«Penso no que poderá acontecer-me se ficar infetado no Irão» - TVI

«Penso no que poderá acontecer-me se ficar infetado no Irão»

Rui Tavares (arquivo pessoal)

Rui Tavares é treinador de guarda-redes e está desde 2014 no país que tem sido o mais fustigado pela pandemia do novo coronavírus no Médio Oriente, mas diz que o povo está consciente da gravidade da situação. Cidade onde vive está cercada

Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências. Sugestões e/ou opiniões: djmarques@mediacapital.pt ou rgouveia@mediacapital.pt

O ano de 2020 acordou com a iminência de uma nova guerra no Médio-Oriente. A tensão entre Estados Unidos e Irão, com acusações permanentes de programas nucleares desenvolvidos para fins perversos e de atos bélicos, escalou para um ponto de quase não retorno após a morte do general Qassem Soleimani, comandante da força de elite iraniana Al-Quads, num ataque dos Estados Unidos.

Os receios de um conflito num país também marcado por conflitos internos, decorrentes da austeridade aplicada sobre o povo na sequência das graves sanções económicas impostas pelo ocidente, acabaram secundarizados pelo surgimento de um hospedeiro invisível: o novo coronavírus, que se aproveitou do menosprezo inicial dos políticos e de uma certa indiferença da sociedade para ir ganhando terreno.

Esta segunda-feira, 30 de março, o Irão contabilizava mais de 40 mil casos e perto de 3 mil mortes.

Rui Tavares, treinador de guarda-redes natural do Algarve, trabalha no Irão desde 2014. Atualmente no Sepahan, vice-líder da agora suspensa liga iraniana e equipa sediada em Isfahan, a terceira cidade mais populosa do país, traça-nos o retrato do que o rodeia e assume o desejo de voltar para Portugal, numa altura em que as ligações aéreas estão praticamente bloqueadas.

Maisfutebol – O Irão é um dos países com mais casos confirmados de Covid-19. Como está a viver a situação aí?

Rui Tavares – Com bastante apreensão. Estamos longe do nosso país e penso sempre no que poderá acontecer-me, por exemplo, se ficar infetado. Como é que vai ser? Isto deixa-me receoso, mas procuro gerir as coisas com calma, sem stress e tentando ter o máximo cuidado.

M.F. – Sente que seria mais fácil ter acesso a cuidados de saúde se estivesse em Portugal?

R.T. – Sim, sem dúvida. Porque é a nossa língua e eu aqui estou num país que é… o Irão, como o próprio nome indica. Toda a gente sabe que está um pouco mais atrasado em relação a algumas coisas.

M.F. – As notícias que nos chegam do Irão são limitadas, mas parece unânime que o Governo tardou a aplicar medidas de combate à pandemia. Tem essa perceção?

R.T. – Acho que sim, mas abro um parêntesis. Acho que todos os países demoraram tempo a reagir. Não ativaram o que tinha de ser feito logo. Mesmo na Europa! Até no caso de Portugal, se o Governo tivesse sido mais rápido a reagir, os casos seriam menores. É a perceção que tenho em relação à experiência que tenho vivido aqui, ao que já vimos na Europa e até na China, onde as coisas estão a entrar na normalidade.

M.F. – Que retrato traça da situação na cidade onde está? É muito preocupante?

R.T. – Há coisa de três/quatro dias havia um grande número de pessoas infetadas, embora não tenha dados exatos.

M.F. – Não tem ideias dos números?

R.T. – Há 15 dias falava-se em 2 mil. Penso que agora o número seja bem superior.

Com Miguel Teixeira, treinador adjunto do Sepahan

M.F. – Sente a situação descontrolada?

R.T. – Não sei ao certo com estão as coisas, porque eu estou sempre em casa e só saio para ir ao supermercado, que é a dois minutos daqui. Tento também estar sempre informado através de pessoas amigas que tenho aqui e estou sempre em contacto com a embaixada portuguesa em Teerão.

