Da defesa do Benfica ao padel: as voltas que o coração e a vida dão - TVI

Da defesa do Benfica ao padel: as voltas que o coração e a vida dão

  • André Cruz
  • 23 out 2020, 22:56
Fábio Faria (Arquivo pessoal)

Um problema cardíaco afastou Fábio Faria dos relvados. Passou por dois anos de recuperação e só voltou a desfrutar da beleza da vida nos escalões de formação do Rio Ave, como treinador. De Espanha trouxe «um bichinho» que vem sendo alimentado há cinco anos, tem um clube, dá aulas e diverte-se a jogar com antigos colegas: «Ainda ontem fiz dupla com o Custódio».

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Fábio Faria vivia um «conto de fadas» aos 22 anos. Estava no ponto mais alto da carreira e onde sempre sonhou chegar. O final feliz parecia estar perto. Mas o que o anfitrião desta história não sabia, é que aquele era mais um capítulo de um conto que ainda tinha muitas páginas pela frente.

A história é sobejamente conhecida pelo leitor atento ao fenómeno do futebol. Houve um jogo em que se sentiu mal, mas foi durante uma corrida com o pai que teve de tomar a decisão mais difícil de toda a vida. Era a quarta vez que Fábio caía e precisava de ser reanimado com a ajuda de um desfibrilhador. Decidiu deixar de jogar quando estava no clube do coração, o Benfica, sob as ordens de Jorge Jesus, um treinador que admira, e com todos os sonhos que um jovem em início de carreira projeta para o futuro.

Seguiu-se, então o período mais negro da vida. Dois anos a contas com antidepressivos e com sessões de psicologia e, mais tarde, psiquiatria, para tentar combater uma depressão profunda.

«Deixei o futebol com 22 anos, cheguei ao Benfica com vinte e não fiz um grande contrato. Era por objetivos, tal como fazem com os mais jovens, não consegui juntar muito e naquela altura não pensas deixar o futebol tão cedo. Cheguei lá depois de muitos sacrifícios e em tantos jogadores do mundo tinha de me acontecer, não conseguia aceitar», conta em conversa com o Maisfutebol.

Fábio só voltou a saborear a vida quando o Rio Ave, clube da terra, lhe abriu novamente as portas. Aceitou o convite para ser treinador adjunto dos sub-23, porque o futebol é «um vício» que não vai embora. Mas, atualmente, há outro desporto que faz parte do quotidiano: o padel. De manhã, Fábio gere o clube de padel que criou em janeiro, à tarde forma jovens nos relvados de Vila do Conde.

Um «bichinho» que nasceu em Espanha

O futebol sempre esteve presente em casa. Filho de um ex-jogador, Fábio habituou-se à rotina da bola, embora tenha começado no basquetebol, antes de optar pelo desporto rei. Já a raquete, até 2012, só era utilizada – e raramente – para o ténis.

«Estava emprestado pelo Benfica ao Valladolid, em 2012, e no condomínio onde vivia tinha um campo de padel, em betão, mas não sabia como se jogava. Na altura, estava em Espanha com o meu pai e o meu melhor amigo e fomos bater umas bolas. Até pensava que se jogava um contra um! Fiquei curioso porque no supermercado havia muitas tendas a vender material de padel e perguntei ao senhor de uma loja como se jogava. Comprei logo umas raquetes.»

Foi no balneário que compreendeu o vício. «Os meus companheiros de equipa eram viciados e ensinaram-me que se jogava em duplas. A partir daí comecei a jogar. Vim embora de Espanha,  continuei no Benfica e não joguei mais até 2015. Aí, surgiu em Vila de Conde um clube de padel e os donos são meus amigos, então, convidaram-me para ir à inauguração e começou o bichinho que se mantém até hoje», prossegue.

O prazer por jogar foi crescendo de tal forma que não o queria guardar para si. O importante, para Fábio, era o convívio, jogar com os amigos e chamar pessoas à modalidade. Foi aí que entendeu que podia ter outro papel no desenvolvimento da mesma.

Não se juntou ao clube de padel dos amigos porque seríam «oito sócios» e isso daria «problemas de gestão», então optou por, em conjunto com outro amigo, montar o próprio projeto, o Elite Padel, em janeiro.

