O penálti à Cruyff, que era à Coppens, agora também é à Olhanense - TVI

O penálti à Cruyff, que era à Coppens, agora também é à Olhanense

Baliza

Muita gente tentou repetir o lance associado ao génio holandês, que nasceu muito antes. Em Portugal, Caleb e Hassan conseguiram finalmente no fim de semana passado. Foi assim

Tintim, o personagem de BD de Hergé, é belga. E não existe. Poirot, o detetive de Agatha Christie, é belga. E não existe. Manneken Pis, o menino a fazer xixi no centro de Bruxelas, é belga. E só existe em estátua de bronze. De pessoas propriamente ditas, o único belga de carne e osso famoso é Eddy Merckx, o ciclista mais conhecido como Canibal. Calma lá, até nem é o único. Estamos a esquecer-nos de Rik Coppens, o inventor do penálti a dois toques, aquele lance invariavelmente associado ao Ajax de Johan Cruyff. Pois bem, 25 anos antes do génio holandês, Coppens inaugura esta obra-prima.

A história começa a 7 de junho de 1957, durante um Bélgica-Islândia de qualificação para o Mundial. O jogo é de sentido único (8-3), tal a categoria dos belgas comparada com a falta dela dos nórdicos. Com 6-1 aos 44 minutos, a Bélgica ganha um penálti, apitado pelo luxemburguês Blitgen. Preparado para marcá-lo, Rik Coppens toma balanço, corre e, em vez de rematar para a baliza à guarda de Hermannsson, passa surpreendentemente para o lado, onde surge André Piters. Este, muito placidamente, recebe a bola e devolve-a a Coppens. Com a baliza à sua mercê e os islandeses totalmente atarantados, é golo pela certa. Sete-um, vai buscar. O estádio rejubila com a ideia inovadora e todos os belgas celebram o feito com uma pratada de moules frites - mexilhões com batatas fritas é um (prato) belga e existe. Como Coppens.

Ora bem, o tempo avança e a moda expande-se. Chega a Inglaterra, imagine-se. No dia 6 fevereiro 1961, jogo de repetição da 4.ª eliminatória da Taça da Liga entre Plymouth e Aston Villa. Quando o marcador assinala 5-3, penálti para o Plymouth. O avançado Johnny Newman tem um truque na manga e marca após entendimento com Wilf Carter. Três anos depois, mais do mesmo. Novamente por Newman. Já estamos a 21 novembro 1964, o adversário é o Manchester City, na 2.ª divisão. O jogo está empatado e a vitória chega através do penálti a dois toques: passe de Newman, golo de Trebilcock.

Deixemos a ilha, voltemos ao continente. Tarde ventosa em Amesterdão, 5 dezembro 1982. O Ajax goleia 5-0. Pobre Versfeld, guarda-redes do Helmond. Além da barrigada de golo, ainda assiste, impávido e sereno, ao penálti de Cruyff e Jesper Olsen. O lance corre mundo, ganha outra dimensão. E chega a Portugal.

Quêêêêê? True story. Dito e João Cardoso protagonizam a jogada, idealizada pelo treinador argentino Mário Imbelloni, treinador argentino do Braga em 1977-78. “Para ele, o futebol era espectáculo. E, às vezes, treinava este tipo de penáltis”, adianta Dito, por telefone. É só com Quinito a treinador que Dito e João Cardoso optam pela reedição de Coppens. E logo num clássico vs Vitória SC, em Braga, a 21 abril 1984. O resultado está 3-0 para os bracarenses quando há um penálti. Dito e João Cardoso olham para Quinito e este acena positivamente com a cabeça. Os dois jogadores estão preparados para o lance e executam-no com perfeição. A bola entra na baliza de Silvino (esse mesmo) e é o delírio da massa associativa. Ou não. Soa o apito do árbitro portuense José Guedes. “Houve violação por parte do Dito, que entrou na grande área quando João Cardoso se aprestava para apontar a grande penalidade. Não poderia fazer outra coisa: considerei o golo de Dito como irregular e mostrei-lhe o cartão amarelo.” Há um jornalista a perguntar-lhe «mas não deveria ter dado ordem para repetir o penálti?». A resposta pronta: «Então iria beneficiar o infrator? O Dito comete uma irregularidade e, depois, o árbitro permitiria a repetição do penálti?» Dito, hoje director-desportivo do Gil Vicente, diz de sua justiça: «No final do jogo, o José Guedes admitiu que ficou confuso e anulou o golo para evitar problemas maiores.» Eufórico com o inequívoco 3-0, Quinito elogia José Guedes. «Provou mais uma vez a sua excelência, com categoria para chegar a internacional.»

