Marco Alves: o português que junta as peças do eneacampeão búlgaro - TVI

Marco Alves: o português que junta as peças do eneacampeão búlgaro

Marco Alves (arquivo pessoal)

Fisioterapeuta trabalhou com Vítor Pereira no Sp. Espinho, Santa Clara, FC Porto e na Arábia Saudita. Está no Ludogorets desde 2015 e até os rivais recorrem a ele para serem tratados

Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências. Sugestões e/ou opiniões: rgouveia@mediacapital.pt ou djmarques@mediacapital.pt

Infeções no joelho esquerdo e oito idas à sala de operações. Tudo por causa de uma maldita rotura do tendão rotuliano do joelho esquerdo em março de 2017. Vladislav Stoyanov, guarda-redes do Ludogorets e titular da seleção búlgara, ouviu o médico que o operou em Barcelona (onde esteve cerca de um ano entre operações e reabilitação), administrar-lhe a extrema-unção futebolística.

Stoyanov, um dos poucos guarda-redes que alcançaram a proeza de defenderem mais do que um penálti cobrado por Cristiano Ronaldo, acreditou, desafiou a medicina e voltou recentemente à competição, quase três anos depois do último jogo.

Marco Alves, fisioterapeuta do Ludogorets, foi o homem por detrás de uma recuperação «impossível». «Se acredito em milagres? Acredito. Dependem de mim e do jogador, mas a maior parte do mérito é do jogador. Ele passou por muito e mostrou muita força de vontade para voltar a jogar. Hoje está bem, a jogar, e vai voltar em breve à seleção da Bulgária», conta ao Maisfutebol.

Marco, 44 anos, é desde 2015 fisioterapeuta no Ludogorets, equipa que acaba de sagrar-se campeã búlgara pela nona vez consecutiva. Para o português são cinco campeonatos e três supertaças: oito títulos, mas todos eles com um sabor diferente daquele que conquistou juntamente com Vladislav Stoyanov depois de milhares e milhares de horas de reabilitação.

(em baixo à esquerda) A celebrar a conquista do nono campeonato seguido do Ludogorets, a 21 de junho

O trabalho invisível por detrás do sucesso e o reconhecimento dos rivais

Numa equipa todos contam. Se os jogadores e os treinadores são os rostos mais visíveis dos sucessos, há muita gente por trás a iluminar o caminho. Mas qual é o peso que um fisioterapeuta pode ter nas conquistas? Muito, quando um jogador recuperado em tempo recorde acaba por ser decisivo num jogo importante no regresso de uma lesão.

«Faço tudo o que estiver ao meu alcance para que recuperem o melhor e mais rapidamente possível, mas sempre com segurança. E isso já ajudou a dar alguns pontos e vitórias», reconhece.

Em quase cinco anos na Bulgária, o fisioterapeuta português, que trabalhou com Vítor Pereira no Sp. Espinho, Santa Clara, FC Porto e Al Ahli Jeddah (Arábia Saudita), tornou-se num nome reconhecido pela comunidade futebolística do país, ao ponto de passarem também pelas mãos dele atletas de equipas rivais, que chegam a fazer mais de 300 quilómetros desde Sofia para serem vistos por ele.

Um novo gigante alavancado por um multimilionário

Fundado em 1945, o Ludogorets tornou-se ao longo da última década na força hegemónica da Bulgária. Para isso contribuiu o forte investimento de Kiril Domuschiev, o terceiro homem mais rico do país, com uma fortuna avaliada em quase mil milhões de dólares.

Em 2011/12, época em que participou pela primeira vez na Liga búlgara, o clube de Razgrad, pequena cidade de 35 mil habitantes situada a 130 quilómetro do Mar Negro, sagrou-se logo campeão e na próxima época vai em busca de um inédito décimo título consecutivo.

Marco, que chegou à Bulgária pela mão de Bruno Ribeiro, com quem já tinha trabalhado no V. Setúbal, tem vivido por dentro o crescimento do Ludogorets. Nos últimos anos, o estádio, com capacidade para 10 mil pessoas, foi renovado e ampliado pelo menos três vezes e as infraestruturas do clube contemplam ainda duas academias: um para a equipa principal e outra para a formação.

