Houve um FC Porto-Benfica histórico no meio de uma pandemia de gripe - TVI

Houve um FC Porto-Benfica histórico no meio de uma pandemia de gripe

Gripe de 1957 - Diário de Lisboa

Em 1957, a gripe «asiática» fechou escolas, deixou milhares de pessoas doentes mas não parou o futebol. Nada que se compare ao que vivemos hoje, diz quem a viveu. Ainda assim, afetou jogadores, incluindo meio plantel do Benfica

Em 1957 houve uma outra pandemia, a gripe a que chamaram asiática, que se estima tenha vitimado dois a quatro milhões de pessoas por todo o mundo. A «asiática» chegou a Portugal em agosto e chegou de barco. Foi no início de outubro que atingiu o pico. Fechou escolas, deixou milhares de pessoas doentes, mas não parou o futebol. Ainda que tenha afetado também jogadores, incluindo meio plantel do Benfica em vésperas de uma histórica visita ao FC Porto.

Passaram mais de 62 anos desde esses tempos tão diferentes, sem a informação massiva que existe atualmente. Investigações feitas mais tarde concluíram que o então novo subtipo de gripe A H2N2, identificado originalmente no norte da China, entrou em Portugal através de passageiros do navio Moçambique, que atracou em Lisboa a 9 de agosto, proveniente de África. Viria a afetar famílias inteiras, estima-se que atingindo 20 por cento da população, e causou 1050 mortes, com particular incidência em Lisboa, onde se registaram 228 dessas vítimas mortais. Um documento da Direção-Geral de Saúde traça este retrato da cidade por estes dias: «Absentismo nas empresas, fábricas paralisadas, transportes públicos com problemas de funcionamento, escolas fechadas, postos dos serviços médico-sociais da Federação das Caixas de Previdência com um aumento extraordinário de procura, hospitais sobrelotados, visitas suspensas à Maternidade Dr. Alfredo da Costa, e, logo depois, medida idêntica adoptada nos Hospitais Civis de Lisboa. Foi, também, necessário reorganizar os turnos de médicos, enfermeiros e pessoal administrativo.»

As memórias de quem viveu esses tempos são difusas, sem recordações de impacto no futebol. José Augusto tinha então 20 anos e jogava no Barreirense, só se mudaria para o Benfica dois anos mais tarde. O antigo jogador e treinador tem uma recordação vaga desse surto de asiática, uma das duas pandemias da segunda metade do século XX: a outra foi em 1968, ficou conhecida como gripe de Hong Kong e teve menor impacto em Portugal. «Tenho uma vaga ideia disso, mas foi num período bastante mais curto, nada que se compare com o que estamos a viver hoje», diz ao Maisfutebol José Augusto, hoje com 82 anos e sem qualquer hesitação a constatar que nunca passou por nada como o que se vive agora.

«Desde que me conheço esta é a primeira vez que vejo uma coisa assim, que condiciona todos os aspetos da vida», afirma: «Aquilo não foi nada comparável. Passei por duas fases dessas, mas agora pela primeira vez sou obrigado a ficar em casa.» Entre memórias, José Augusto recorda-se de uma das «medidas» que se aconselhavam naqueles tempos, provavelmente passadas de boca em boca, para evitar que o vírus entrasse em casa. «Quando era miúdo, lembro-me que o que se dizia era para colarmos fitas nas janelas, vedar as janelas para impedir o vírus de entrar… Lembro-me de ver o meu pai ajudar a minha mãe a fazer isso.»

Eram outros tempos, com muito menos informação do que há hoje, como nota José Augusto. «A ciência também não estava tão avançada, nem a informação circulava como agora. Agora estou a ver na televisão em direto o que se passa em Espanha. Já tem quatro mil mortes, é uma coisa inacreditável», desabafa.

Entre a gripe «benigna» e a erupção dos Capelinhos

A informação não circulava e os jornais eram criteriosamente «visados pela Comissão de censura». A imprensa noticiava a gripe pelo mundo, mas falava de uma situação «benigna» em Portugal, como dizia um título do Diário de Lisboa a 7 de outubro. Não era tema central, num tempo marcado aliás pelo espanto perante outro drama, neste caso um fenómeno natural: a erupção vulcânica dos Capelinhos, na ilha do Faial, que tinha começado no final de setembro.

Mas era possível encontrar mais sinais do impacto de gripe, também no desporto. A 6 de outubro, uma notícia breve no mesmo jornal dava conta de uma prova de natação do Sport Algés e Dafundo condicionada pela gripe, porque o clube tinha quase metade dos seus nadadores doentes.