M.F. – E nessas idas ao supermercado? Vê gente na rua?

R.T. – Escolho sempre o mesmo horário para sair. A partir das duas da tarde não há ninguém na rua. Ontem saí por volta das duas e meia da tarde e se encontrei quatro pessoas na rua foi muito. Também não vi nenhum polícia na rua e sinto as pessoas consciencializadas. Também tem havido muitos apelos por parte de médicos e enfermeiros através de vídeos: dói ver o que aquelas pessoas estão a passar e talvez isso também contribua para que o povo iraniano acate as indicações.

M.F. – As medidas que estão a ser aplicadas no Irão são semelhantes às de Portugal?

R.T. – Em algumas coisas sim. Eles fecharam logo as escolas e as universidades há coisa de um mês e meio. Agora, todas as lojas, exceto farmácias e supermercados, estão encerradas. E há cinco dias encerraram as saídas de umas cidades para as outras. Adotaram esse sistema, possivelmente porque não estavam a conseguir controlar os casos…

M.F. – Isfahan está isolada, então…

R.T. – Está isolada, sim.

M.F. – Sente-se seguro?

R.T. – Não posso dizer que sinta insegurança. Já vivi momentos complicados aqui, mas nunca senti insegurança.

M.F. – Que momentos foram esses? No início do ano houve um período de maior tensão entre os Estados Unidos e o Irão.

R.T. – Essa foi a segunda situação este ano. Na primeira, o povo manifestou-se imenso contra o aumento dos combustíveis aqui. Perto da minha casa, a 400 ou 500 metros, pegaram fogo a um banco pertencente ao Estado. E isto aconteceu pelo país inteiro. Muitas manifestações e bancos e transportes públicos queimados. Ficamos sempre apreensivos quando nos vemos no meio destas situações. Estamos sempre a pensar no que poderá acontecer, mas é um dia de cada vez.

M.F. – Equacionou voltar a Portugal em alguma dessas situações?

R.T. – Sim! Tenho uma filha com dez anos e tento tranquilizar sempre a minha família e a minha esposa. Eu amo aquilo que faço, estou aqui a representar o meu país e a tentar evoluir como profissional, mas por vezes pomos uma balança imaginária no nosso pensamento. Será que vale a pena?

M.F. – E para que lado pesa agora a balança?

R.T. – Regressar a Portugal, certamente.

M.F. –Tem data prevista para voltar? Já fez diligências nesse sentido?

R.T. – Não tenho data prevista, mas vou mantendo contacto com a embaixada, no sentido de ver o que acontecerá nos próximos tempos, que se adivinham difíceis. Estou também à espera de uma resolução da Federação Iraniana de Futebol e até do próprio clube, para ver o que se pode fazer.

M.F. – A sua vinda para Portugal está dependente, por exemplo, do cancelamento das competições?

R.T. – À partida será por aí, embora possam surgir outras situações que me levem a tomar uma decisão na mesma. Mas está muito complicado para sair do país agora. As ligações aéreas estão bloqueadas.

M.F. – O campeonato iraniano jogou-se até ao final de fevereiro. Como estava a situação nessa altura no país?

R.T. – Já se ouvia falar em muitos casos e nós não compreendíamos o porquê de os jogos e os treinos continuarem.

M.F. – Mas havia medidas de contingência?

R.T. – O nosso último jogo para o campeonato já foi sem adeptos nas bancadas.

M.F. – Os treinos foram logos interrompidos quando o campeonato foi suspenso?

R.T. – A nossa equipa até foi a única que manteve os treinos por mais duas ou três semanas, até 18 de março, por volta do novo ano deles. Andámos a treinar sem objetivos. Não se pode dizer que tenha sido o melhor para todos.

M.F. – Com que estado de espírito é que saía de casa todos os dias para ir para os treinos?

