«Assinar por um grande só para dizer que sim não vale de nada para mim» - TVI

«Assinar por um grande só para dizer que sim não vale de nada para mim»

Candeias

A 19 de outubro, Candeias fez o primeiro hat-trick da carreira e somou-lhe duas assistências, tudo em 42 minutos. História de uma vida que começou a mudar quando assinou pelo Benfica.

Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências. Sugestões e/ou opiniões: djmarques@mediacapital.pt ou rgouveia@mediacapital.pt

Assim que abrimos este artigo (vá lá que esperamos aqui por si) fica definida a nossa prioridade para o terceiro «Estórias Made In» de 2019/20.

Três golos e duas assistências entre o minuto 1 e o 42.º na goleada do Gençlerbirligi (pesadelos, Sporting?) sobre o Antalyaspor por 6-0 fora de casa: o recital de Daniel Candeias na tarde de sábado, 19 de outubro de 2019, que lhe valeu nota dez para a SofaScore e um lugar de especial relevo no onze ideal dos portugueses lá fora.

«Quando estava na formação do FC Porto fiz alguns hat-tricks. Mas nessa altura jogava a avançado e o meu papel era fazer golos, mas este foi o primeiro como profissional. Se foi a exibição de uma vida? Foi fantástica, pelos números e porque a equipa conseguiu dar a volta a uma situação negativa. Não é todos os dias que isso acontece», conta em conversa telefónica com o Maisfutebol.

Antes do jogo da 8.ª ronda da Liga turca, o Gençerbirligi dividia com o Kayserispor o último lugar da prova: três pontos, seis golos marcados, 12 sofridos e nenhuma vitória.

Talvez por isso nada fizesse prever que a partida terminasse com o resultado mais desnivelado do campeonato na presente temporada, mas Candeias explica que, ainda que os registos não fossem famosos para a equipa de Ancara, nem tudo estava assim tão mal como aparentava.

«É verdade que começámos mal o campeonato, talvez pelo facto de a equipa ter muitos jogadores novos. Quando não se ganha, isso afeta um pouco o moral da equipa e começamos a desconfiar um pouco, mas já tínhamos feito boas exibições. Contra o Trabzonspor, que é uma grande equipa, empatámos fora e contra o Basaksehir começámos a ganhar e sofremos golos de erros individuais. Sabíamos que tínhamos qualidade.»

Profecia ou timing feliz. Acredite no que quiser, mas na semana anterior ao jogo o extremo de 31 anos, que esta época voltou ao futebol turco após uma primeira passagem pelo Alanyaspor em 2016/17, até tinha comentado com o treinador que estava a prestes a atingir o chamado «ponto de rebuçado». «Sentia que estava a começar a chegar à minha melhor forma física disse-lhe isso. Ainda só tinha feito uma assistência [contra o Trabzonspor] esta época, mas estive em quase todos os lances de golos e sentia que as coisas iam chegar naturalmente, embora seja mais fácil aparecer quando a equipa está coletivamente bem», assume.

A vitória robusta permitiu a Gençlerbirligi respirar melhor. No ano em que voltou à liga após uma época no escalão secundário, o espectro de nova descida, ainda que numa fase ainda prematura, voltava a pairar sobre a equipa da capital turca, que entre 1989 e 2018 esteve sempre presente entre os grandes do futebol daquele país.

«O nosso principal objetivo é mantermos o clube na primeira divisão e queremos garantir a manutenção o mais rapidamente possível. Sabemos que o campeonato é competitivo, mas temos condições para isso: bons jogadores, uma boa equipa, um centro de treinos fantástico e um estádio praticamente novo, que partilhamos com o Ankaragücü, como fazem o Milan e o Inter», constata Candeias.