Em Portugal, o ano letivo arrancou no início de outubro, mas as escolas acabaram por fechar poucos dias depois, por todo o país. Quanto ao campeonato de futebol da I Divisão, teve pontapé de saída no início de setembro, sem aparentes sobressaltos.

Otto Glória: «Assim mesmo, com a asiática, conseguimos manter o nosso lugar»

Mas não passaria incólume. A 6 de outubro, o Benfica recebeu o Caldas SC para a quinta jornada, com várias baixas, num jogo que acabou a vencer por 5-1. O Diário de Lisboa desse dia publicava uma crónica de Otto Glória, em que o treinador do Benfica, depois de começar por um tema mais geral, a «extinção do torneio de aspirantes» - «um atentado contra o desenvolvimento do futebol nacional» -, falava sobre o jogo e sobre as limitações da equipa, criticando de caminho a postura defensiva do adversário. «Não podendo apresentar diversos jogadores, que foram também atacados pela ‘asiática’, obrigando-nos a modificar a estrutura da equipa, conseguimos, ainda assim, obter mais um triunfo categórico. Não contando com o concurso de Alfredo, Pegado, Palmeiro e Salvador e com Calado e Ângelo também em precárias condições de saúde, a nossa turma custou um pouco a ordenar as suas acções, tanto mais que o adversário, colocando oito jogadores na defesa, dificultava bastante o nosso trabalho», escrevia o treinador brasileiro, rematando: «Assim mesmo, com a asiática, conseguimos manter o nosso lugar na tabela.»

O Benfica dividia a liderança com o Sporting no final dessa ronda. O FC Porto estava a um ponto e recebia as águias na 6ª jornada. No livro «História de 50 anos do desporto português», edição do jornal A Bola, conta-se que na semana seguinte vários jogadores do Benfica «ficaram de cama, com temperaturas que chegaram aos 39 graus». A gripe afetou Coluna, José Águas, Salvador, Ângelo, Artur, Alfredo e Palmeiro, mas quase todos recuperaram e para a visita às Antas só Salvador e Artur estavam indisponíveis.

De uma semana para a outra foi-se tornado claro, lendo o Diário de Lisboa, que a gripe tinha alcançado grande dimensão por todo o país. Contava-se que as limitações pelas ausências de trabalhadores doentes atingiam «vários serviços», falava-se de corrida às farmácias, com horários prolongados, do fecho das escolas, da mobilização de «todos os enfermeiros», de serviços públicos condicionados também no Porto, de diminuição de frequência nos transportes e espetáculos cancelados e de alguns produtos que escasseavam, incluindo leite. No desporto, a notícia de que Benfica e Belenenses cancelaram as atividades de ginástica que iniciaram dias antes.

A vitória do FC Porto, a entrada «raivosa» de Virgílio e um castigo inédito

De nada disto se falou no clássico, que se jogou a 13 de outubro e passou ao lado da gripe. Foi um jogo intenso, que o FC Porto venceu com um golo de penálti apontado por Monteiro da Costa e que ficaria marcado por um episódio famoso. Virgílio foi expulso aos 23 minutos, por uma entrada sobre Caiado. O lance foi visto assim por Tavares da Silva, no Diário de Lisboa: «Ao 23º minuto, o capitão da equipa do Porto (Virgílio) foi expulso do terreno, e mal pareceria se o árbitro procedesse doutro modo… Porque a jogada raivosa, do defesa-direito, dando um pontapé em Caiado e deixando de lado a bola, é daquelas que não podem ter perdão.» Mas o cronista matizava a violência do lance: «Julgamos que o defesa Virgilio que, praticando um mal, dele logo certamente se arrependeu (conhecemo-lo bem), se deixou influenciar por uma série de pequenos conflitos que preenchiam o jogo, dando-lhe um aspeto desagradável, quezilento, mais feio do que formoso.»

Não foi tanto a expulsão que deixou este episódio marcado na história, mas o castigo. Numa decisão inédita, a Federação decidiu que Virgílio ficaria suspenso até Fernando Caiado estar apto para voltar a jogar. A suspensão do lateral portista durou quase três meses, até 5 de dezembro.

Quanto à luta pelo campeonato, o Benfica perdeu a liderança nas Antas e a gripe não foi desculpa para a derrota, disse Otto Glória no final. A vitória permitiu ao FC Porto passar as águias e aproximar-se do Sporting. Travaram uma luta mano a mano até final e o Sporting acabou por conquistar o título, o último com dois dos «Cinco Violinos» em campo, Vasques e Travassos.

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