Anos 90, nicles. Dizemos nós. Século XXI. Londres, 22 outubro 2005. Dia de clássico entre Arsenal e United. Aos 61 minutos, penálti e 1-0 de Pires. Aos 83, outro penálti. Pires arranca para a bola e toca para o lado. Ou não. A bola nem se mexe. Henry avança mais que preparado para o efeito surpresa e a sua cara de pasmo na direcção do compatriota é um poema. É o penálti mais non sense? Naaaaaaa. Quatro anos depois, em 2009, durante o Portugal-Cabo Verde em sub-21, para o Torneio da Madeira, os jogadores Pereirinha e Rui Pedro embrulham-se com a bola e a defesa adversária afasta o perigo. A acção é absurda. O selecionador Rui Caçador afasta a dupla, com o apoio de Carlos Queiroz.

Os anos avançam e há penáltis a dois toques bem sucedidos. Lá fora, sempre. Um no Brasil até garante o título de campeão da 2.ª divisão para o Américo Mineiro, através de um passe de letra de Euller (requinte) para o remate glorioso de Douglas. No outro lado do mundo, mais precisamente na Coreia do Sul, em 2010, o Sanfrecce Hiroshima sai com honra da Liga dos Campeões asiáticos com um golo de Sato, após passe de Makino.

E mais, e mais? Novembro, dia 4. No Algarve, há esplendor na relva entre Olhanense e Fabril. O líder isolado da Série D do Campeonato de Portugal marca o primeiro, aos 5 minutos, pelo nigeriano Sapara. E amplia para 2-0 aos 31 minutos por João Vasco. À beira do intervalo, penálti. Os jogadores acotovelam-se à entrada da grande área para conseguir o melhor lugar, enquanto o brasileiro Caleb se prepara para marcar. O árbitro apita, Caleb arranca e dá um toque na bola para o lado. Aparece Hassan e toma lá vai buscar. É o 3-0. Os olhanenses festejam, os barreirenses esgrimem argumentos com o senhor do apito. Nas bancadas do José Arcanjo, é o delírio da massa associativa. Literalmente. Acaba 5-0.

Cá está ele, a partir dos 23 segundos

«Um penálti do Cruyff». Palavra do treinador Vasco Faísca. «Quando vi o penálti do Cruyff, há uns anos valentes, disse para mim mesmo que iria imitá-lo. Olha, foi este domingo.» E porquê? «É costume treinarmos as bolas paradas no sábado. Eu fico com os livres numa baliza e o meu adjunto fica com os penáltis na outra. Neste sábado, excecionalmente, lembrei-me de treinar o penálti do Cruyff. Falei disso aos jogadores e eles ficaram entusiasmados. Geralmente, faço uma competição de penáltis na véspera do jogo. Quem a ganhar, tem o direito de marcar o penálti do jogo. Este sábado, ganhou o Hassan. Então preparámos o lance com o Hassan a rematar e o Caleb, muito técnico, a preparar o lance. A ideia só iria para a frente se estivéssemos a ganhar. Já estávamos em vantagem e fomos para a frente com a ideia. O Caleb foi para a marcar e, se reparares, o Hassan está no vértice esquerdo da meia-lua e o João Vasco no vértice direito, espécie de plano B, caso o Hassan ficasse sem ângulo de remate. O Caleb passou e o Hassan marcou. Foi uma festa, só abraços no banco de suplentes, ahahahah.» E as pessoas no estádio? «Estavam todas contentes, um penálti deste tipo é um acontecimento. Sempre pensei que um dia iria oferecer um espetáculo diferente às pessoas. Ei-lo.» E o Fabril? «Não gostaram, mas não fizemos aquilo em jeito de troça. Foi uma ação planeada, como um livre estudado ou um canto preparado ao mais ínfimo pormenor.»

Para a história, o provérbio do «à terceira é de vez». Na ressaca dos falhanços de Dito e João Cardoso mais Pereirinha e Rui Pedro, eis finalmente um penálti de Coppens a funcionar às mil maravilhas, através de Caleb e Hassan. Detalhe precioso: sim, este Hassan é o filho daquele Hassan, melhor marcador da 1ª divisão portuguesa 1995-96, pelo Farense. Nascido em Faro há 25 anos (pouco depois do Mundial 94, de boa memória para o pai, autor de um golo vs Holanda), tem feito carreira em Portugal. Juvenil no Inter Almancil, júnior no Vitória FC, sénior no Casa Pia, Pinhalnovense, Freamunde e Olhanense. Esta época corre-lhe de feição, oito golos em dez jogos, entre campeonato e Taça de Portugal.

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