Com a casa às costas desde há cinco anos

Três boas épocas de elevado nível ao serviço do Nacional chamaram a atenção do Benfica em 2014. Livre para decidir o futuro após o fim do contrato com a equipa madeirense, Daniel Candeias assinou pelos encarnados. Na altura, Jorge Jesus, então a prestes a iniciar o sexto e último ano no comando técnico das águias, chegou mesmo a elogiar publicamente o jogador, dizendo que era um dos que mais dores de cabeça davam à sua equipa enquanto adversário.

Só que nem com ele conseguiu fazer parte do plantel das águias. «Dava-me moral e depois só me disse que podia ser emprestado. Eu disse-lhe que para isso continuava a minha vida noutro lugar. Assinar por um grande só para dizer que assinei não vale de nada para mim.»

Num jogo com o Valência na pré-época de 2014/15

Em menos de três anos de ligação ao Benfica, quatro empréstimos e malas feitas para outros tantos países. Nuremberga, Granada, Metz e Alanyaspor; Alemanha, Espanha, França e Turquia.

Maisfutebol – Que impacto tem toda esta instabilidade para um jogador?

Daniel Candeias – Andar sempre a saltar não é bom. Não é fácil, nem para mim nem para a minha família. Demonstrei em Portugal que tinha qualidade e sinto que tinha capacidade, mesmo não sendo titular, para ajudar e ter uma oportunidade no Benfica. As pessoas não acharam o mesmo. Em vez de andar a saltar de clube em clube, teria sido preferível terem-me vendido mais cedo.

MF – O Benfica foi uma opção da qual se arrepende?

D.C. – Na altura achei que era a melhor decisão para mim. Acreditava na minha qualidade. Mas, se soubesse o que sei hoje, talvez não tomasse essa decisão. Mas nunca sabemos o que vai acontecer. Às vezes trabalho e dedicação não chega no futebol…

MF – Quantas pré-épocas fez no Benfica?

D.C. – Só a primeira.

MF – Nunca mais se colocou a hipótese de integrar a equipa principal?

D.C. – Nunca. Embora os meus empréstimos se tenham decidido quase sempre até à última. Tinha de pedir para ir treinar para o Seixal.

MF – Chegou a sentir-se abandonado pelo clube?

D.C. – Não quero dizer isso, mas acho que realmente merecia outro tipo de respeito.

 

Daniel Candeias no estrangeiro

2009/10

Recreativo Huelva (Espanha)

2014/15

Nuremberga (Alemanha)

2014/15

Granada (Espanha)

2015/16

Metz (França)

2016/17

Alanyaspor (Turquia)

2017/18 e 2018/19

Rangers (Escócia)

2019/20 -

Gençlerbirligi (Turquia)

 

A afirmação no Rangers, Gerrard e um diretor desportivo «anti-portugueses»

Em 2017, Daniel Candeias deixou definitivamente o Benfica para assinar pelo Rangers. A continuidade no futebol turco esteve em cima da mesa, mas o extremo português optou pela histórica equipa escocesa.

«A minha intenção era ficar vários anos na Turquia. Mas na altura recebi uma chamada do mister [Pedro] Caixinha e não podia dizer não a um clube como o Rangers e deixar de ter a experiência de jogar naquele grande clube e na Liga Europa.»

Candeias fala em dois anos fantásticos em Glasgow. Foram 96 jogos, 14 golos, muitas assistências e uma distinção de melhor do ano para os adeptos de um clube que ainda procura a vitalidade de outros tempos após uma crise severa que o atirou para o quarto escalão.

«Encontrei condições fantásticas, ao nível dos melhores. Senti que aquele clube tinha de estar no patamar a que está a chegar neste momento. Pelas condições e pelos adeptos que têm, merecem-no», diz, recordando o ambiente do Ibrox Stadium e o Old Firm, designação pela qual é conhecido o duelo da cidade entre Rangers e Celtic.

«Foi um orgulho ter participado nesse dérbi, que é considerado um dos melhores do mundo. Marquei um golo num jogo que não vencemos, mas isso vai ficar marcado na minha carreira. Já tinha vivido um ambiente fantástico na primeira vez em que joguei no estádio do Besiktas, na Turquia, mas depois de viver aquele dérbi e de ter noites europeias ali… É qualquer coisa.»

