«Aqui é normal ver-se na rua jovens de 18 ou 19 anos com metralhadoras» - TVI

«Aqui é normal ver-se na rua jovens de 18 ou 19 anos com metralhadoras»

André Geraldes (arquivo pessoal)

André Geraldes, emprestado pelo Sporting aos israelitas do Maccabi Tel Aviv, em conversa com o Maisfutebol.

Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências. Sugestões e/ou opiniões: djmarques@mediacapital.pt ou rgouveia@mediacapital.pt

André Geraldes está emprestado desde o início da época pelo Sporting ao Maccabi Tel Aviv. O ceticismo inicial a respeito de um país em conflito foi eliminado rapidamente e hoje diz que gostaria de permanecer em Israel.

Em conversa com o Maisfutebol, fala das peripécias vividas, de carne de porco, do Shabbat e da preocupação dos israelitas pela segurança. A casa dele tem um abrigo (que ainda não usou) e o controlo é apertado nos aeroportos e até nos centros comerciais. «Sinto-me totalmente seguro», garante quem diz estar mais maduro do que nunca para enfrentar os desafios que o futebol lhe coloca.

Em campo, é titular indiscutível numa equipa que lidera o campeonato israelita e que tem uma defesa de betão: esteve 13 jogos seguidos sem sofrer golos, entre o final de agosto e o início de dezembro.

Sobre o Sporting, assume ter vivido momentos difíceis, lamenta a falta de oportunidades e diz não acreditar que irá tê-las no tempo que lhe resta de contrato. Mas vive bem com essa inevitabilidade. «Não guardo nenhum rancor.»

Maisfutebol – Porquê Israel?

André Geraldes – Foi uma oportunidade que apareceu. Eu sabia que não ia ter espaço no Sporting e havia que encontrar uma solução. Surgiu esta situação e pela equipa que também é, achámos que seria a melhor solução para mim.

MF – E que tal?

A.G. – Acertámos. Este clube é muito bom, um grande de Israel e o que tem mais títulos. No ano passado penso que foi campeão pela 23.ª vez, mas já não era campeão há algum tempo. Os adeptos são fanáticos no bom sentido e este ano voltámos ao Bloomfield Stadium, que é o estádio onde a equipa jogava mas que esteve em obras. Também por isso, porque é um estádio que lhes diz muito, esta época está a ser especial. Temos sempre uma boa casa e muito apoio nos jogos.

MF – Israel é um país que habitualmente não é notícia pelas melhores razões e que está há décadas em conflito com a Palestina. Essa imagem de insegurança fê-lo hesitar antes de aceitar ir para aí?

A.G. – Fez-me pensar no início, porque também tinha essa ideia. Tentei informar-me.

MF – Aconselhou-se com algum jogador?

A.G. – Falei com o Nick Blackman, que já tinha estado aqui e voltou este ano. Perguntei-lhe mais pelo clube, nem tanto pela cidade. Claro que também tinha essa ideia [de insegurança], mas depois de chegar percebi que não era assim, embora em Gaza, nas fronteiras mais a sul, volta e meia haja conflitos. Mas até hoje só apanhei um susto uma vez, por volta de outubro.

As casas têm um quarto blindado, para onde devemos ir em caso de ataque. Já houve situações em que houve casas destruídas e o quarto ficou intacto»

MF – O que aconteceu?

A.G. – Acordei de manhã com uns estrondos. O sistema de defesa antiaérea deles faz com que eles rebentem os mísseis no ar. Mas foi o único susto. Ao início não me apercebi do que se tratava. Comecei a ouvir umas sirenes, mas pensei que fosse algum acidente. Só que depois comecei a falar com colegas de equipa e o treino até foi cancelado. Foi um acordar diferente, nunca mais se repetiu. Mas no dia a dia não se sente qualquer ambiente de conflitos. Sinto-me totalmente seguro, não há problemas nenhuns e posso andar na rua a qualquer hora.

MF – Há alguma espécie de protocolo para as pessoas adotarem em caso de perigo iminente?