R.T. – Nós tentamos batalhar diariamente contra nós próprios. Eu até falava com o Miguel Teixeira, o primeiro assistente, que também é português, e dizia-lhe que aquilo era contra tudo o que o mundo estava a fazer. Se diziam às pessoas para ficarem em casa, qual era a lógica de irmos treinar. Mas quem manda é que determina as regras. Costumam dizer que sou o presidente do sindicato, porque estou sempre a reclamar com as coisas [risos].

M.F. – Há alguma previsão para o regresso aos treinos e o reatamento das competições?

R.T. – A AFC, a entidade que regula o futebol na Ásia, emitiu um comunicado a dizer que a Liga dos Campeões possivelmente vai arrancar em agosto. Relativamente ao campeonato no Irão e treinos, ainda não sabemos de nada. Não há qualquer data prevista.

Com Payam Niazmand, guarda-redes do Sepahan. «Consegui uma coisa pela qual andei sempre a batalhar: ter o melhor guarda-redes da Liga iraniana», conta

M.F. – Está no Irão há cinco anos, é isso?

R.T. – Esta é a minha sexta temporada. Cheguei em 2014. Estive no Tractor duas épocas e meia, uma e meia com o mister Toni. Depois estive no Zob Ahan uma época e esta é a minha segunda época no Sepahan.

M.F. – Como surgiu a possibilidade de ir para aí?

R.T. – Eu estava no Quarteirense, no CNS, quando o meu empresário, o Rui Gomes, falou com o mister Toni, que precisava de um treinador de guarda-redes. Houve esse contacto e começou assim.

M.F. – Mas o que é que pensou quando essa janela do Irão se abriu? Que ideia tinha do país?

R.T. – [Risos] Recordo-me perfeitamente de a minha mãe ficar alarmada na altura quando contei aos meus pais que tinha esta possibilidade. A realidade é que quando ouvimos falar no Irão é sempre pelos piores motivos. Mas o que lhes disse a eles e à minha esposa era que se o mister Toni ia para o Irão há tantos anos, era sinal de que era suportável. Se assim não fosse, ele não iria para o Irão.

M.F. – Faz sentido.

R.T. – Claro que foi um choque quando cheguei cá. Lembro-me que fomos ver um jogo do Tractor, que jogava numa cidade que não estava desenvolvida. Chegámos à noite, sem grande visibilidade e de manhã, assim que acordei, a minha ideia foi logo ir à janela. Foi uma desilusão completa: ‘Onde é que eu vim meter-me?!’

M.F. – O que é que tinha no horizonte?

R.T. – Um descampado com tudo partido. Fiquei completamente derrotado naquele momento [risos]. Mas ponderei, porque também estava com outros portugueses. Lembro-me que eu e o Rodolfo, que esteve recentemente no Sporting e que agora está nos sub-23 do Bahrein, olhámos um para o outro e não dissemos nada. Mas mais tarde o Rodolfo puxou esse acontecimento numa conversa e percebemos que o nosso sentimento foi o mesmo: ficámos assustados. Mas as coisas foram caminhando. É uma cultura completamente diferente: do ponto de vista social e desportivamente.

M.F. – E que retrato traça agora do Irão?

R.T. – Vou ser eternamente grato a este país. Apesar de ter trabalhado na I Liga em Portugal [n.d.r.: Olhanense], foi aqui que atingi outros patamares. Há coisas boas e coisas péssimas, mas tenho de me adaptar.

M.F. – Tem sido feliz aí?

R.T. – Este ano tem sido bastante difícil, tanto a nível pessoal como desportivo. Estando longe da nossa família, nunca estamos inteiramente felizes, mas tenho-me agarrado a outras coisas que me têm dado bastante alento esta época. Consegui uma coisa pela qual andei sempre a batalhar: ter o melhor guarda-redes da Liga iraniana [Payam Niazmand]. E conseguiu também bater o recorde de tempo sem sofrer golos: foram 14 jogos. Essas coisas dão-me bastante alento.

Artigo original: 30/03; 23h50

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