramente o campeonato mais exigente do Mundo...

- As pessoas mais novas hoje não entendem – a começar até pelos meus filhos, que já nasceram lá – o que era o futebol italiano nos anos 80/90 até ao início de 2000, por comparação com a realidade de hoje. Era o top dos tops, e nos anos 90 até se dizia: se queres ganhar a Bola de Ouro tens de ir para Itália. A verdade é que, para além da Juventus, Inter e Milan, a qualidade dos jogadores era impressionante. Ias jogar a Florença e levavas com Rui Costa, Batistuta e Edmundo, ias à Sampdoria e tinhas Vialli, Mancini e Gullit… Isso perdeu-se um pouco quando as equipas passaram a ter mais de três estrangeiros, a partir daí deixou de ser possível vermos jogadores com a qualidade de um Zico a atuarem na Udinese. Os estrangeiros que lá chegavam tinham de ser de elite, e se não fossem iam embora em seis meses. Com isto, os próprios jogadores italianos tinham outros patamares de qualidade: entre o Totti, o Del Piero ou o Baggio, só podia jogar um na Seleção, por exemplo. Essa ideia de campeonato de elite perdeu-se na última década. E para nós, portugueses, o fascínio só se recompôs um pouco com a ida do Cristiano para a Juventus, que nos trouxe um acompanhamento diferente.

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