Inglaterra: os primeiros 1000 episódios de uma paixão imensa - TVI

Inglaterra: os primeiros 1000 episódios de uma paixão imensa

Adeptos da Inglaterra

Do primeiro jogo internacional de sempre, há 147 anos, quando ainda era preciso explicar as regras, até hoje. História e histórias que alimentam como poucas a memória do futebol mundial. E com vários duelos frente a Portugal em momentos decisivos

Foi preciso pôr anúncios nos jornais à procura de jogadores, as notícias sobre o jogo preocuparam-se sobretudo em explicar as regras e não há fotografias, porque o fotógrafo contratado virou costas. Mas começava tudo ali em Partick, a 30 de novembro de 1872, naquele Escócia-Inglaterra que ficaria para a história como o primeiro jogo entre seleções e lançou o caminho para o que havia de vir. 147 anos depois, a Inglaterra tornou-se nesta quinta-feira frente ao Montenegro a primeira seleção a chegar aos 1000 jogos, no jogo em que selou o apuramento para o Euro 2020, a continuar a escrever uma história feita de uma paixão imensa, que alimenta como poucas a memória do futebol mundial. Tanto mais que o palmarés que a sustenta não é assim tão rico. Um título mundial, histórias sem fim e muitas desilusões, algumas delas à custa de Portugal, que se cruzou com a seleção inglesa em momentos decisivos.

Esse Escócia-Inglaterra, que acabou 0-0, não foi aliás em absoluto o primeiro jogo, já tinha havido cinco encontros antes entre as duas equipas. Mas a história deixou-os fora dos registos, por não serem exatamente representativos: jogaram-se em Londres e a «seleção» da Escócia, que ainda nem tinha Federação por essa altura, era composta por jogadores que viviam na capital inglesa. Daí os anúncios no jornal, à procura de «escoceses da Escócia» que pudessem dar um estatuto mais formal ao duelo. Isso aconteceu por fim em 1872, no final da época em que tinha começado também a competição de clubes mais antiga do mundo, a Taça de Inglaterra.

Foi um dos primeiros jogos que se pagou para ver. A entrada custava um xelim e o jogo atraiu um público estimado de quatro mil pessoas a Hamilton Crescent, o campo do West of Scotland Cricket Club. E deixou os primeiros sinais de que aquele era um desporto com futuro. «Até então, ninguém acreditava que as pessoas pudessem mesmo pagar para ver desporto. Colocou o jogo num caminho comercial que até aí era impensável», diz o historiador John Lister, ao jornal Independent. É também ele quem conta o episódio do fotógrafo que falhou a história: «Tinha sido contratado um fotógrafo, mas não houve acordo sobre a forma como seriam vendidas as fotos. E ele não apareceu.»

Durante muitos anos, a Inglaterra só jogou com outras seleções britânicas, em duelos isolados ou a contar para o British Home Championship, torneio que durou 100 anos e só foi extinto em 1884. Com muitas histórias pelo meio, incluindo uma tragédia.

Uma tragédia que o respeito deixou fora dos registos

A 5 de abril de 1902, o novo estádio de Ibrox recebia pela primeira vez o velho duelo entre Escócia e Inglaterra. Estavam 68 mil espectadores no recinto e uma das bancadas de madeira não resistiu. A meio da primeira parte a bancada colapsou, arrastando centenas de pessoas. O jogo continuou, porque as autoridades recearam que um eventual cancelamento aumentasse o pânico e prejudicasse as operações de salvamento. Houve 26 vítimas mortais. As duas Federações concordaram em considerar o jogo inválido, por respeito à tragédia.

A tragédia de Ibrox não entra na lista dos 1000 jogos da Inglaterra, que foi compilada pela Federação inglesa com base em pesquisas históricas, e que, embora incluindo alguns jogos particulares que não são reconhecidos pela FIFA, é também corroborada por outras referências estatísticas, como a RSSSF.

Foi só em 1908 que a Inglaterra defrontou pela primeira vez um adversário não britânico, e longe de casa: um duplo confronto com a Áustria, em Viena, que incluiu uma vitória por 11-1. É uma das maiores goleadas da história da seleção inglesa, só superada por um 13-0 e um 13-2 à Irlanda, ainda no séc. XIX. E próxima de um marco negro na história da seleção portuguesa.

Dez a fio, a humilhação portuguesa no primeiro duelo

A 25 de maio de 1947, em tempo de celebração no pós-II Guerra Mundial, o Jamor engalanou-se para receber o primeiro duelo entre os velhos aliados Portugal e Inglaterra. Um momento que se queria de festa, mas acabou em humilhação: 0-10, a maior derrota da história da Seleção Nacional aos pés de uma Inglaterra implacável, com a goleada selada por Stanley Mattheus, que em 1956 se tornaria o primeiro Bola de Ouro da história. Em Portugal, esse 0-10 foi o desafio que ficou para sempre conhecido como dez a fio.

A Inglaterra sentia-se acima do resto do mundo. Entrincheirada no seu estatuto de referência e guardiã das regras do jogo, resistiu durante muito tempo a novos ventos estrangeiros, incluindo o Campeonato do Mundo: só em 1946 se filiou em definitivo na FIFA, organização francófona na origem, e ficou fora dos três primeiros Mundiais. Estreou-se em 1950 e teve aí o primeiro choque com a realidade.

