«Estou mais seguro na China do que na Europa» - TVI

«Estou mais seguro na China do que na Europa»

João Silva

João Silva voltou à China em março e tem estado de quarentena, a treinar fechado num quarto, a contar os dias para voltar ao relvado

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Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências. Sugestões e/ou opiniões: djmarques@mediacapital.pt ou rgouveia@mediacapital.pt

João Silva regressou à China há dez dias e conta ao Maisfutebol como é o que o país onde surgiu a pandemia do novo coronavírus conseguiu regressar à normalidade em poucos meses. O avançado está a acabar um período de quarentena, fechado num quarto do centro de estágios do clube, e garante que se sente mais seguro em Nantong, na província de Jiangsu, do que em Portugal que mantém as portas abertas à Covid-19. Uma verdadeira aventura do avançado que já foi companheiro de Mikel Arteta no Everton e de Paulo Dybala no Palermo.

«O que posso dizer é que estou ótimo aqui, estou a ser muito bem tratado. Sinto-me seguro, muito mais seguro se estivesse na Europa. Infelizmente a minha família não está aqui comigo, mas ainda bem que vim há uma semana porque se viesse agora talvez tivesse mais dificuldades para chegar à China em termos de voos», começa por contar João Silva.

A verdade é que João Silva tem andado a driblar o coronavírus e já voou duas vezes para a China este ano desde que assinou contrato com o Nantong Zhiyun em agosto de 2019 depois de terminar contrato com o Feirense no final da última época. Chegou já no final da temporada do campeonato chinês, ainda fez sete jogos, marcou dois golos e voltou a Portugal em novembro, de férias, numa altura em que o mundo ainda não tinha ouvido falar no famigerado vírus.

Passou o Natal com a família e regressou à China em janeiro, para o arranque da pré-temporada, quando começaram a surgir as primeiras notícias oriundas de Wuhan, o epicentro desta epidemia que meteu o mundo de pernas para o ar. «Terminei a época em novembro, fui de férias e em janeiro começou a pré-época. Ainda em janeiro tivemos uma folgazita e foi aí que surgiu a grande confusão do vírus. O clube mandou-me para casa. Voltei a Portugal, mas agora, em março, o clube voltou a chamar-me porque as coisas aqui já estão a normalizar».

Quando recebeu a chamada para voltar, João Silva ficou apreensivo, tal como a família. «Questionei o clube, perguntei se era mesmo seguro e garantiram-me que as coisas estavam a normalizar e tinha de voltar aos treinos. Claro que a família ficou apreensiva, com o vírus, havia muita incerteza, mas é normal. Mas se o clube me chamou é porque sabia que as coisas estavam controladas», conta. «Claro que é difícil, até porque estou sozinho aqui e tenho a família em Portugal, é uma situação complicada. Não temos datas para a minha mulher vir. O clube queria que voltasse, iam começar os treinos. Garantiram-me que as coisas estavam normalizadas, era seguro. Talvez esteja mais seguro aqui do que na Europa», destaca.

A China atacou a epidemia desde a primeira hora com uma quarentena forçada, constantes controlos de temperatura nas ruas e a imposição de uso de máscaras. Depois do crescimento brutal de infetados nos primeiros dias, a verdade é que a China conseguiu controlar o contágio e, ao fim de três meses, o país começa a voltar ao normal. «Na China, em geral, está tudo normalizado. As pessoas voltaram a trabalhar, já se vê pessoas na rua, mas sempre com muito controlo. Passei por Xangai e já se vê muita gente a rua, já há trânsito, pessoas a ir ao shopping e aos mercados».

«Meu Deus, estive dez horas dentro do avião»

João Silva está em Nantong, a pouco mais de cem quilómetros de Xangai e a quase 800 quilómetros de Wuhan, onde tudo começou. «Aqui não houve muitos casos, estou a duas horas e meia de Xangai. O rigor é tanto, houve tanto controlo que, tendo em conta as proporções do país, foi uma percentagem ínfima de casos aqui. A verdade é que o povo obedeceu às ordens do governo. Praticamente eles estiveram em quarentena 50 dias, todos fechados em casa», conta.

Medidas extremas, mas com resultados à vista, ao contrário do que está a acontecer na Europa. O medo vinha da China, mas agora é ao contrário, são os chineses que estão com medo do descontrolo da Europa e João Silva sentiu isso na pele. «Quando cheguei ao Aeroporto de Xangai, meu Deus, estive umas dez horas dentro do avião à espera que abrissem as portas. Há muito controlo, o aeroporto está vazio, para evitar multidões, mas controlam todos os passageiros que chegam do estrangeiro. Como chegam muitos voos internacionais, há uma longa espera. Estão muito organizados nesse aspeto porque agora são eles que estão com medo da Europa».

