João Henriques: «Fomos à Luz como se estivéssemos a jogar em casa» - TVI

João Henriques: «Fomos à Luz como se estivéssemos a jogar em casa»

Entrevista ao treinador do Santa Clara - Parte II

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Aos 47 anos e com duas temporadas de muito bom nível no Santa Clara, João Henriques é um dos treinadores do momento em Portugal. Nascido em Tomar, o técnico esteve mais de 20 anos à espera de uma oportunidade no principal escalão português. Agora, confessa em entrevista ao Maisfutebol, sente-se «preparado» para tudo o que a carreira lhe der, incluindo um trabalho num dos maiores emblemas do futebol nacional.

Há mais de um mês com o Santa Clara na Cidade do Futebol, João Henriques reflete sobre o percurso que o levou até ao Leixões e, mais tarde, ao Paços de Ferreira e a Ponta Delgada. O treinador lembra que é o segundo há mais tempo num clube da Liga - só atrás de Sérgio Conceição - e não tem problemas em analisar e destacar o papel de alguns dos seus atletas nestes dois anos.  

PARTE I: «Estou preparado para a pressão de treinar um grande»

PARTE III: «Vou comer um peixinho e decidir o meu futuro»

PARTE IV: «O médico tirou-me o melhor jogador por ele ser baixo»


Maisfutebol – Estão há mais de um mês juntos em permanência. Ainda se conseguem ver uns aos outros?
João Henriques – Estamos aqui desde o dia 30 de maio, quase sempre juntos (risos). Nesta altura já se torna complicado. O grupo é fantástico, dá-se muito bem, mas sinto os atletas um bocado saturados. Principalmente nas últimas duas semanas. Ao vivermos na ilha já temos o espírito de estarmos muito próximos e isso facilitou no início. Mas agora, por muita criatividade que tenha este grupo – e tem -, chega uma altura em que estar aqui pesa e isso notou-se nas últimas jornadas. A equipa cometeu mais erros, falhou mais passes. Não houve a disponibilidade mental ideal. Senti isso contra o Marítimo e no Bessa. Sofremos golos de bola parada, perdemos por 1-0 e acho que faltou um bocado de foco nesse detalhe. Na parte física não se tem sentido tanto, porque temos um plantel equilibrado e tem sido possível trocar as peças. As pernas estavam frescas, mas a cabeça não estava tão fresca como gostaríamos.

42 pontos e décimo lugar. É estimulante ter estes objetivos delineados?
No início, a manutenção era o objetivo. Ter o Santa Clara três anos seguidos na Liga seria inédito. E vai acontecer. Quisemos também ter metas intermédias, para que os jogadores fossem ambiciosos e não estivessem só a olhar para o final da época e a permanência. O desafio maior era superar os recordes da época passada. Vamos tentar melhorar os 42 pontos e décimo lugar que conseguimos na época passada. E mais algumas coisas. Na época passada fizemos 21 pontos em cada volta, este ano já temos 21 nesta segunda volta. O desafio é também esse, tentar a melhor volta de sempre. Não queremos só o ‘q.b.’ e só assim os atletas aceitam a superação. Vamos criar coisas possíveis de ultrapassar. Não é só dizer que queremos fazer 50 pontos e vamos lá.

As conversas com os atletas são determinantes para a exposição destes objetivos.
No início da temporada faço sempre conversas individuais com os atletas. Quero saber quais são os objetivos que têm para eles. Se são avançados, quantos golos? Se são defesas, quantos jogos? E tenho respostas muito interessantes. O Zaidu, com aquela inocência dele, disse-me que queria ser o melhor jogador do mundo (risos). E eu tentei fazê-lo ver como as coisas são. ‘Olha, mas já pensaste em ser titular na I Liga? Chegar à seleção da Nigéria?’. É um miúdo que veio do Mirandela com 20 anos. Chegou à I Liga e em vez de pensar em jogar, não. Já queria ser o melhor do mundo. Gostei de ouvir aquele misto de inocência e ambição. Da mesma forma questiono-os sobre os objetivos coletivos. Mas não o faço nos primeiros dias. Deixo-os ir para estágio e ver como é o grupo. Estamos no Santa Clara e com estes onde chegamos? Fazemos um gráfico e mostrámos as escolhas que os atletas fizeram. ‘Malta, as vossas escolhas foram estas e eu estou de acordo’. Quero que eles façam parte do processo e o compromisso tem de ser coletivo. Todos temos de acreditar no que definimos. Eles entram com ‘X’ e eu garanto-lhes que eles saem mais jogadores do que entraram. Saem ‘X+Y’. Um dos objetivos é também potenciar os ativos e fazer com que o clube faça encaixes financeiros. As pessoas começaram a acreditar nisto a partir da venda do Fernando Andrade ao FC Porto.