Fábio Faria (à esquerda) com a equipa técnica do Rio Ave

A viver em Vila do Conde, o critério de escolha do berço do clube era uma cidade em que não existisse qualquer recinto de padel.

«Surgiu a oportunidade de vir para Barcelos, porque era uma cidade aqui perto e decidi arriscar. Obviamente que tinha medo, porque não sou daqui e não conhecia ninguém», confessa.

Após a escolha da cidade, surgiu um entrave: o espaço. Os armazéns eram escassos e os que existiam não tinham as condições adequadas.

O armazém escolhido era «muito baixo», isto tendo em conta que a altura mínima para estar habilitado à prática de padel deve fixar-se nos oito metros. Contas feitas aos custos e um plano delineado, seguiu-se um processo de requalificação do espaço. Aí, Fábio decidiu mudar a ideia inicial.

«Íamos ter quatro campos. Mas iam ser todos muito apertados. E pensei: ‘as pessoas vêm jogar e depois vão embora. Não é isto que quero, quero cativar as pessoas e fazer com que se sintam em casa’. E decidi abdicar de um campo e colocar o bar», revela.

De facto, aproveitando a vantagem de «conhecer quase todos os clubes do Norte», optou por «retirar o melhor de cada um» e construir um espaço à medida das pretensões de um jogador de padel.

«Toda a gente que cá vem diz que o clube é diferente, caprichei no bar para ficar mais bonito e noto que as pessoas que jogam padel gostam do convívio no final. Fazem festas de anos aqui, jantares… no outro dia reservaram os campos todos e encomendaram um leitão para ficarem no bar», conta entre risos ao nosso jornal.

«O meu pai era o meu parceiro, no futebol não teria essa oportunidade»

Com 80 mil praticantes ocasionais, o padel tem-se revelado um fenómeno crescente em Portugal. Para Fábio, este é «um desporto familiar e de convívio», que além da «prática de exercício físico», estimula as relações. 

«As pessoas gostam de no final ficar a beber finos, conviver, fazer apostas com os amigos e familiares. Isso é que é importante. Lembro-me que quando comecei a jogar o meu pai era o meu parceiro, nunca no futebol teria essa oportunidade», reconhece.

Ainda assim, Fábio compreende quem rotula o padel de desporto elitista, já que «não é barato», isto porque os preços se situam nos cinco euros por pessoa por uma hora de jogo.

«No início notava nas pessoas que gostavam de se exibir e acharem-se superiores, não vinham tanto por jogar, mas para mostrarem o equipamento mais bonito, mais para dar nas vistas» aponta, reconhecendo que este é um desporto transversal a todas as idades, embora tenha «mais clientes entre os 30 e 40 anos». «Vem a mulher e arrasta consigo o marido e os filhos», acrescenta.

Apesar de ser dono do clube, Fábio reconhece que «devia passar mais tempo» no armazém, mas «o vício» do futebol não o permite. Ainda assim, garante total confiança nas pessoas que estão à frente do negócio, entre as quais o pai. «A gestão é muito fácil. Basta ter as pessoas certas à frente do negócio e consigo controlar tudo o que se passa através da nossa aplicação», revela.

«Jogo com antigos colegas e as pessoas passam, olham e querem vir aprender»

Antes de aceitar o convite do Rio Ave para integrar a equipa técnica do plantel de sub-23, Fábio jogava padel duas a três vezes por semana. A doença não o permitia «exagerar».

«Tomo todos os dias de manhã um comprimido para baixar o ritmo cardíaco, hoje em dia já consigo controlar o meu corpo, noto quando estou mais cansado e as pessoas que jogam comigo também me conhecem e deixam-me descansar mais um pouco. Mas, naqueles dois primeiros anos, pouca gente jogava então ligavam-me a toda a hora e eu não sabia dizer que não», confessa.

A prática levou a que se colocasse num bom patamar para amador, mas os problemas cardíacos não permitem que seja jogador federado. Costuma jogar com vários ex-jogadores, como Nuno Assis, Bosingwa, Raul Meireles, Pedro Mendes ou Fernando Meira. Estes duelos, está claro, suscitam o interesse e regalam os olhos dos mais curiosos.

«Durante a semana marco jogos com antigos colegas e as pessoas passam, olham e isso faz com que queiram vir aprender», diz. Fábio destaca a importância das redes sociais, que permitem colocar o padel num patamar de «desporto da moda».