Mal saiu o aeroporto, João Silva foi encaminhado para o centro de estágios do clube. «À partida era para ficar isolado três ou quatro dias, mas, entretanto, como as coisas na Europa pioraram, o governo ordenou que em vez de três dias ficasse catorze, que fizesse uma quarentena normal», conta. João Silva regressou a 6 de março, portanto, está há dez dias em quarentena, fechado num quarto, a treinar por videoconferência e a contar os dias para se juntar aos companheiros no campo. «Estamos fechados no centro de treinos, como se fosse um estágio. O clube não quer correr riscos. Tenho estado fechado no quarto, mas no final da semana, em princípio quinta-feira, já vou poder treinar com a equipa».

Como tem estado em quarentena, João Silva não tem utilizado máscara, uma das imagens fortes do combate da China à epidemia, mas já sabe que vai ter de a usar. «Sim, aqui anda tudo de máscara, com todos os cuidados. Todos os europeus que chegam à China têm de fazer quarentena. Há um grande controlo nas ruas, praticamente é obrigatório andar de máscara. Agora estou de quarentena não uso, mas quando viajei para a China fui de máscara, até porque era obrigatório. Quando acabar a quarentena também vou usar. O clube ofereceu um kit de máscaras para cada jogador. Quando vamos para os treinos, mesmo aqui dentro do centro de treinos, temos de ir de máscara», conta. Um hábito que, para os chineses, não foi difícil de aceitar. «Toda a gente anda de máscara. Mesmo antes do vírus, por causa da poluição, nas grandes cidades já havia muita gente de máscara. Agora toda a gente usa, sem exceção».

«Acho que Portugal devia fechar já as portas»

João Silva acompanha de perto o que se passa na China, mas também assistiu às primeiras medidas impostas em Portugal e considera que o país está a encarar o problema com alguma ligeireza, particularmente no controlo de fronteiras. «Não percebi porque é que Portugal ainda não fechou as portas. Os países que entram em estado de emergência têm fechado as portas, Portugal ainda não está em estado de emergência, mas acho que devia fechar já as portas. Era uma forma de prevenir o que parece óbvio. Mais vale prevenir já do que deixar chegar a um estado mais crítico».

O avançado está preocupado com a família, tendo em conta as notícias que chegam de Itália e da vizinha Espanha onde o número de infetados e mortos cresce de dia para dia. «A Madeira já fechou as portas, mas ainda no domingo havia pessoas a chegar ao Porto sem controlo nenhum. O governo saberá o que é melhor para o país, mas pelo que temos visto por esse mundo fora acho que seria o melhor. O vírus chegou com força à Europa, não chegou ainda com força a Portugal, mas Portugal devia prevenir-se para não chegar com tanta força como aconteceu em Espanha e Itália. A ver se conseguimos evitar mortos. Portugal não tem uma grande estrutura e a coisa pode tornar-se grave, com a dimensão do que está a acontecer noutros países. Portugal está a tardar em tomas decisões drásticas».

A China serve como exemplo a seguir. «A China conseguiu aliviar a situação e voltar à normalidade com uma quarentena rigorosa. Foi assim que conseguiram combater o vírus. Toda a gente está a fechar as portas, Portugal ainda não tem mortos [foi anunciada esta segunda-feira a primeira vítima] e podia prevenir essa situação. A China esteve de quarentena e se o não tivesse feito, hoje os chineses se calhar não estavam a aproveitar o sol. Os parques já estão abertos. Ainda há controlo de temperatura, as pessoas andam de máscara, mas de resto voltou tudo ao normal. A Espanha está em estado critico e fechou as portas, acho que Portugal devia prevenir-se», insiste.

Nos últimos dez dias, João Silva tem estado fechado no quarto, mas sempre a trabalhar. «Treinamos em videoconferência, para manter a forma. Com bola, sem bola, como estão a fazer os jogadores da Juventus e nos outros clubes da Europa. Deixaram-me aqui uma bola e elásticos. Fazemos skippings, squats, burppies, um pouco de tudo. Só não chuto à baliza, de resto dou toques, faço técnica, faço tudo», conta. Trabalho por videoconferência, até porque o fisioterapeuta é alemão e também está de quarentena. «Viemos juntos no avião. Marcamos horários, fazemos exercícios por vídeoconferência. A equipa já está a treinar normalmente desde o dia 6, eu volto no final da semana. Os meus companheiros também estão a viver no centro de estágios, também por nossa segurança. É uma espécie de estágio, a vida segue em frente».

A nova temporada era para ter arrancado a 28 de fevereiro, mas foi adiada para 17/18 de abril. «Ainda não é oficial, mas ainda hoje vi notícias que diziam que estava tudo a ser preparado para começar em abril, vamos ver. Já vai começar com dois meses de atraso, até já se falou na possibilidade de anular a taça este ano», conta.

