Anticristo - TVI

Anticristo

  • IOL Cinema
  • 21 jan 2010, 10:19
Anticristo

Mas a natureza segue o seu caminho e as coisas vão de mal a pior...

Esta grande obra de Lars von Trier, o seu monumento para a história do cinema, tem o trauma no seu cerne. Em «Anticristo», o trauma aparece ligado àquilo a que podemos chamar a pergunta fundamental, a pergunta para qual nunca se consegue achar formulação, aquela que mais inquieta e que mais se esquece, aquela que raro está presente como tal. Essa pergunta diz respeito ao medo? Diz. Mas medo de quê? Medo de nada. Nem sequer medo da morte. Medo por se estar à mercê de tudo? Sim: é a «condição» humana.

Como formular isso, no que diz respeito a este filme? Por um lado, só se pode trair a Natureza, de onde vimos; por outro lado, trazemos igualmente a Natureza connosco, mas como uma doença, como uma vontade colossal, uma voracidade que necessita de ser satisfeita. Em «Anticristo», este dilema concentra-se todo no corpo e espírito de uma mulher, e é igualmente deste dilema vivo que provém o acaso traumático da sua história, cujo motivo imediato, ou emblema, é apresentado no início.

A câmara lenta torna o líquido sólido e torna o sólido gasoso, é um procedimento cinematográfico ambíguo: tanto pode petrificar como pode dissolver. Com a imagem em câmara lenta, uma mulher (Charlotte Gainsbourg) e um homem (Willem Dafoe) fazem amor completamente entregues à violência do desejo: debaixo do chuveiro, em cima da mesa, em cima da máquina de lavar roupa, derrubando tudo à volta. Com a câmara lenta, a água do chuveiro, a água de uma garrafa que é derrubada, cai espessamente, as gotas têm volume e peso. Estas imagens são montadas em paralelo com as imagens, também em câmara lenta, de um bébé que acorda e que sai da sua cama a caminho da janela, atraído pela neve que cai, como uma névoa. Ao contrário do que faz com a água, a câmara lenta torna a neve ainda mais leve, quase como se fosse um ar. A criança atira-se da janela enquanto os corpos dos seus pais são atravessados pelo orgasmo, presos nele. Eis o emblema do filme e o motivo imediato do trauma nesta história.

Culpa sem limite da mulher e impossibilidade de redenção; «doença» da mulher e impossibilidade de cura. E o casal vai para o «Éden», a casa de madeira no meio da floresta densíssima, verdíssima. Vai para o interior de uma Natureza que parece conter uma potência afogada, sempre pronta a libertar algo de si. Porque há a questão homem/mulher para «resolver», a questão mítica da atracção e da aniquilação do homem e da mulher, o filme prossegue, extremando a figuração dos actos e das visões das personagens, contrastando-os com a beleza desmedida e nervosa da Natureza.

O filme aborda tudo isto na raiz. À sua medida, vai directamente ao osso. Se é assustador, é assustador como o são as representações das tentações de Jeronimus Bosh ou como as representações bíblicas de Rembrandt. Por exemplo.

Trata-se de um trabalho (os diversos trabalhos do filme) que só pôde ser feito com uma uma mão, uma volição, uma dedicação, uma inteligência extremas. Mencionemos um dos aspectos, o trabalho com o quadro muito apertado sobre os actores, conjugado com o uso dramático do «jump cut», que pontua a interlocução das duas personagens. A interlocução nunca é prolixa, mas é densa, e a montagem feita com a palavra dá imediatamente à imagem o carácter de pensamento, de símbolo.

O filme tem somente dois actores, Charlotte Gainsbourg e Willem Dafoe, que evoluem numa fecunda correspondência. Charlotte Gainsbourg entregou-se ao papel da mulher que carrega o trauma, da mulher que está sujeita a todas as experimentações, a mediadora, a passagem da Natureza: o representante e o objecto da pergunta fundamental acima mencionada. Quando estamos perante uma interpretação destas, um trabalho de gigante feito pelo mais frágil dos seres, o actor, um trabalho que faz de Charlotte Gainsbourg uma das maiores actrizes vivas, a única resposta admissível só pode ser a da veneração.

Edmundo Cordeiro, crítico de cinema
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