«Até o agente que trabalhava comigo e com o Jorge Mendes me ligou, a perguntar onde era o meu clube porque ouvia falar», conta.

Alguns clientes já solicitam aulas particulares, embora não seja do seu agrado. «Não é algo que me agrade muito, dou porque tenho jeito, mas não vim do ténis, e o importante no padel é explicar como se pega na raquete e tenho dificuldade porque não tive essa formação. Já como vivi toda a minha vida foi ligada ao futebol, é mais fácil explicar», justifica.

Ainda assim, Fábio compreende que os iniciantes têm muita dificuldade, sobretudo, em «fazer com que a bola passe para o outro lado da rede».

«Há dias, vim cá almoçar e entraram quatro meninas pela primeira vez. Elas estavam a jogar e fui lá intervir, porque estavam a pagar e nem sequer conseguiam acertar na bola. Perguntei se não se importavam que desse uma aula e foi super divertido porque elas compreenderam, já acertavam na bola e estavam a gostar. No final, vieram ter comigo a dizer que queriam ter outra aula. É importante porque no início as pessoas não têm noção do que é o padel e precisam de alguém para ajudar.»

Com taxas de ocupação a rondar os 90 por cento, Fábio nota que há cada vez mais interessados em experimentar o padel.

«Reservar a partir das 18 horas é impossível. As pessoas já têm de reservar com um mês de antecedência, por vezes até se chateiam, tem sido uma loucura», conta.

O Elite Padel, ainda com menos de um ano de existência, viu-se obrigado a fechar portas devido à pandemia de covid-19 e só as conseguiu reabrir por não ter «empréstimos bancários» a honrar. Já no mesmo espaço, o ginásio que abrira na mesma altura, cedeu à crise financeira. Mas, como diz o ditado, o azar de uns é a sorte de outros e os metros quadrados deixados de vago revelaram-se muito úteis para o antigo jogador.

«Aproveitamos o espaço vazio e aumentamos para seis o número de campos, porque se não já tínhamos outro sítio onde abrir, mas não era tão bom porque aí tinha de ter mais funcionários, mais despesas e aqui com os mesmos consigo gerir os seis campos. Queremos criar uma academia e que o padel cresça ainda mais, por isso vamos dividir: quatro para jogos de marcações e dois para aulas», projeta.

Aconselhar os mais jovens e aceitar a realidade

Depois de um capítulo negro que gorou as possibilidades de viver o «conto de fadas», Fábio sente-se «realizado», com «uma vida financeiramente estável», e tem por missão aconselhar os mais jovens.

«Tento transmitir-lhes que não é fácil a vida de um jogador de futebol. Tens de fazer muitos sacrifícios para chegares lá acima. Saí pela primeira vez à noite com 19 anos, não bebia, não fumava. É difícil, mas quando chegas ao topo é gratificante. Muitos ficam amuados quando não jogam, ficam no banco ou não são convocados. Eu digo-lhes que têm sorte por fazerem o que mais gostam. Eu era como eles, mas depois do meu problema pergunto-me porque ficava assim.»

A nível profissional, Fábio Faria quer chegar à primeira equipa do Rio Ave. Já concluiu o nível I do curso de treinador e pretende dar seguimento a essa formação. Mas, por vezes, ainda sente saudade dos tempos de jogador.

«A minha namorada não percebia porque é que eu às vezes via vídeos dos meus jogos no Youtube. Às vezes estou a ver jogos de futebol e fico triste, tens sempre aquelas quebras que te fazem voltar atrás para rever as tuas memórias. Tivemos uma conversa com o Tarantini e ele explicou que quando deixar o futebol vai sentir o mesmo, aí ela já me compreendeu. Trabalhei tanto, cheguei ao clube do meu coração muito cedo e dois anos depois acabou tudo…», lamenta.

Fábio Faria tinha atingido o clímax da história que estava a escrever aos 22 anos. O vilão, mascarado de problema cardíaco, veio roubar a possibilidade de viver o sonho alimentado desde o início. Esse capítulo já está fechado, mas não à chave.

«Ultrapassei, mas de vez em quando sinto saudade». O imaginário insiste em manter presente aquele conto de fadas que não pôde viver.

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