Passaram a ver que isso podia acontecer a outros do plantel.
Sim, e depois foi o Kaio Pantaleão para o Krasnodar. Acredito que este ano pode acontecer o mesmo. É normal. Com a classificação que temos e a nossa qualidade de jogo, isso acabará sempre por suceder. Ninguém é vendido quando estamos no último lugar da classificação. Temos de ser atrevidos, corajosos, personalizados e organizados. Se conseguirmos isso, todos ganhamos. O Santa Clara tem bons resultados e vende jogadores. A estrutura é pequena e partilha destas ideias. Não há segredos, é tudo às claras. Qualquer um de nós quer mais e melhor, todos precisamos de ser ajudados para isso. Não há ninguém desconfiado. Agora já temos 38 pontos, mas houve períodos menos bons e a direção esteve sempre a apoiar. Não é à toa que estou a fazer a segunda época no clube, coisa rara em Portugal (risos).

Esses dois anos com a mesma equipa fazem com que o Santa Clara seja ainda melhor?
Se querem bons exemplos no futebol português, temos de falar do treinador que está há mais tempo num clube: o Sérgio Conceição. Provavelmente será campeão pela segunda vez em três anos. Eu sou o segundo treinador há mais tempo. Tivemos 42 pontos na época passada, nesta já estamos com 38 e isto dá uma média de 40. Para uma equipa que luta pela manutenção isto é fantástico. São dois bons exemplos de sucesso. Estabilidade, continuidade, deixar as pessoas trabalhar, deixar mostrar a qualidade. No futebol português normalmente só se olha para o resultado imediato. Na primeira ou segunda semana já se põe tudo em causa ou, no extremo oposto, já se fala no novo Mourinho. Nem oito, nem 80. Tem de haver equilíbrio. Olhem para o conteúdo, não olhem para o pacote, para o embrulho. O conteúdo é o que se vê ao longo de uma temporada, não é só num jogo ou na primeira semana. Isso é que é importante avaliar, não é uma série de jogos menos conseguida. O Sérgio [Conceição] ainda esta época foi contestado, eu também passei nove jogos sem vencer e agora estamos numa situação confortável. Depois desses nove sem vencer, ganhámos quatro seguidos e fizemos a melhor série do Santa Clara na Liga. Deixem as pessoas trabalhar. Dou o exemplo do Klopp: na primeira época ficou no 8º lugar, depois foi 4º classificado duas vezes, segundo e agora foi campeão. O treinador é o mesmo, teve tempo. É um extraordinário treinador agora, como era na primeira época. Nós criticávamos o que se passava noutros países e estamos a entrar na mesma onda. Devemos refletir, não é bom para ninguém.

Há clubes a anunciar um novo treinador a quatro jogos do fim.
São situações avulsas. Querem remediar uma situação e depois logo se vê. Quando corre bem, tudo fica dissipado. Só descem duas equipas e as que não desceram… mas qual é o perfil de treinador que o clube quer? Não faz sentido haver quatro treinadores na mesma época e todos com formas diferentes de pensar o jogo. Se sou um treinador de futebol direto e não gosto de sair a jogar curto, modelo a minha equipa para uma saída mais longa e escolho jogadores para isso. Depois esse treinador sai e o clube escolhe alguém com uma visão completamente distinta. O jogador não se sente confortável. Depois vem o terceiro treinador, que não é nem carne, nem peixe. Anda numa zona cinzenta. Isto não faz sentido nenhum. Quando se pensa num projeto desportivo, a direção tem de escolher um treinador com perfil para o contexto do clube. Qual é o nosso campo de recrutamento de jogadores? Qual é o perfil de jogador que queremos? Se as coisas forem pensadas desta forma, há menos trocas. Há um rumo, um caminho. Se as direções quiserem decisões avulsas, o treinador é o primeiro a cair porque é o elo mais fraco. Isto não é bom para ninguém.

Uma boa exibição contra um dos grandes vale mais do que uma goleada a outro clube? É frustrante sentir isso?
Sim, os clubes da dimensão do Santa Clara são analisados só nos jogos contra os grandes. A qualidade do jogo, o processo ofensivo e defensivo, o perfil do treinador… ou faz algo de extraordinário como o Famalicão este ano está a fazer ou o trabalho é invisível. Temos de fazer algo extraordinário. Mas se vencermos por 1-0 e defendermos o jogo inteiro, a vitória é desvalorizada. As pessoas têm de perceber que as armas são muito diferentes. O que conseguimos na Luz foi extraordinário. Jogámos olhos nos olhos, estivemos empatados 3-3 até perto do fim e ainda tivemos qualidade para fazer um quarto golo. Não é normal. A tabela classificativa permitiu-nos fazer aquilo e as coisas saíram na perfeição. Mesmo assim, dá-se mais ênfase ao demérito do Benfica do que ao mérito do Santa Clara. Fomos à Luz como se estivéssemos a jogar em nossa casa contra outra equipa qualquer. Tivemos de fazer um jogo extraordinário para vencer, mesmo com o Benfica numa fase menos boa. Contra o Sporting, nos Açores, foi diferente. Nós estávamos numa fase muito boa, o Sporting nem por isso, e perdemos 4-0. Fizemos um dos piores jogos da época e só se falou do Sporting. Para o bem e para o mal, fala-se dos grandes. Para equipas da nossa dimensão é algo frustrante, sim. Somos protagonistas do campeonato, mas sentimo-nos um bocadinho à margem.

 

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