Ao segundo jogo do Mundial 1950, no Brasil, a Inglaterra defrontava os Estados Unidos, uma seleção de amadores, como óbvia favorita. Mas viu-se surpreendida por um golo de Joe Gaetjens e perdeu, naquele que até hoje um dos maiores escândalos em Mundiais. Acabaria eliminada ao terceiro jogo.

1953, o 3-6 que mudou tudo

Mas o grande banho de humildade a que a Inglaterra se veria submetida aconteceu três anos mais tarde. A 25 de novembro de 1953, a Inglaterra recebeu a Hungria, campeã olímpica, invicta há três anos, a equipa que tinha Puskas, Hidegkuti, Kocsis ou Czibor. Chamaram-lhe o «Jogo do Século», a expectativa era enorme, mas nem nos piores pesadelos ingleses se antecipava o que aconteceu. A Hungria arrasou, ganhou 6-3. Foi a primeira seleção não britânica a vencer em Wembley, o bastião da seleção inglesa.

Era uma equipa muito mais avançada que a Inglaterra, no estilo de jogo, no trabalho, nos métodos de treino. Bobby Robson, que assistiu como espectador, resumiu assim o que se passou, muitos anos mais tarde: «Vimos um estilo de jogo que nunca tínhamos visto antes. Aquele jogo mudou a nossa forma de pensar.» O que se viu em Wembley mudou mesmo o futebol inglês. Até porque teve uma espécie de replay: seis meses mais tarde, o duelo repetiu-se em Budapeste e a Hungria venceu por 7-1

Essas derrotas abalaram as fundações do futebol inglês e levaram-no a perceber como estava desfasado do melhor que se fazia no mundo. A Inglaterra mudou, evoluiu e uma década mais tarde estava preparada, sim, para chegar ao topo do mundo.

1966, a coroação

A jogar em casa, Inglaterra aproveitou a oportunidade em 1966 e foi até ao fim, até ao triunfo no Campeonato do Mundo, naquele que é sem qualquer contestação o momento mais alto da história da seleção inglesa. Uma campanha que se cruzou com Portugal nas meias-finais e que se decidiu na mítica final com a Alemanha, decidida no golo-fantasma de Geoff Hurst.

Depois disso, a Inglaterra não voltou a ganhar. Tentou, acreditou, esteve perto. Mas falhou sempre, algumas vezes com estilo.

O jogo com o Brasil no Mundial 1970 é um desses momentos. O duelo entre o campeão em título e o vencedor dos dois Mundiais anteriores era uma final antecipada, ainda na fase de grupos. Foi um enorme jogo, à altura de todas as expectativas, e caiu para o lado do Brasil, decidido num golo de Jairzinho e apesar da defesa impossível de Gordon Banks a um «golo» de Pelé.

De Maradona a Gascoigne

O fim daquela grande geração levou a Inglaterra a uma travessia do deserto. Ficou fora dos Mundiais de 1974 e 1978 e só voltaria a chegar à fase a eliminar de um Campeonato do Mundo em 1986. Cruzou-se na primeira fase com Portugal, que consegue aí a sua primeira e única vitória antes de implodir no meio do Caso Saltillo, e caiu com a Argentina de Diego Maradona num dos jogos mais míticos da história, o tal do melhor golo de sempre e da Mão de Deus de «El Pibe».

Quatro anos mais tarde, com Bobby Robson no banco, a Inglaterra conseguiu a sua melhor prestação desde 1966, ao chegar às meias-finais do Mundial 90, em Itália. Caiu frente à Alemanha nos penáltis, uma sina que a havia de perseguir por muito tempo, num jogo que deixou para a posteridade a imagem icónica de Paul Gascoigne, então uma jovem estrela em ascensão, a chorar ao ver a meio do prolongamento o amarelo que o tiraria de uma eventual final.

No Euro 1996, de novo em casa, a Inglaterra voltou a cair na meia-final frente à Alemanha. E em 1998, com uma geração que prometia muito, ficou pelo caminho nos oitavos de final depois de uma eliminação dramática frente à Argentina, nos penáltis, num jogo que teve David Beckham expulso a abrir a primeira parte e um golo de sonho de Michael Owen.

Portugal, Portugal e Portugal no pesadelo inglês

E agora entra Portugal na história. Primeiro no Euro 2000, com a reviravolta épica na primeira fase para o triunfo por 3-2 sobre a Inglaterra, que ficaria pelo caminho ainda nos grupos. E depois no Euro 2004, no épico jogo dos quartos de final que acabou nos penáltis, no Panenka de Postiga, Ricardo a defender sem luvas e a bater o penálti decisivo. E voltaria a ser Portugal a sair por cima dos penáltis em 2006, nos quartos de final do Mundial.

Portugal reforçou a sina da Inglaterra, o falhanço crónico nas grandes competições. A percentagem global de vitórias da Inglaterra ao longo dos seus 1000 jogos é de 57 por cento, mas ela reduz-se para 39 por cento em fases finais de Europeus e Mundiais. Com Portugal, nomeadamente, o registo global é favorável à Inglaterra, que em 23 confrontos ganhou 10, empatou oito e perdeu cinco. Mas em fases finais, a Inglaterra só venceu uma vez em cinco confrontos, na meia-final de 1966. Agora, uma nova geração com muito talento devolveu esperança ao futebol inglês, traduzida na campanha até às meias-finais do Mundial 2018. Ainda não chegou, mas a ilusão está lá, sempre.

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