De Milão para o Benfica: «Quando voltei, só o Kaká me podia tirar o lugar» - TVI

De Milão para o Benfica: «Quando voltei, só o Kaká me podia tirar o lugar»

Grande entrevista nos 20 anos do Maisfutebol

Relacionados

5 de junho de 2000. Na verdade, já era quase dia 6 quando o Maisfutebol finalmente nasceu. Começava uma grande aventura e no princípio estava Rui Costa. O então jogador da Fiorentina e da seleção nacional, de partida para jogar o Euro 2000, fazia manchete nesse primeiro dia, com uma entrevista já então feita também em vídeo. 20 anos mais tarde, Rui Costa volta a associar-se a este momento especial, ele que foi protagonista e espectador privilegiado destas duas décadas, como jogador e como dirigente. Nesta parte, a história do regresso ao Benfica.

- Entretanto, de 2004 em diante, um jovem chamado Kaká vai ganhando espaço no Milan, e ao mesmo tempo vai crescendo aquilo que sempre te acompanhou ao longo da carreira, a perspetiva de um regresso ao Benfica. As duas coisas vão em paralelo…

- Acabam por ir. O Kaká chega muito jovem e depressa se percebe que está ali um super-atleta, super-jogador. Eu já não tinha força física para combater com aquele monstro. Isso era visível. Continuei a dar o meu contributo mais três anos, mas percebia que no primeiro ano do Kaká eu ia discutir com ele, a partir de certo ponto ele iria voar e eu iria ter menos espaço. Mas ainda assim, posso adiantar, o melhor grupo de futebol com que trabalhei foi aquela equipa do Milan. Portanto, nenhum de nós sairia dali só porque sim. A equipa estava composta com grande qualidade de jogadores, mas com uma enorme qualidade humana. Era quase incutido nos mais velhos que nós teríamos de ser tutores dos mais novos. E essa passagem foi extraordinária. OK, perco a titularidade, mas também não tens nada melhor do que perder a titularidade, ao fim de uma vida de protagonismo, para alguém que seja realmente bom. Quando estás em final da carreira e perdes para um Deco da vida ou para um Kaká da vida, porque eles têm dez anos a menos, dizes «está bem». São muito fortes, são muito bons. E depois humanamente, quer um quer outro como pessoas são extraordinários. Portanto, fica tudo muito mais fácil.

- E percebeste cedo que a sucessão estava bem entregue…

- Quando o Kaká começa a pegar, lembro-me num certo jogo onde eu não jogo e ele joga, que a imprensa italiana queria alguma polémica e de me perguntarem se eu estava chateado e eu disse: «Não, não estou chateado porque o Kaká no máximo em dois anos será Bola de Ouro.» E foi mesmo, e quando o Kaká vence a Bola de Ouro essas imagens acabam por passar na TV e acabam por ser as imagens de um jogador que respeitava a sucessão e compreendia o seu papel dentro do grupo.

- A tentação do regresso ficou mais forte aí?

- Houve ali uma altura em que continuo com contrato com o Milan, há o Milan a propor a renovação do contrato, mas eu sempre tive o grande desejo de poder acabar a carreira no Estádio da Luz, desde que me sentisse em condições. E eu sentia. Já não me sentia em condições de lutar contra o Kaká… Mas também sentia que só o Kaká é que me podia roubar o lugar. E portanto isso dava-me uma crença de que ainda estava em grandes condições para poder fazer bem. Depois, tenho de ser grato ao Milan por perceber a minha vontade de terminar a carreira com a camisola do Benfica, mas que para isso acontecer eles teriam de me libertar, porque o Benfica não tinha condições para pagar verbas por um jogador do Milan naquela altura. Portanto, eu consegui forçar essa porta, sendo que o Milan foi extraordinário. Porque eu tinha mais um ano de contrato e tinha a proposta para mais um ano de renovação.

