Dolores teve 60.739 adeptos a ver ao vivo um sonho tornar-se real - TVI

Dolores teve 60.739 adeptos a ver ao vivo um sonho tornar-se real

Dolores Silva - Atl. Madrid

Uma viagem pela evolução do futebol feminino com uma das principais embaixadoras do futebol português

Hoje é fácil falar. É a realidade que vive. Mas no princípio era o sonho. Os sonhos de uma miúda que queria ser futebolista profissional. Que se deitava a imaginar estádios cheios para a ver jogar. Ou a idealizar o orgulho que seria vestir uma camisola com quinas ao peito para representar o país onde nasceu.

Agora, se um dia a tivessem abordado quando apenas dava toques na praia com o pai, ou num daqueles jogos que fazia com os miúdos do bairro onde morava, e lhe dissessem que aos 27 anos já teria vivido cada um dos sonhos que tinha, talvez Dolores Silva não tivesse acreditado.

«Eram objetivos que tinha, mas não sabia se os ia realizar, ou que seriam cumpridos tão cedo», responde ao Maisfutebol a médio do Atl. Madrid e mais de 100 vezes internacional pela seleção A de Portugal, sempre que tentamos viajar até às memórias da menina que desde a creche andava atrás de uma bola.

Chamamo-la a jogo numa altura em que o futebol feminino é notícia cada vez mais recorrente no nosso dia-a-dia. A caminhar, quem sabe, para uma era em que seja normal um dérbi ou clássico do futebol jogado por elas ser notícia de abertura de um espaço informativo.

E é Dolores Silva a nossa aposta porque ela é, neste momento, uma das principais embaixadoras do futebol nacional além-fronteiras. Ou não fosse jogadora do campeão e atual líder do campeonato espanhol, competição que cresceu rapidamente, ao ponto de se ter batido há poucas semanas o recorde do mundo de assistência num jogo de clubes do futebol feminino.

E quem é que lá estava, quem era? Isso mesmo, Dolores Silva, para quem 60.739 nunca mais será um simples número.

Sessenta mil setecentos e trinta e nove – por extenso e tudo – foi o número de adeptos que, no dia 17 de março, se juntou para assistir a um Atl. Madrid-Barcelona, no Wanda Metropolitano.

Mais de sessenta mil pessoas que foram ao moderno estádio da capital espanhola para presenciar o confronto entre primeiro e segundo classificados da Liga Espanhola, e não para inscrever o nome num qualquer recorde.

À semelhança de Dolores Silva, aliás, que ali estava para jogar – entrou assim que o Barça chegou à vantagem, mas não foi a tempo de impedir a derrota da sua equipa. E que fala com orgulho da mudança de mentalidade a que está a assistir.

«Esse dia foi o culminar de algo que sempre sonhei. Só faltou a nossa vitória, mas de resto foi um ambiente espetacular», começa por dizer, salientando que não foi um caso isolado. É algo que está mesmo a acontecer.

«Pouco tempo antes, também tínhamos feito um jogo no San Mamés [casa do Atheltic Bilbao] para a Taça, onde tinham estado mais de 48 mil pessoas», regozija.

E aquilo que mais a deixa orgulhosa é estar a viver este momento como jogadora. Mais do que assistir a uma mudança de mentalidades, é estar a ser protagonista dela. Numa evolução que acredita estar a estender-se a Portugal.

Mas já vamos a Portugal e ao futebol feminino nacional, que vive também dias que parecem anunciar uma revolução em andamento.

Dolores Silva (à frente) quando jogava nas alemas do USV Jena

Crescer em Espanha depois da consolidação na Alemanha

Voltamos rapidamente à meninice de Dolores. À época em que se iniciou nas escolinhas do Real Massamá, clube no qual jogou numa equipa mista até aos 13 anos.

Depois disso, sem possibilidade de continuar a competir entre rapazes, deu-se o passo natural para o 1.º Dezembro, clube de Sintra que era, à data, o dominador do futebol feminino em Portugal, algo que não impediu que Dolores chegasse à equipa principal com apenas 15 anos.

Nas cinco épocas que se seguiram, a então adolescente ajudou o clube de Sintra a conquistar cinco títulos nacionais e quatro Taças de Portugal, antes de receber um convite irrecusável.

«Aos 20 anos tive propostas para ir para a Alemanha, um dos campeonatos mais competitivos do mundo, onde a profissionalização é uma realidade há muito tempo, e no qual todas as equipas podem ganhar às outras», avalia.