Na segunda época no Rangers, Candeias foi treinado por Steven Gerrard, que até então, e depois de terminada a carreira em 2016, só tinha passado pela formação do Liverpool. «É uma pessoa muito carismática e é respeitado por toda a gente. Está no caminho certo para vir a ser um grande treinador. Se pode atingir o patamar a que chegou como jogador? Acho que tem tudo para isso. É exigente, gosta de ensinar os jogadores, sabe transmitir a mensagem na hora certa e já está num clube enorme, com pressão para ganhar, mas ele está habituado a isso pela experiência que teve como jogador», refere.

Candeias assume que o Rangers foi o clube que mais o marcou e aquele em que sente ter deixado mais marca. «O carinho dos adeptos e as mensagens que ainda me enviam são sinal de que fiz um bom trabalho lá. As pessoas queriam que eu continuasse: tanto o treinador como os meus colegas, que até ao último dia não queriam que eu saísse. E isso fez-me pensar duas vezes.»

A relação pouco saudável com o diretor desportivo acabou por contribuir para «empurrá-lo» para fora do clube. «Ele não ia muito à bola não sei se com os estrangeiros ou se particularmente com os portugueses. Certo é que os portugueses que lá tinham estado acabaram por sair todos menos eu. Não podiam assumir que queriam que eu saísse, porque no primeiro ano fui considerado o melhor jogador para os adeptos e o melhor assistente da liga, mas eu sabia que ele tinha tentado que eu saísse. Este ano voltei a sentir isso e percebi que era o momento certo para sair», conta.

Ao serviço do Granada, onde esteve na segunda metade da época em 2014/15. «O campeonato espanhol foi o mesmo desafiante, mas acho que não aconteceu no momento certo. Cheguei em janeiro, quando a equipa já estava montada e sei que não joguei aquilo que sei que consigo. Agora estaria melhor preparado.»

«Nunca me senti inseguro na Turquia»

Nova paragem: Turquia, pela segunda vez.

Daniel Candeias chegou ao Alanyaspor no princípio de julho de 2016, numa altura em que a Turquia estava em estado de sítio. A 28 de junho, um atentado no Aeroporto de Istambul Atatürk, o maior do país, causou a morte de 42 pessoas.

Recentemente, foi notícia a forte possibilidade de a Turquia avançar com uma ofensiva militar contra os curdos no norte da Síria. «Nunca senti qualquer tipo de insegurança. Fala-se muito nas notícias, mas não vejo as pessoas intimidadas com o que quer que seja e também ninguém toca nesse assunto no balneário. Comentei isso há uns tempos, mas disseram-me que não há motivos para ficarmos alarmados. Quando se fala deste país, aborda-se quase sempre a parte má, mas a Turquia é um país fantástico», diz, garantindo não sentir qualquer tipo de constrangimentos num país com uma cultura amplamente diferente da portuguesa e no qual 98 por cento da população é muçulmana.

«Claro que pode depender das cidades: há umas com mentalidades mais fechadas, mas tanto aqui em Ancara como em Alanya sempre me senti em família. A minha mulher também anda na rua como em Portugal, sem problemas.» 

Com contrato pelo Gençlerbirligi até ao verão de 2021, Candeias quer manter-se na Turquia por mais alguns anos e novas páginas como aquela que escreveu com letras douradas no passado dia 19 de outubro serão bem-vindas.

Como aquela ou com pequenas nuances, até porque gosta mais de dar do que de receber. «Claro que fico contente por fazer golos, mas até fico mais feliz quando assisto. Prefiro fazer mais assistências do que golos», confessa.

Com a família: «A minha mulher já está mais do que vacinada a esta vida desde os tempos do Nacional.»

Artigo original: 28/10; 23h55

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