A.G. – Há sirenes que tocam nas zonas para onde se dirigem os mísseis e as casas têm um quarto blindado, que é o chamado safe room, para onde devemos ir em caso de ataque. Já houve situações, mais a sul, em que houve casas destruídas e o quarto ficou intacto.

MF – Todas as casas têm esses abrigos?

A.G. – Acredito que as mais antigas possam não ter, mas o apartamento onde eu estou, com dois ou três anos, tem. E os meus colegas também têm esse quarto nas casas deles. Quando toca a sirene, o protocolo é refugiarmo-nos aí.

MF – Naquela única vez refugiou-se?

A.G. – Fui apanhado completamente de surpresa. Nem tive tempo para reagir, porque nem me lembrei do protocolo.

Com a mulher, Patrícia, e a filha, que já fala hebraico. Lá atrás, o Mar Morto, cujas margens estão 400 metros abaixo do nível do mar

MF – Há uns anos, o Maisfutebol falou com o Miguel Vítor, que continua no Hapoel Beer Sheva. Lembro-me que ele disse ser comum ver pessoas na rua com metralhadoras. Aí em Tel Aviv também é assim?

A.G. – Os estudantes, quando acabam o ensino secundário, têm a obrigação de ir ao serviço militar. Por isso, é normal ver-se jovens com 18 ou 19 anos a andarem pela rua com metralhadoras. Vê-se bastante, sim.

MF – Nota que há uma certa obsessão pela segurança?

A.G. – Noto. Mas é normal, pelo facto de o país ter estes problemas. O serviço militar, por exemplo, é obrigatório para homens e mulheres. Procuram preparar as pessoas.

MF – Mas já sentiu na pele esse controlo?

A.G. – À chegada ao país fazem-nos muitas perguntas. Querem saber o nosso passado, porque é que viemos, onde estivemos, etc. Uma vez, a minha mulher e a minha filha iam viajar e eu só ia depois porque ainda tinha treinos. Fui levá-las e perguntaram-me porque é que eu, enquanto marido, não viajava com a minha mulher e a minha filha. Fazem muitas perguntas.

MF – E mais?

A.G. – Nos centros comerciais, um pouco à semelhança do que apanhei na Turquia [n.d.r.: jogou no Istambul Basaksehir em 2012/13], temos de abrir a mala no parque de estacionamento e pôr as coisas de lado, como fazemos nos aeroportos. Percebo isso e não me choca.

MF – A sua mulher e a sua filha têm estado sempre aí consigo?

A.G. – Vieram uma semana depois de eu chegar. Estamos a adaptar-nos bem, a minha filha anda num jardim de infância e até já fala hebraico.

MF – Melhor do que os pais, suponho.

A.G. – Fala, fala [risos]. Mas fala mesmo! Tem dois anos e meio e é incrível. Quando estamos com alguém que fala hebraico, ela percebe tudo. Os miúdos apanham rápido.

MF – Mas o inglês também é uma língua muito falada em Israel, certo?

A.G. – Sim, e isso é ótimo. Principalmente no clube. Lembro-me que na Turquia tinha colegas com quem não tinha comunicação, porque o inglês deles era mesmo zero. Aqui, dentro do clube toda a gente sabe falar inglês e ter uma conversa minimamente básica.

MF – E relativamente à cidade? Já conhece bem Tel Aviv?

A.G. – Acho que já conheço os principais locais. Vivo mais ou menos a dez quilómetros do centro da cidade, relativamente perto do centro de treinos, também por causa do trânsito. Posso demorar 15 minutos ou mais de uma hora para chegar a Tel Aviv, dependendo da altura do dia. Gosto muito da cidade, embora seja cara para se viver.

MF – Restaurantes, supermercados…?

A.G. – Tudo. Restaurantes caros e nos supermercados gasta-se o dobro do que em Portugal pelas mesmas coisas. E mesmo as lojas: a Zara é mais cara e até o IKEA. Nós, jogadores, quando estamos fora recorremos muito ao IKEA.

MF – E a alimentação? Come-se mais caro, mas pelo menos bem?

