Digno de filme: mãe persegue e captura assassinos da filha no México - TVI

Digno de filme: mãe persegue e captura assassinos da filha no México

  • João Faria
  • 18 dez 2020, 16:53
Cartel Zeta

Mulher forjou a identidade, criou laços familiares com os suspeitos e acabou assassinada no dia da mãe

Uma mulher perseguiu, um por um, os responsáveis pelo homicídio da sua filha, no México. Miriam Rodriguez investigou por conta própria, desde 2014, e conseguiu levar à justiça uma grande parte dos criminosos. Para isso, alterou a sua aparência, forjou várias vezes a identidade e criou laços com familiares dos suspeitos. Acabaria assassinada, em casa, no dia da mãe.

Nos últimos cinco anos, o número de homicídios disparou e há mais de 70 mil desparecidos, uma parte significativa vítimas de sequestro. Um flagelo que atingiu pessoalmente Miriam Rodriguez.

Karen Rodriguez era uma rapariga de 20 anos que vivia na cidade de San Fernando, no norte do México. A localidade foi, ao longo da última década, palco de episódios de extrema violência, como um massacre de 72 migrantes da América Central e a descoberta de valas comuns com largas dezenas ou centenas de corpos. Todos estes crimes tiveram a autoria do cartel dos “zetas”, que domina o tráfico de droga na região.

Em 2014, a filha de Miriam Rodriguez foi raptada por este grupo enquanto conduzia a carrinha da família. Ao longo de vários meses foram pagos sucessivos resgates, mas Karen nunca voltou. Perante a passividade e o medo da polícia, receosa do poder do cartel, a mãe, de 56 anos, decidiu que a culpa não morreria solteira e gizou um plano para identificar e capturar aqueles que tinham raptado e assassinado a jovem.

Eu morri no dia em que mataram a minha filha. Quero terminar isto. Vou encontrar as pessoas que lhe fizeram mal e eles podem fazer-me o que quiserem”, respondeu Miriam Rodriguez a quem a alertava para os perigos que corria, citada pelo New York Times.

Não iria desistir. Prova disso era o grupo que tinha formado, e que se dedicava a procurar pessoas desaparecidas em San Fernando. Aqueles que a conhecem afirmam que esta era, desde a morte da filha, uma mulher diferente, mais fria e determinada.

Foram múltiplas as estratégias adotadas pela mãe de Karen para identificar e encontrar os envolvidos. Alguns deles tinham entretanto morrido, outros tentaram fugir ao mundo do crime. Depois de detetar um dos sequestradores através da rede social Facebook, Miriam vigiou-o durante semanas a fio junto à gelataria onde este trabalhava. Não sem antes se disfarçar. Cortou o cabelo e pintou-o de vermelho, muniu-se de uma identificação falsa e vestiu um uniforme do ministério da saúde. Assim, a pretexto da realização de um inquérito no bairro onde morava o suspeito, conseguiu reunir um alargado conjunto de informações, que entregou à polícia. O único agente que acedeu a ajudá-la ficou surpreendido com os registos e arquivos que Miriam tinha conseguido construir. “Nunca tinha visto nada assim. Eram incríveis”.

Sama, o primeiro suspeito, viria então a ser detido. Confessou o crime e revelou o nome de alguns dos cúmplices. Um deles era um rapaz de apenas 18 anos, que foi logo de seguida também capturado. Durante o interrogatório, o jovem perguntou se podia ver a sua mãe, queixando-se de fome. Miriam Rodriguez, que estava a assistir à conversa, entra na sala e oferece ao suspeito a comida que trazia consigo.

Seja como for, é um menino. Não importa o que fez. E eu sou uma mãe. Quando o ouvi, era como se fosse o meu próprio filho”, argumentou, quando questionada por uma amiga sobre o motivo desta atitude.