Na época passada, Dolores voltou a Portugal para representar o Sp. Braga

A jogadora portuguesa ficou seis anos por terras germânicas, consolidou-se como futebolista até receber um convite para regressar a Portugal, mais precisamente ao Sp. Braga, um ano depois de os arsenalistas terem avançado para a profissionalização.

As diferenças para a realidade que tinha deixado antes de rumar à Alemanha eram inegáveis e o convite foi aceite com uma enorme satisfação, conforme explica.

«Poder ser profissional no meu país e ter todas as condições para estar bem e a fazer aquilo que mais gosto tornou a decisão fácil. A realidade competitiva que encontrei foi muito diferente para melhor da de quando tinha saído, mesmo que ainda estivesse longe da que tinha lá fora, onde já há equipas profissionais há mais tempo», analisa.

Dolores ficou apenas um ano em Portugal. O Sp. Braga lutou pelo título com o Sporting até ao último suspiro, perdeu a final da Taça com as leoas também, mas os resultados desportivos não abalaram o gosto que Dolores teve de viver a profissionalização no seu país.

«No final da época acabámos por não vencer os títulos que disputámos, mas não me arrependo nada da opção que tomei», garante.

Só que depois surgiu o interesse de um gigante. «O Atl. Madrid é um grande clube a nível europeu, era campeão espanhol e ia disputar a Liga dos Campeões». Impossível de rejeitar, obviamente.

E o balanço está a ser mais do que positivo. «Estamos em primeiro no campeonato com mais três pontos do que o Barcelona e dependemos apenas de nós para sermos campeãs, quando faltam quatro jornadas para o fim, estamos na final da Taça da Rainha e na Liga dos Campeões fomos eliminadas pelo Wolfsburgo depois de termos eliminado o Manchester City», resume a jogadora.

Já esta época, Dolores Silva defrontou a também portuguesa Jéssica Silva (Levante) na Liga Espanhola

«Acredito que em poucos anos Portugal vai estar a disputar títulos»

Apesar de estar fora do país, Dolores Silva vai acompanhando com grande entusiasmo a evolução do futebol feminino em Portugal. Ela que fez parte da geração que deu o primeiro grande passo de afirmação internacional: a presença na fase final do Europeu, em 2017.

«Acho que essa presença foi o clique para aquilo a que temos assistido nos últimos anos. Vai ser um marco na vida de todas nós que participámos e acho que ajudou a impulsionar o futebol feminino em Portugal», analisa.

E a verdade é que os frutos já começam a ser colhidos. Há poucos dias, a seleção de sub-17 assegurou, pela segunda vez, a presença no Europeu da categoria, um feito que enche de orgulho uma das capitãs da equipa principal.

«É mais um sinal de que o trabalho na formação está a ser cada vez melhor, tanto pelos clubes como pela Federação», defende, acrescentando: «Espero que elas agora consigam algo bonito na fase final e que as sub-19, que vão disputar a ronda de Elite esta semana, consigam também o apuramento».

E quando Dolores olha para a realidade competitiva em Portugal vê também sinais de esperança, com cada vez mais clubes a apostar na profissionalização. Depois de Sporting e Sp. Braga darem o primeiro passo, na próxima época o Benfica estará também na 1.ª divisão e o V. Guimarães vai avançar com uma equipa também.

«A entrada das equipas profissionais veio trazer uma atenção extra ao futebol feminino e acredito que pode ajudar a que também as equipas não profissionais consigam mais apoios porque há cada vez uma visibilidade maior», opina.

O caminho está a fazer-se. E os primeiros são sempre os passos mais complicados, admite Dolores que acredita que Portugal pode não estar assim tão longe da realidade que ela vive do outro lado da fronteira.

«Tudo depende da mentalidade das pessoas e acho que cada vez há mais respeito pelo futebol feminino. Em Espanha, por exemplo, aconteceu tudo muito rápido. Mesmo quando estive na Alemanha não vivi nada como tenho vivido aqui. Espanha está mesmo a trabalhar bem o futebol feminino e Portugal pode seguir o mesmo caminho», aponta.

A esperança é tanta, que Dolores não tem receio em sonhar alto: «Acredito que se continuar a evoluir como tem acontecido, em poucos anos Portugal vai passar a estar sempre em fases finais e a disputar títulos.»

Sim, porque no princípio era sonho. Mas as mulheres quiseram, a obra tem crescido e é uma onda que já não parece possível de travar. E também por isso, o conselho que Dolores deixa às miúdas que estão a começar é simples: «Lutem e acreditem nos vossos sonhos. Porque com trabalho e humildade vão conseguir os objetivos que têm.»

Palavra de sonhadora.

 

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