A.G. – Não têm o peixe que nós temos, mas também se come bem, depois de começarmos a perceber os restaurantes onde devemos ir. Do que eles têm cá, gosto de húmus. De molhar com o pão [risos]. Mas a comida típica deles, com muitas especiarias, não é o meu tipo.

Primeira fase do campeonato terminou este fim de semana, com o Maccabi Tel Aviv na liderança, sem qualquer derrota e com seis pontos de vantagem sobre o segundo classificado. Segue-se agora a fase de apuramento do campeão (foto: Instagram Maccabi Tel Aviv)

MF – Voltando ao Maccabi Tel Aviv, que introduziu no início da conversa. Encontrou boas condições de trabalho?

A.G. – Sim, sim! Temos um centro de treinos que não é muito recente, mas que tem boas condições e há pessoas 24 horas disponíveis para o que precisarmos. No nosso estádio não jogamos só nós. É um estádio do Estado, onde jogamos nós, o Hapoel Tel Aviv e o Bnei Yehuda.

MF – Dei uma vista de olhos no vosso plantel e reparei que não é o único jogador português. Está também aí o Jair Amador, que até nem tem registos no futebol português.

A.G. – Ele diz que é de Espanha [risos]. Penso que nasceu em Portugal, mas foi para Espanha quando ainda era pequeno.

MF – Mas seguramente que ajuda ter na equipa colegas com essa proximidade linguística. Português, castelhano…

A.G. – Sim. O guarda-redes é brasileiro e o Jair e o Saborit [lateral espanhol] ajudaram-me a adaptar-me. Deram-me algumas indicações importantes: fazer isto, cuidado com isto ou aquilo, ou sítios onde devia ir.

«Tenho de me adaptar nos dias dos jogos no Shabbat: como eles não utilizam aparelhos eletrónicos nesse período, não posso comer uma torrada, nem beber um café expresso»

MF – Aconselharam-no a evitar algo?

A.G. – Não há muitas coisas a evitar. Mas falaram-me, por exemplo, do Shabbat, que eu inicialmente não sabia o que era. Basicamente, o nosso fim de semana aqui é entre sexta e sábado, e os mais religiosos nem pegam no carro neste dia [n.d.r.: entre o pôr do sol de sexta e o pôr do sol de sábado]. E explicaram-me outras coisas.

MF – Questões mais culturais?

A.G. – Também. O significado de alguns feriados e algumas coisas que não fazem: por exemplo, não bebem leite depois de comerem carne e outras curiosidades. Também já sei em que supermercados posso encontrar certos produtos: encontrar algum porco, por exemplo, não é fácil nestes países.

MF – Houve alguns hábitos que teve de adotar?

A.G. – Continuo a fazer o que fazia em Espanha no ano passado. Tenho de me adaptar nos dias dos jogos no Shabbat: como eles não utilizam aparelhos eletrónicos nesse período, não posso comer uma torrada, nem beber um café expresso [risos]. Mas, tirando essas exceções que respeito, faço o meu dia a dia normalmente.

Ao centro. Esta época, André Geraldes soma 27 jogos e 25 em 26 possíveis no campeonato de Israel

MF – Que balanço faz destes meses em Israel?

A.G. – Embora tenhamos falhado no início da época na Europa, a nível coletivo estamos bem. O principal objetivo era o campeonato e temos estado muito, com alguns recordes batidos pelo meio. Estivemos muito tempo sem sofrer golos e mesmo agora só temos sete em 26 jogos.

MF – Isso dá-lhe um gosto especial enquanto defesa?

A.G. – Sim. Embora toda a equipa defenda, há sempre mais algum trabalho dos defesas. Essa é sempre a nossa primeira tarefa e é bom sermos reconhecidos com recordes, que é o que fica. E a nível individual tenho jogado praticamente sempre e as coisas estão a correr-me muito bem.

MF – Sente que esta está a ser uma das melhores épocas da sua carreira?

