As lições de quem ficou com os sonhos suspensos - TVI

As lições de quem ficou com os sonhos suspensos

Reportagem formação

O testemunho de alguns dos jovens futebolistas que ficaram sem competição

Apito final.

Acabou.

Acontece que o fim chegou de forma inesperada. E cedo. Demasiado cedo.

Como se um jogo fosse a meio e de repente tivesse de terminar. Sem ter em conta o tempo decorrido, quem vencia ou quem perdia.

Um pouco como quando acordamos à noite a meio daquele sonho que estava a ser tão bom. E por mais esforço que façamos para voltar a adormecer e retomar no ponto em que estávamos, nunca conseguimos.

Resta esperar que o próximo sonho surja.

Foi mais ou menos isso que aconteceu a milhares de jovens futebolistas de todo o país, apanhados na curva por um vírus que não olha a idade, género ou condição física.

Para todos, o desfecho foi o mesmo: o fim abrupto.

O interromper do sonho que tinha o ponto alto a cada fim de semana, mas que durante a semana tinha outros pontos picos de alegria. Mesmo que, muitas vezes, debaixo de chuva e ao frio, deixando para trás a família, a escola e os amigos.

Tudo para correr atrás de um sonho em forma de bola.

Mas isto ainda agora tinha começado…

Em novembro, o Maisfutebol contou-lhe a história de Francisco Cursino, um menino brasileiro de 14 anos que treinou durante mais de dois, sem nunca poder jogar devido às regras da FIFA que impediam a sua inscrição na equipa do Beira-Mar.

Após esses dois anos de espera, o Francisco pôde, finalmente, começar a jogar. Contudo, a alegria dele não durou mais do que quatro meses.

Mas será que isso o derruba?

A resposta vem embrulhada numa estranha maturidade para alguém com a idade de Francisco.

«Durante todo aquele tempo em que estive só a treinar aprendi que nunca podemos parar. Aconteça o que acontecer, temos de ter dedicação. Porque o esforço vai levar-nos a conseguir chegar ao que queremos», reflete, garantindo entender perfeitamente as razões que levaram ao cancelamento das competições.

«Claro que tenho sempre muita vontade de jogar, mas quando comecei a ver as notícias desta pandemia percebi que mais cedo ou mais tarde teríamos de parar. Eu amo de mais o futebol e ter de parar outra vez é muito chato, mas tinha de ser», consente.

Entre a luz verde que recebeu da FIFA para poder jogar e o anúncio do fim das competições devido à Covid-19, Francisco Cursino fez 16 jogos. Dezasseis que aproveitou bem, marcando 11 golos.

Daí que não seja difícil imaginar aquilo de que sente mais falta. «Além de treinar com os meus amigos, tenho saudades de marcar golos. Mas até dos gritos do mister a dar indicações sinto falta», confessa.

«A minha namorada já começa a achar que sou demasiado chato»

Se Francisco assume que a falta que sente dos gritos do treinador se deve à forma como as encara, com o objetivo de crescer no futebol, menos expectável é aquilo que ouvimos de Guilherme Pereira.

«Até do cheiro a mofo horrível dos equipamentos no final dos treinos eu sinto saudades. E daquelas borrachinhas do sintético que se espalham por toda a parte», revela-nos entre sorrisos o jogador de 15 anos do Belenenses.

Para ele, que joga futebol desde os oito anos, esta é uma situação que jamais lhe havia passado pela cabeça.

«Nunca tinha imaginado poder ficar tanto tempo sem futebol. Tirarem-nos o futebol durante seis ou sete meses é mesmo muito mau porque é aquilo que mais gostamos de fazer», aponta.

E no que diz respeito ao Guilherme, este estado de isolamento tem uma vítima maior. Culpa, claro, da falta que o futebol lhe faz.

«Tenho passado o meu tempo a fazer os trabalhos da escola, a jogar Playstation e a ver Netflix. Ah, e tenho falado muito com a minha namorada. Acho que ela já começa a achar que eu sou demasiado chato. Estou sempre a ligar-lhe. Às vezes até quando estou a jogar Playstation lhe ligo», revela, bem-disposto.

Num tom mais sério, o jovem confessa que a situação que está a enfrentar o fez repensar em algumas coisas que pretende mudar no futuro.

«Aprendi que devemos aproveitar os treinos e, mesmo quando estamos mais cansados ou não nos apetece tanto, devemos dar 200 por cento em cada treino. Houve treinos em que se calhar não dei esses 200 por cento e se soubesse que ia ficar tanto tempo sem futebol, se calhar tinha esquecido o cansaço e treinava ainda melhor», aponta.

E depois deixa ainda uma outra lição: a de olhar para os demais.

«É óbvio que me senti mal por ficar sem futebol por tempo indeterminado, mas apesar de tudo acho que não foi tão mau como para outras equipas», começa por dizer, explicando que o Belenenses tinha acabado de deixar escapar aquele que era o objetivo traçado no início da época. Enquanto, do outro lado, há equipas que viviam uma época de sonho. E para esses, defende, a situação deve ter sido mais dolorosa.