- Muita gente desejava que o tivesses feito mais cedo…

- No futebol toda a gente tem todo o direito de falar o que quiser, mas nem sempre acerta. Na altura lembro-me de ver muita gente a dizer que se era tão benfiquista porque é que não tinha vindo mais cedo, ele quer é ganhar milhões e por aí fora. Quando as pessoas não se apercebem que a maioria das vezes o que está em causa não é o que o jogador ganha ou vem ganhar, porque essa foi a parte menos problemática para o Benfica em relação a mim, mas sim os valores da transferência. E foi precisamente isso que nunca me fez regressar ao Benfica. Quando percebo que há essa hipótese, faltava saber se o Benfica ainda estava interessado em que eu pudesse voltar. E foi assim. O presidente Vieira disse para eu vir ontem, e eu ontem fui falar com o Milan e pedi essa autorização para vir acabar a carreira aqui.

- Duas épocas numa fase difícil do clube, vinhas com expectativas de ganhar títulos?

- É evidente. Vinha para o Benfica, não vinha para passar férias. Aliás, aquilo que me fazia sentir mais em condições era jogar com a camisola do Benfica. Porque se tivesse que abraçar outro projeto naquela altura, já não conseguia ter muita força mental. Aquilo que me movia era poder voltar a vestir a camisola do Benfica e tentar o título. Ao longo da minha vida toda, eu dizia aos meus familiares «Eu tenho de jogar no Benfica de grande». Porque eu tinha jogado no Benfica de miúdo e queria jogar no Benfica como homem. E queria que o meu último jogo fosse com a camisola do Benfica. E volto a dizer o que disse há bocado. Fui um sortudo, porque isso aconteceu.

- Tens alguma mágoa de não teres vindo num contexto desportivo em que pudesses sair mais em alta?

- Claro que sim. É evidente, estive aqui dois anos… Eu ganhei o campeonato e ganhei a Taça, antes de ir para Itália, mas a ambição era voltar e ser campeão pelo Benfica. No primeiro ano tenho aquela lesão dramática em que vou para dentro de campo com uma rotura e acabo por me rasgar todo, e depois pedir a todos os santinhos que o músculo colasse e me permitisse jogar mais um ano. Depois tenho o segundo ano em que faço os jogos quase todos. Mas com o sabor amargo de acabar sem títulos e numa fase diferente da história do clube.

- Sempre tiveste um discurso e uma visão global sobre futebol. Pressentia-se que talvez continuasse no futebol e pressentia-se que não como treinador. Essa etapa final da carreira já começa a projetar esse futuro?

- É mesmo no final da minha carreira que se decide o meu futuro no Benfica. Não é uma coisa antecipada, eu queria era jogar, queria era pensar em títulos. Eu tinha prescindido da ideia de ser treinador de futebol aí aos 28, 29 anos, para ser honesto. Isto porque, estive 12 anos no estrangeiro e a minha principal ideia era voltar a casa. Voltar a casa, enquanto cidadão. E a vida de um treinador a gente sabe como é. Sempre gostei da parte do treinador, sempre gostei de entender aquilo que os meus treinadores mandavam fazer, de entender o que era o treino, porquê fazer isto ou aquilo, sempre gostei da parte táctica do jogo, sempre idealizei o que podia ser como treinador, que ideias é que podia aportar ao jogo ou não, mas a partir de certa altura pensei de outra forma. E quando estou a acabar a carreira, no meu último ano, surge o convite. Quem é que está a jogar no Benfica e é benfiquista como eu e rejeita o convite para ser administrador do clube?

- A experiência de Itália já te tinha dado uma visão global do meio…

- Ajudou bastante. Mas o prazer e o orgulho de acabar a carreira e ser administrador do meu clube superava tudo. Superava até os convites que ainda recebi para ir jogar ainda para os Qatares e para as Arábias e por aí fora, que, como deves calcular, eram pagos a peso de ouro. Superou até isso. Eu não faço disto a minha profissão, eu estou dentro do Benfica, não tenho ideia de ser diretor desportivo ou administrador daquele clube e do outro e depois subir para ali ou passar para ali. A minha vida, pelo menos até ao dia de hoje, é com a ideia de contribuir para o Benfica. A única coisa que não aceito é que me falem do aspeto financeiro. Cada adepto tem a legitimidade para me julgar, menos no aspeto financeiro.

Continue a ler esta notícia

Relacionados