Trabalha na Luz e no Dragão sem poder ver os jogos - TVI

Trabalha na Luz e no Dragão sem poder ver os jogos

Stewards (AP)

André Moreira trabalha como assistente de recintos desportivos ou steward em part-time e descreve-nos como se trabalha em estádios de futebol sem ter a possibilidade de ver o jogo. Entre Luz e Dragão, a história mais bonita que viveu foi com um adepto... do Manchester United.

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Imagina estar num estádio de futebol e não poder ver um jogo?

Parece impossível, não concorda? Há quem tenha como função estar de costas para o jogo e de olhos bem abertos na direção das bancadas. São aqueles indivíduos dos coletes berrantes, certamente já reparou neles.

Há também quem os culpe pelas extensas filas que se formam até entrar nos estádios. Porém, a função de steward é bastante subvalorizada. Em conjunto com a polícia, os ARD – sigla para assistentes de recintos desportivos – são responsáveis pela segurança nos estádios da Liga.

André Moreira, de 42 anos, tornou-se steward há dez anos. Exerceu a função em part-time durante cinco anos e após um interregno, voltou à atividade.

«O meu irmão já exercia esta função e surgiu a oportunidade de ter este part-time. Era compatível com o meu trabalho e comecei a fazê-lo», conta em conversa com o Maisfutebol.





Os assistentes de recintos desportivos têm várias áreas de intervenção. André Moreira está habituado a trabalhar em dois dos maiores estádios do país, Luz e Dragão, e explica que responsabilidades têm sempre que há jogos.

«Chegamos aos estádios duas horas antes do início do jogo. Há um briefing dado pelo responsável acerca do número de espetadores previsto, sobre áreas mais problemáticas ou que cuidados devemos ter com certas pessoas. Nos jogos das competições europeias os cuidados são maiores. Depois os ARD deslocam-se para os respetivos locais de intervenção. Quando as portas abrem, temos de estar totalmente operacionais», relata.  

«As funções variam. Por exemplo, eu faço a revista ao público e só depois dirijo-me para o relvado. Sento-me naqueles pequenos bancos e fico virado para o público», esclarece.

Leu bem, caro leitor. Os stewards têm de estar de costas para o jogo seja em que situação for. O dever assim obriga, diz André.

«Como estou encarregue da revista, só entro no estádio no início da segunda parte. Vou reforçar uma equipa que já lá está. A nossa função é estar a olhar atentamente para o público para que não aconteçam situações como a que se passou ontem [no Dragão]. No fundo, devemos antecipar situações que possam colocar em causa o decorrer do jogo», explica.

Há uma pergunta obrigatória. Como é que alguém que gosta de futebol é capaz de ignorar o que se passa nas suas costas?

«Não podemos de modo algum assistir ao jogo. Como se consegue? Depende muito de pessoa para pessoa. Gosto muito de futebol, mas o meu trabalho está acima de tudo. Se estou lá é porque preciso desse trabalho. Nesse sentido ninguém me pode apontar o dedo. Independentemente de jogar o meu clube ou não, não me viro para o relvado», frisa.




Durante o longo percurso a zelar pela segurança em estádios de futebol, André guarda histórias que lhe enchem o coração e outras que prefere nem lembrar.

«Não tenha histórias caricatas. Infelizmente, tenho episódios que mostram o desrespeito das pessoas para comigo e para com os assistentes de recintos desportivos», refere.

«Há uma ideia generalizada em relação aos stewards: que estão à procura de violência. Nunca se pensa que do outro lado [dos stewards] está alguém que só precisa de trabalhar. Tive um jogo problemático no Dragão e temi pela minha saúde. Já lidei com imensas claques estrangeiras, mas essa claque portuguesa  [sem revelar qual] foi das mais agressivas que tive à minha frente. Fui cuspido e insultado das piores formas possíveis. Só não se chegou a vias de facto porque a polícia surgiu», acrescenta.

Enquanto fala de forma rápida, André lembra-se de uma situação que o marcou pela positiva. «Um dia comprei um cachecol de Portugal e sugeri a um adepto do Manchester United fazermos uma troca. Ele aceitou e hoje tenho a sorte de ter um cachecol oficial do Manchester United. São estes pequenos gestos que fazem com que as pessoas gostem mais ou menos do que fazem», lembra.

A conversa encaminhava-se para o final, mas há algo que André pretende realçar: os stewards colaboram com a PSP, mas não têm autoridade para a substituir.

«Quando sentimos que a nossa integridade física está em perigo, a polícia tem de intervir. Os assistentes de recintos desportivos nunca podem ir pela via da violência ou da resposta verbal. Está nos livros. Temos de ser apaziguadores ou pacificadores pela via verbal. Sempre que tal não é possível, chamamos a PSP», sublinha.

Nada como um caso prático para passar a mensagem.

«Se algum adepto atira um objeto ou invade o relvado e nós vemos, podemos ‘apanhá-lo’, mas não temos autoridade para o identificar. A informação é sempre transmitida à PSP e esta encarrega-se do assunto», declara.

À chuva, ao sol ou ao frio, os homens de coletes florescentes ou laranjas estão sempre a olhar por nós e para nós. E muitos, lembre-se, tem clube e gostam tanto de futebol como o leitor.
 

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Fora do jogo é uma rubrica do Maisfutebol que dá voz a agentes desportivos sem participação direta no jogo. Relatos de quem vive por dentro o dia a dia dos clubes e faz o trabalho invisível longe do espaço mediático. Críticas e sugestões para smpires@mediacapital.pt ou vem.externo@medcap.pt.

Artigo original: 03/12/19; 23h50

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