De um campo de futsal gasto ao Estádio da Luz - TVI

De um campo de futsal gasto ao Estádio da Luz

Moreirense-Benfica

Florentino nasceu em Angola, mas mudou-se com a família para Portugal com um ano. Começou no futsal em Tercena, saltou para o Real SC e chegou ao Benfica em 2010. Discreto nos primeiros tempos no Seixal, «explodiu» nos últimos anos e já leva oito jogos na equipa principal das águias: «Vai ser um número seis de topo», vaticina João Tralhão

Cândido Cesário era quem orientava os miúdos naquele rinque de futsal descoberto, a escassas centenas de metros do IC19 e da casa onde vivia na altura aquela que é agora uma das coqueluches emergentes do Benfica.

«Quer falar do Florentino?», dispara assim que o jornalista do Maisfutebol se apresenta.

A partir daqui, Cesário refere-se ao médio nascido em 1999 no Lobito, Angola, como «Júnior». Era assim que a mãe, Laura, o tratava, e foi também esse o nome pelo qual ficou conhecido ali naquele pequeno núcleo.

«Lembro-me que ele apareceu lá com a mãe. Tinha uns sete anos e vi logo que tinha um potencial fantástico. E eu pedi à mãe: ‘Não me deixe fugir este miúdo, porque ele vai ter um futuro incrível’. Do Júnior eu não me esqueço, porque quando tínhamos de ganhar jogos punha-o a ele e ao meu filho.»

Cesário, hoje afastado das atividades do Grupo Recreativo de Tercena, desfia memória atrás de memória daqueles tempos. Diz, por exemplo, que era ele quem fazia as sandes para a miudagem e fala «do Júnior» com orgulho indisfarçável.

«Treinei-o dois ou três anos, fui muitas vezes buscá-lo e levá-lo a casa e participávamos em torneios aos fins de semana. Se ele marcava muitos golos? Muitos. Agarrava na bola e nós é que tínhamos de contê-lo, porque ele só queria ir para a frente. Mas nos jogos mais importantes conseguia defender e atacar bem. Já tinha muito espírito de luta», recorda.

Campo do Grupo Recreativo de Tercena, onde Florentino começou a jogar como federado. Jogador do Benfica nasceu em Angola em 1999 e chegou a Portugal com um ano

Florentino Ibrain Morris Luís haveria de chegar ao Benfica em 2010, com onze anos. Mas pelo meio, já depois de começar a dar os primeiros passos no futsal, saltou para o Real de Massamá.

Pedro Gasparinho, que continua hoje ligado ao clube da linha de Sintra, não recorda a passagem de Florentino pelo clube com a maior das exatidões, mas não se esquece do essencial.

«O irmão mais velho dele, o Izequiel, era nosso jogador nos iniciados e eu treinava ’os’ escolas. Veio ter comigo, disse-me que o irmão jogava numa equipa de futsal da zona e pediu-nos para o observarmos nas captações», conta.

«Ele jogava como defesa e destacou-se logo por duas razões: já era muito alto, mais alto do que a maioria dos miúdos da idade dele, e estava sempre calmo. Não inventava, jogava simples e não cometia erros.»

Discreto nos primeiros anos no Seixal

Esses atributos chamaram a atenção de quem foi recolhendo informação sobre ele ao longo da época 2009/10 por parte do Benfica, contra quem chegou a jogar várias vezes, inclusive nos Pupilos do Exército, campo de treinos usado pela formação encarnada e que tem vista para o Estádio da Luz.

Forte no desarme, na antecipação, bom nas ações de tackle e dificuldades no jogo aéreo defensivo foram alguns dos elementos anotados. Até ao final da época, Florentino fez alguns treinos de adaptação e no ano seguinte mudou-se de vez para os encarnados.

Depois de dois anos na Luz e nos Pupilos, transitou para o Seixal em 2012/13 e, quando assinou contrato profissional, em 2015, passou a residir no centro de estágios: paralelamente aos treinos, estudava ali perto numa escola secundária com a qual o Benfica tem um protocolo de colaboração.

Num jogo de futebol de sete quando ainda jogava no Real. Terceiro a contar da esquerda (arquivo pessoal: Pedro Gasparinho)

João Tralhão, que esteve quase 20 anos na formação das águias e treinou Florentino nos juniores, fala de um jovem que teve um percurso evolutivo muito próprio e que até nem deu muito nas vistas nas primeiras épocas ao serviço dos escalões de formação das águias.

«Nos primeiros anos de Seixal foi algo discreto. Já se previa um grande potencial, mas não era um jogador que se tivesse evidenciado logo de início pelo rendimento alto. Há miúdos que chegam aos seniores e que têm um rendimento alto desde pequenos e há outos que só o manifestam mais tarde. São questões de maturação. Não de maturidade, mas sim de maturação. Todos os jovens crescem a velocidades distintas e ele estava num estado diferente quando era mais jovem», recorda em conversa com o Maisfutebol.

Da estreia na Liga aos palcos europeus em quatro dias

Nos escalões de formação, Florentino venceu campeonatos nacionais nos iniciados (sob o comando de Luís Nascimento, irmão de Bruno Lage) e nos juniores, esteve presente numa final da Youth League (2017), num Mundial sub-20 com 17 anos e fez parte das seleções campeãs europeias sub-17 (2016) e sub-19, já em 2018. Nesta prova foi um dos quatro totalistas da equipa de Hélio Sousa.

A estreia no futebol sénior aconteceu a 11 de setembro de 2016, numa vitória do Benfica B sobre o Académico Viseu por 2-1 no Seixal. Até ao final do ano foi utilizado esporadicamente por Hélder Cristóvão, mas a partir de janeiro começou a figurar com regularidade no onze da equipa treinada pelo agora diretor-geral dos sauditas do Al Nassr.