A.G. – Sim. Talvez também porque sinto que, entre todas as experiências que já tive na minha carreira, esta é a altura em que estou mais maduro. Acredito que esteja a ser a minha melhor temporada em termos individuais.

MF – E relativamente à luta pelo título? Quem lhe parece que será o grande adversário do Maccabi Tel Aviv até ao fim do campeonato?

A.G. – Penso que a luta será um bocado a dois, pela distância a que já está o terceiro. No futebol tudo é possível, mas penso que será entre nós e o Maccabi Haifa.

MF – Está emprestado pelo Sporting até final da época. Gostava de ficar mais tempo?

A.G. – Sinceramente gostava. Encontrei um país muito tranquilo, a minha família está bem aqui, o clube enche-me as medidas, estou a jogar e já me sinto acarinhado na rua. Via com bons olhos continuar aqui.

Em 2016/17, ao serviço do V. Setúbal num jogo no Estádio da Luz. Diferendo a meio da época entre o Sporting e os sadinos fez com que regressasse aos leões. «As coisas estavam a correr-me muito bem», lamenta

MF –Desde que está ligado ao Sporting [2014], só no primeiro ano não esteve emprestado. Como é que lida com esta indefinição constante?

A.G. – A parte mais complicada é sempre terminar uma época, começar a pré-época seguinte e ainda não saber o que vai acontecer. Mas custou-me mais nas primeiras vezes, agora estou vacinado [risos]. O importante é pensar no presente e depois logo se vê: não vale a pena fazer grandes planos, porque as coisas não dependem só de nós.

MF – Mas alguma vez se sentiu a ir abaixo por as coisas não correrem como pretendia?

A.G. – A primeira época no Sporting, com o Marco Silva, foi complicada. Por vários motivos não tive hipóteses de jogar muito, só joguei praticamente na Taça da Liga. Houve outros momentos complicados.

MF – Em 2016/17, em Setúbal?

A.G. – Sim. Há uma confusão entre os clubes e temos [n.d.r.: Ryan Gauld também] de voltar ao Sporting. As coisas estavam a correr-me muito bem e estava a jogar com o mister José Couceiro. Percebi que a época seria complicada daí para a frente. Falou-se em ir para o Chaves e aí o mal seria menor, porque entre a II Liga [Sporting B] e a primeira, preferia jogar na primeira. E eu tinha dado os passos certos, a saltar de divisões e as coisas estavam a correr-me bem. Mas por outro lado, dentro do cenário que tinha, o importante era não parar, ter o máximo de ritmo de jogo e fiz aquela meia época na II Liga. Foi difícil, mas tive o apoio da minha família, que foi fundamental para me ajudar a seguir em frente.

Impor-me no Sporting? Sei que isso é praticamente impossível»

 

MF – Tem contrato com o Sporting até quando?

A.G. – Por mais dois anos.

MF – Ainda é um objetivo impor-se um dia no Sporting? Ou vive em paz com a possibilidade de isso nunca vir a acontecer?

A.G. – Sei que isso é praticamente impossível, até porque já passaram bastantes anos e até agora isso não aconteceu. Mas não guardo nenhum rancor. Não aconteceu por vários motivos: por demérito meu na primeira pré-época e porque também nunca tive uma oportunidade real. Mas não penso muito nisso, sinceramente. Não deu e agora é aqui: é acabar estes dez jogos que faltam em grande e depois logo se vê o que vai acontecer.

MF – Já disse que gostava de ficar em Israel, mas não pensa em regressar a Portugal a médio-prazo?

A.G. – Sinceramente não. Quero continuar no estrangeiro. Pode vir a acontecer, mas prefiro continuar cá por fora.

MF – Pela questão financeira? Pelo ambiente pesado que se vive no futebol português?

A.G. – Um pouco por tudo. E aqui jogo num estádio com 25 mil pessoas. Em Portugal, um ambiente num jogo entre equipas do meio da tabela não é comparável. Já no ano passado vivi uma experiência totalmente diferente [no Sp. Gijón]. A atmosfera é outra.

Artigo original: 02/03; 23h50

Continue a ler esta notícia

EM DESTAQUE