O rapaz disponibilizou-se a revelar o local onde o cartel dos “zetas” guardava os corpos daqueles que sequestrava e matava. Numa vivenda abandonada, entre marcas de balas e restos mortais de outras vítimas, as autoridades encontraram parte do fémur de Karen, um cachecol da jovem e um banco da camioneta onde esta tinha sido sequestrada. Estava formalmente confirmada a morte mas, para a sua mãe, nem por isso o caso estava encerrado.

No total, ao longo de três anos, conseguiu capturar dez suspeitos, entre os quais uma vizinha que conhecia desde a infância e de cuja residência tinham sido feitas algumas das chamadas em que foram pedidos os resgates. Algum tempo depois, deteve um suspeito, agora vendedor de flores, durante uma hora, até a polícia chegar. Tinha-o perseguido ao longo de um ano.

Alguns dos responsáveis pelo crime tentaram refazer as suas vidas. Tornaram-se taxistas, vendedores de automóveis e até baby sitters. Depois de ter identificado mais alguns dos sequestradores, Miriam foi até a uma pequena povoação de 13 mil habitantes, onde encontrou a avó de mais um suspeito. A idosa reconheceu que, ao longo da vida, o neto se tinha envolvido regularmente em problemas. Ressalvou, contudo, que este se tinha entretanto convertido ao cristianismo e frequentava reuniões religiosas. Na igreja, os crentes foram surpreendidos pela detenção do jovem e pediram clemência.

Onde estava a sua compaixão quando mataram a minha filha?”, respondeu a mãe de Karen.

Em março de 2017, mais de 20 reclusos fugiram da prisão onde estavam alguns dos criminosos que Miriam tinha ajudado a deter. Agora temerosa, pediu escolta policial e apoio do governo, que lhe garantiu patrulhas regulares em casa e no trabalho. Não seria suficiente. Na noite de 10 de maio de 2017, o dia da mãe no México, Miriam estava a chegar a casa quando foi atacada com 13 tiros por um grupo de três homens. Também ela seria vítima do cartel dos “zetas”. Nas semanas seguintes, dois dos assassinos foram detidos e o outro foi abatido.

Em julho deste ano, um rapaz de 14 anos foi sequestrado pelo mesmo cartel, em circunstâncias muito semelhantes às que rodearam o crime que vitimou Karen Rodriguez. Ao invés do silêncio e do medo de retaliação, a população uniu-se, simultaneamente indignada e encorajada pelo ato heróico de Miriam. Organizaram-se buscas, iniciativas de protesto e conferências de imprensa. Uma multidão acampou na capital do país para exigir respostas e o apoio do governo. Foi também uma homenagem a Miriam, a mulher que sacrificou a sua vida em nome da justiça, e que mereceu a construção de uma placa de bronze em sua honra, na praça principal da cidade.

Foram vários meses de operações de busca sem sucesso. Se o caso era em muito semelhante ao de Karen, algo os distinguia. Os pais de Luciano, o rapaz agora desaparecido, assumiam-se com medo. Por temerem para si um desfecho igual ao de Miriam Rodriguez, lutavam apenas pelo regresso do filho.

Ela fez o que nós queríamos fazer. Mas como é que ela terminou? Morta”, disse o pai de Luciano quando se completavam três meses do desaparecimento do filho.

O corpo viria a ser encontrado em outubro e a polícia descobriu que vários familiares da vítima tinham estado envolvidos no crime.

O funeral juntou não só as famílias de Miriam e Luciano como toda a comunidade, que acorreu em peso à cerimónia e, pela primeira vez, assumiu a revolta.

Vocês ensinaram a minha família que juntos podemos defender-nos. Temos de deixar de ter medo e erguer a nossa voz”, disse a mãe do rapaz. Uma frase muito semelhante tinha sido um dia proferida por Miriam e está agora gravada na sua sepultura.

As três vítimas, entre as muitas que o México se habituou a lamentar, estão sepultadas a uma distância de 30 metros entre si.

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