Momentos antes da estreia oficial pelo Benfica. O médio tem contrato com o clube da Luz até 2023 e uma cláusula de rescisão de 60 milhões de euros

Em outubro de 2018, Luís Filipe Vieira indicou publicamente os nomes de quatro jogadores que fariam parte da equipa principal a partir da época 2019/20: Jota, Ferro, Florentino e, «possivelmente», Willock, mas o prazo foi encurtado para os três primeiros. 

A 10 de fevereiro deste ano, uma semana depois de os encarnados anunciarem a promoção dele e de mais três jogadores – Zlobin, Jota e Ferro – foi lançado aos 62 minutos na goleada histórica sobre o Nacional por 10-0 e quatro dias depois saltou para o onze da equipa de Bruno Lage diante do Galatasaray em Istambul, em jogo dos 16 avos de final da Liga Europa.

Nos 90 minutos em que esteve em campo, foi responsável por seis interceções e cinco desarmes.

«Uma das melhores características que ele tem é a análise que faz do jogo e a capacidade de antecipar cenários. Isso, o conhecimento do jogo acima da média e os níveis de concentração elevados que tem, fazem dele um jogador muito eficaz», observa João Tralhão, que começou a trabalhar diretamente com o jovem médio em 2016 na equipa de juniores do Benfica e já depois de ele ter feito parte da seleção campeã da Europa sub-17.

Até agora, soma um golo (frente ao Moreirense) e oito jogos pela equipa de Lage, a maioria deles numa altura em que os encarnados estavam privados do sérvio Fejsa por lesão. «Vai eliminar as eventuais fraquezas que ainda possa ter. Por exemplo, melhorou muito no jogo de cabeça, que não era uma ação muito natural dele, e com o tempo de jogo na equipa principal vai desenvolver a agressividade positiva que é necessária neste patamar», acrescenta Tralhão.

«Como ele joga é como ele é fora do campo»

Quem conhece Florentino, garante que nada do que faz, dentro ou fora de campo, é ao acaso. O cabelo pintado de louro não foi uma simples ideia típica da irreverência própria da juventude e o número 61 que escolheu quando começou a jogar pela equipa B também teve um propósito lógico: queria o 16, a idade em que assinou contrato profissional, mas esse já tinha dono e acabou por ficar com o capicua.

Diogo Calila, hoje no Belenenses SAD e um ano mais velho, conviveu com o médio durante os tempos da formação no Seixal, embora só tenham feito parte da mesma equipa nos juniores na época 2016/17, na qual os encarnados chegaram à final da UEFA Youth League. Ainda hoje fala regularmente com o ex-companheiro e garante. «É um puto muito humilde, contido e que não gosta de dar muito nas vistas. Como ele joga é como ele é fora do campo. Como vejo a chegada dele à equipa A? Com naturalidade e sei que vai aproveitar as oportunidades.»

«Tem uma personalidade muito reservada e parece que está quase sempre na mesma: não varia muito os estados de humor. Não é muito expansivo, nem nas vitórias, mas tem um sentido de humor apurado», diz João Tralhão, que partilha como exemplo disso um episódio ocorrido na UEFA Youth League na época 2016/17 numa deslocação a casa do Nápoles para a fase de grupos da competição.

 

A natureza do adversário e, sobretudo, do terreno – um sintético pequeno e sem as melhores condições – faziam adivinhar um jogo de combate. Profilático, o treinador aumentou o número de unidades no miolo do terreno e colocou Florentino numa posição diferente.

«Adotámos um sistema alternativo e eu desafiei-o a jogar mais à frente, como oito. Lembro-me de que os colegas brincavam com ele e diziam-lhe que assim que passasse a linha do meio-campo, o melhor que tinha a fazer era deixar a bola para outros porque aquela não era a praia dele», recorda ao Maisfutebol o então treinador da equipa de juniores das águias a propósito do jogo realizado a 28 de setembro de 2016.

O médio, então com 17 anos, acabou por ser um dos melhores em campo no triunfo do Benfica por 3-2. «Teve capacidade de construção e, curiosamente, nos últimos minutos projeta-se na frente e marca o golo que dá a vitória.»

Tralhão lembra-se da forma serena com que Florentino, que decidiu o jogo com um golpe de cabeça aos 86 minutos, recolheu aos balneários sensivelmente duas horas depois de os colegas o terem espicaçado. «Disse muito calmamente que aquela também era a praia dele», conta divertido.

Florentino com Diogo Calila. Os dois fizeram parte da equipa de juniores que chegou à final da UEFA Youth League em 2017

Nas últimas semanas, o nome de Florentino tem sido apontado ao interesse de vários clubes de topo da Europa.

«Acho que vão aparecer muitos mais. É um jogador apetecível há muito tempo. Toda a gente conhece o potencial que ele tem e, sendo um jovem, não me surpreende nada. Os grandes clubes europeus não vão deixar escapar a oportunidade de o tentar, porque ele vai ser um número seis de topo», vaticina João Tralhão.

Seria, no fundo, mais um orgulho para Cândido Cesário, que à distância vai acompanhando os passos do antigo pupilo e recorda a emoção que sentiu quando viu o médio estrear-se na equipa principal do Benfica. O sonho cumprido foi o de Florentino, mas um dos primeiros treinadores dele viveu-o também com intensidade.

«Lembro-me que nesse dia o Fernando Chalana fez anos e foi uma bonita homenagem. Estava a ver o jogo na televisão e emocionei-me. O meu filho mais novo até me perguntou porque é que eu estava a chorar. Eu respondi-lhe: ‘Este é um dia glorioso para o pai, porque também sou benfiquista. Não consegui que o teu irmão fosse jogador, mas o Júnior está ali.’»

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