Kiril Domuschiev é descrito como um homem generoso, mas também exigente. «Ele vive em Sofia, mas quando vem cá, toda a gente fica em sentido. Faz-se respeitar, mas também é aberto e dinâmico. Está sempre disponível para nos dar tudo o que sentirmos que é necessário para inovar. Hoje temos um departamento médico, que não tínhamos, e uma fisioterapia com tudo o que pedi», conta Marco Alves, que já conheceu o «outro lado» do dono do clube.

«Quando não ganhamos, não vale a pena pedir-lhe nada [risos]. Uma vez fomos jogar a 300 quilómetros de casa contra uma equipa que estava num dos últimos lugares. Não ganhámos, ele ficou irritado e obrigou-nos a fazer um desvio até Sofia para nos dar uma dura. Chegámos a Razgrad às 7 da manhã.»

Uma situação rara para o clube que quebrou a hegemonia dos gigantes da capital – o Levski e o CSKA Sofia – e que está sem perder para o campeonato há 34 jogos: desde 26 de abril de 2019.

Diplomacia em tempos de pandemia

O campeonato búlgaro esteve suspenso quase três meses devido à covid-19. Aparentemente, o país do leste europeu controlou com aparente eficácia a propagação da pandemia. Esta segunda-feira, dia em que foram confirmados 20 casos positivos em dois clubes, contabilizava menos de 6 mil contágios (um deles o proprietário do Ludogorets, já curado) e de 250 mortes causadas pela doença. Os jogos decorrem com público nas bancadas, limitadas a 30 ou 40 por cento da lotação máxima.

Tal como em quase todos os países europeus, as equipas da Bulgária suspenderam durante largas semanas os trabalhos de campo e tiveram de traçar planos de treino individuais inéditos ou perto disso. No caso do Ludogorets, a preparação para o regresso da Liga teve de ser feita em três semanas após o regresso aos treinos, que evoluiu gradualmente dos trabalhos de campo individualizados até ao treino conjunto.

Em San Siro, onde o Ludogorets defrontou o Inter a 27 de fevereiro para a Liga Europa: foi o primeiro jogo realizado à porta fechada na Europa devido à pandemia de covid-19

Marco Alves garante que hoje trabalha-se de forma diferente. Diferente até do que nos tempos pré-pandemia, até porque a condição física dos jogadores tem de ser gerida com pinças após uma espécie de pré-época diferente de todas as outras. «Os jogadores estiveram muito tempo a realizar um tipo de treino que não era habitual, como bicicleta, que cria outro tipo de adaptação. Foi um período muito longo que lhes trouxe grandes alterações fisiológicas e depois tivemos um outro período muito reduzido para preparar o regresso da competição.»

É aqui que entra a necessidade de uma simbiose quase perfeita entre fisioterapeutas, preparadores físicos e os treinadores, que procuram rendimento máximo em tempo recorde, situação que pode conduzir à ocorrência de lesões.

«Houve um curto período de tempo para colocar os jogadores ao mais alto nível e era necessário controlar bem as cargas, o que pode não acontecer quando os treinadores não têm um conhecimento transversal. E é por isso que temos visto lesões nos últimos tempos em quase todos os clubes. No nosso caso em concreto, tivemos três com gravidade desde a retoma: uma rotura do tendão de aquiles, uma de menisco e uma fratura do quinto metatarso. É uma fase difícil», assume.

As saudades de Portugal e a vontade de trabalhar perto de casa

Marco Alves imagina-se a ficar mais dois ou três anos na Bulgária. A família – mulher e os dois filhos – está lá como ele, todos falam búlgaro, mas Portugal é... Portugal.

«Tive a oportunidade de voltar nos últimos anos e também de ir para o Dubai. Mas gostava de voltar ao meu país e trabalhar num clube perto de casa», conclui o natural de Vale de Cambra, distrito de Aveiro. «Já pensei em montar uma clínica pela minha zona, mas tenho este bichinho do futebol, que transmite uma adrenalina especial.»

Talvez tenha sido por isso que Vladislav Stoyanov, o milagre de Marco Alves, também não desistiu. Pelo bichinho de um «vírus» saudável chamado futebol.

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