«Equipas do meu escalão como o Marialvas, que acho que tinha conseguido apurar-se pela primeira vez, devem sentir-se mais prejudicadas. E com razão, porque é um sonho pelo qual trabalharam muito e que perdem por causa disto», remata.

«Estávamos a fazer história e de repente ficámos sem nada»

Viajamos, então, de Belém até Cantanhede. Do outro lado do telefone temos Diogo Furtado, capitão da equipa de iniciados do Marialvas, equipa que tinha alcançado pela primeira vez a fase final de uma primeira divisão, em toda a história do clube.

A voz de comando da equipa dentro de campo torna-se no porta-voz dos sentimentos dos miúdos daquela equipa do distrito de Coimbra.

«Foi um ano de muito esforço nos treinos e nos jogos, estivemos quase a não alcançar o nosso objetivo, mas depois, num último esforço, conseguimos esse apuramento… para depois a competição ser cancelada», lamenta.

Ao recordar aquilo que sentiu quando recebeu a notícia do cancelamento das competições, Diogo encontra tristeza, mas sobretudo desilusão.

«No início fiquei desiludido porque tínhamos acabado de alcançar um feito histórico para o clube. Um objetivo pelo qual tínhamos lutado muito. E de repente ficámos sem nada», descreve.

Mas nas palavras de Diogo encontramos também algo comum a todos os jovens que partilharam os seus testemunhos com a nossa reportagem: a consciência de se tratar de um mal necessário.

«Depois de passar algum tempo percebi que a doença era mesmo muito perigosa e que era pela nossa segurança que estavam a terminar as competições. Eu preferia que tivesse sido adiada e não cancelada, mas alguma coisa tinha de ser feita», sublinha.

Neste momento, além da preocupação em manter-se em forma, apenas a incerteza traz alguma impaciência a Diogo Furtado.

«Não saber quando a competição vai voltar dá-me um pouco de ansiedade. Essa incerteza de não saber quando volto a jogar custa um pouco», admite.

«Isto faz-nos aprender a valorizar o que temos»

Incerteza é aquilo que também encontramos nas palavras de Didi. No caso do capitão da equipa de juniores do Rio Ave, as dúvidas não se referem apenas a quando fará o regresso aos relvados, mas também à forma como vai chegar àquela que será a primeira época enquanto sénior.

Isto, quando sentia estar a viver a melhor época de sempre, ideia espelhada no segundo lugar da fase de apuramento de campeão da primeira divisão, apenas atrás do Benfica, após quatro jornadas.

«Tínhamos sonhos e um objetivo pelo qual lutávamos há alguns anos, de estar numa fase final do campeonato. Conseguimo-lo naquele que será o último ano de formação de muitos de nós, por isso há alguma tristeza pela impossibilidade de completar a época», começa por assumir o guarda-redes, de 19 anos.

«Mas a saúde é o mais importante, todos sabemos isso. É preferível perdermos agora estes dez jogos para ganharmos 30 no futuro», enaltece de seguida.

Além dessa consciência, Didi revela aquele que sente ser o maior ensinamento que vai levar desta situação negativa: «antes de nos queixarmos de algo, devemos aproveitar o presente e aprender a valorizar aquilo que temos.»

«Às vezes, durante a época, as pernas começam a pedir férias e podemos deixar-nos levar por isso. Mas agora que não temos o futebol, é que percebemos que vale sempre a pena dar um pouco mais. Porque não sabemos quando vamos ficar sem aquilo de que tanto gostamos», argumenta.

Numa fase em que se viu privado de algo que o acompanha desde muito novo, Didi confidencia também que tem investido mais tempo para estar com a família, aqueles que considera serem os mais prejudicados com a dedicação que o futebol lhe exige.

«Estou a aproveitar para passar mais tempo com a minha família. Eles são o nosso principal pilar e quem muitas vezes fica para trás por causa do futebol. Tenho jogado Playstation, cartas e jogos tradicionais com os meus irmãos e temos também visto mais filmes e séries em família», orgulha-se.

A cabeça, contudo, continua a ansiar por tudo o que está relacionado com o mundo da bola e com um ritual de que tanto gosta: «calçar as luvas».

«A verdade é que sinto falta de tudo o que diz respeito ao futebol: desde as viagens ao ambiente de balneário. De tudo. Para quem joga futebol há tanto tempo, a falta dele sente-se em tudo. Tenho saudades de estar no túnel de entrada para o relvado, quando os nervos começam a desaparecer», completa.

Estas palavras devolvem a bola a Diogo Furtado, o capitão dos iniciados do Marialvas, que também nos tinha falado do exato momento em que os nervos desaparecem.

«O som do apito inicial. Normalmente estava sempre um pouco nervoso antes dos jogos começarem, mas aquele apito do árbitro fazia com que tudo desaparecesse e só me preocupasse em jogar. Mal posso esperar por voltar a ouvir o apito inicial de um jogo outra vez», anseia.

Que soe, então, esse apito rapidamente. Para que os sonhos posam voltar a rolar.

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