Quando João Silva chegou ao Nantong Zhiyu, o treinador era chinês e o avançado precisava de um tradutor. No entanto, ainda antes do final da época, chegou um treinador inglês, Gary White, e a situação inverteu-se. «Quando cheguei tinham-me de traduzir tudo, mas depois chegou um novo treinador para terminar a época e quem passou a precisar de tradutor foram os chineses», conta sorridente. A verdade é que, com esta confusão do coronavírus, Gary White não voltou ao clube e há uma certa incerteza quanto ao futuro da equipa técnica. «Acho que a equipa tem estado a treinar com um antigo jogador chinês, mas não sei se é provisório, até porque tenho estado aqui fechado no quarto e não me traduzem tudo o que se passa. Só quinta-feira é que vou começar a treinar no campo com eles», destacou ainda.

Da Vila das Aves, a Liverpool, Sofia e Sicília

Um avançado de 29 anos com uma carreira bem preenchida. Começou cedo, aos nove anos, no Desportivo das Aves onde fez toda a formação a marcar golos atrás de golos ao longo de onze anos. No primeiro ano como sénior, destacou-se como um dos melhores marcadores da II Liga, com catorze golos, e, em 2010, atraiu a atenção do Everton de David Moyes. Com vinte anos chegou a Liverpool cheio de expectativas, mas nunca chegou a jogar na Premier League. «Treinava sempre com a equipa principal, cheguei a ir à Carling Cup [Taça da Liga], mas jogava quase sempre nas reservas. Levava muito na tola do Moyes, dizia-me que um jovem tinha de trabalhar muito, mas aprendi muita coisa ali».

Sem espaço no Everton, João Silva queria jogar com mais regularidade. Já era internacional Sub-20 e era apontado como o futuro ponta-de-lança da Seleção Nacional. A solução passou por sucessivos empréstimos à U. Leiria e ao V. Setúbal na temporada de 2010/11. «Queria jogar, queria ir à seleção e optei por voltar a Portugal. Marquei quatro golos pelo Leiria, fiz dois golos ao Benfica [empate na Luz 3-3], e mais quatro pelo Vitória».

Em 2012 o Levski de Sofia comprou cinquenta por cento do passe de João Silva ao Everton e o avançado rumou à Bulgária onde se estreou na Liga Europa numa temporada que terminou em sobressalto. «Foi uma época que me correu muito bem a nível individual, mas acabou muito mal em termos coletivos porque perdemos o campeonato na última jornada. Só dependíamos de nós para sermos campeões, mas empatámos em casa e perdemos o campeonato para o Ludogorets por um ponto. Depois ainda perdemos a final da Taça para o Beroe nos penalties. Podia ter sido um ano de glória e acabámos sem nada».

Segue-se um novo capítulo em Itália onde João Silva representou quatro emblemas diferentes. Começou no Bari, na Série B, mas rapidamente deu o salto para a Série A, comprado pelo Palermo. «O meu primeiro ano no Bari foi espetacular, fiz oito golos, chegámos a levar 58 mil adeptos ao estádio [San Nicola]. Logo nesse ano apareceu o Palermo». Na Sicília João Silva voltou a perder espaço. «Era o Palermo do Franco Vázquez, do Andrea Belotti, do Dyabala. Estreei-me contra o Nápoles, foi o Dyabala que saiu para eu entrar. Fizemos uma boa campanha, mas individualmente foi mau porque joguei pouco».

Seguiram-se épocas turbulentas, primeiro com um empréstimo de seis meses ao Paços de Ferreira, depois com um regresso a Itália para jogar no Avellino e na Salernitana. João Silva, nesta altura, procurava estabilidade e, por isso, voltou a Portugal para assinar pelo Feirense por dois anos. «Fiz duas boas épocas, marquei golos, correu bem e no final tinha propostas de Portugal e de vários países». Entre os vários convites, havia um tentador de um clube da II Divisão da China, o Nantong Zhiyun. «Já tinha estado em vários países e eu, como aventureiro que sou, optei pela China».

João Silva já tinha estado em Inglaterra, Bulgária e Itália, mas a China era um mundo novo. Aterrou em Xangai, pela primeira vez, em agosto de 2019. «A nível cultural é bastante diferente das experiências que já tinha tido, a nível da comida, da mentalidade e cultura, mas é tudo uma questão de adaptação. Como jogador tenho a minha dieta, como grelhados, arroz, massa, não tive grandes problemas». Mas à sua volta era tudo diferente. «Eles comem uns ovos pretos que chamam ovos podres. São ovos mesmo pretos, dá nojo só de olhar. Comem uma espécie refogado com rãs, também já vi uma espécie de canja com galinha preta. Têm uma cultura muito diferente, mas por outro lado também comem muitas verduras», conta.

Agora que a situação está a normalizar, João Silva volta a ter objetivos pela frente. «Quero fazer uma época em grande, tenho mais um ano de contrato. Estou sereno, consciente do que posso fazer. Quero que isto normalize, quero sair desta situação critica e que o campeonato comece. Espero que este vírus vá embora de vez porque está a causar muitos danos e é preocupante estar a assistir a tudo isto», contou ainda.

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Artigo originalmente publicado às 23:54 de 16-03-2020

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