«Primeiro paga cem contos, depois eu toma banho» - TVI

«Primeiro paga cem contos, depois eu toma banho»

Aparício

O último triunfo do V. Setúbal sobre o FC Porto já tem quase trinta anos e traz-nos à memória o dia em que Meszaros ganhou uma aposta e exigiu cobrá-la antes do banho

O V. Setúbal recebe o FC Porto no sábado num jogo cheio de tradições e com muitas histórias para contar. Sabia que há quase trinta anos que os sadinos não vencem?

A última vitória data de 7 de maio de 1989, no antigo Estádio das Antas, e teve António Aparício na pele de herói: o avançado natural de Paul, ali a vinte quilómetros da Covilhã, e que o V. Setúbal descobriu em França, marcou o único golo do jogo.

Aconteceu aos 55 minutos, de cabeça, após um cruzamento do lateral Crisanto.

«Nesse ano ganhámos a FC Porto e Sporting, empatámos em Alvalade e empatámos em casa com o FC Porto. No ano anterior tínhamos ganho a Benfica e Sporting», diz Aparício.

«Tínhamos um treinador formidável, o senhor Malcolm Allison, que tinha saído do V. Setúbal a meia da época anterior, mas o Manuel Fernandes continuou o trabalho dele. É com o Manuel Fernandes que ganhámos no Porto e em casa ao Sporting.»

Ora Malcolm Allison obriga Aparício a desfazer-se em elogios.

O treinador inglês, nome grande do Manchester City e que já tinha sido campeão no Sporting, já saíra de Setúbal a mais de um ano, mas o legado dele ainda perdurava.

«Era uma pessoa fantástica, muito bom no relacionamento com os jogadores, dava-nos um á vontade fantástico. Ele não abdicava era da sua garrafinha de champanhe. Perdesse ou ganhasse, acabava o jogo, tinha de beber a sua garrafinha de champanhe. Era obrigatório», sorri.

«E saía do estádio direitinho, tranquilo. Era uma pessoa muito amiga e todo o plantel do Vitória morria por ele. Só queria ganhar, ganhar, ganhar. Não havia outra coisa para ele. Ganhámos ao Benfica num jogo em que acabámos com quatro avançados. Que treinador tem coragem de jogar contra o Benfica com quatro avançados? Português, nenhum.»

Ora aquele FC Porto-V. Setúbal que os sadinos ganharam foi um jogo cheio de peripécias. Antes de mais porque se jogou na antepenúltima jornada do campeonato e o FC Porto precisava de vencer para continuar a sonhar com o título. A derrota tornou o Benfica matematicamente campeão.

«Esse jogo foi uma confusão terrível. Estavam a inaugurar o placard eletrónico nas Antas e já tinham escrito Rui Águas para preparar o nome do marcador do primeiro golo, depois era só meter aquilo no ar. Troquei-lhes as voltas. Era só carregar no botão, mas enganaram-se. Tiveram de escrever Aparício. Depois quando fui para o Sp. Braga os meus colegas até meteram uma foto do placard eletrónico no balneário para brincar comigo», conta Aparício.

«Mas atenção, demorámos algum tempo a sair das Antas. Aquilo foi feio. As pessoas do FC Porto estavam terríveis, furiosas. Tivemos de ficar lá ainda bastante tempo à espera para podermos sair.»

Nenhuma história, no entanto, faz Aparício sorrir tanto como a que mete Meszaros e uma aposta.

«O Meszaros chegou atrasado ao autocarro, para viajarmos para a concentração. Chegou atrasado, de óculos de sol e o presidente Fernando Oliveira não gostou muito», recorda.

«Quando chegámos ao Porto, o presidente disse-lhe Ó Meszaros, amanhã vão ser cinco, vais levar cinco no mínimo. Nisto o Mezsaros responde que o Vitória ia ganhar. Aposta? E o presidente sim senhor, que apostava cem contos. Apertaram as mãos e ficou fechado.»

Ora o V. Setúbal venceu mesmo e Meszaros, então com 39 anos, dois Mundias jogados (78 e 82) e já campeão pelo Sporting, quis receber a aposta.

«No final do jogo o presidente disse-lhe para ir tomar banho, que ele ia pagar a aposta, e o Meszaros vira-se: não, não, primeiro paga, depois eu toma banho. Obrigou os homens a ir desencantar cem notas de conto. O que é certo é que lhe pagaram logo ali. Depois chegou ao pé de mim e deu-me vinte contos. Tu faz golo, tu fica com vinte conto, o resto é meu. O Mezsaros não facilitava», diz.

«Peguei naqueles vinte contos, paguei um almoço à equipa e ainda me sobrou algum. Todas as quartas-feiras íamos almoçar ao Capote com o dinheiro dos prémios de jogo. Na quarta-feira fui eu que paguei, depois na semana a seguir pagou o Mezsaros. Íamos sempre ao Capote porque à quarta-feira faziam um cozido à portuguesa fantástico. Era cozido à portuguesa para todos.»

Ora no meio destas histórias, convém não esquecer o essencial: foi a última vitória do FC Porto. Há quase trinta anos. Desde então os azuis e brancos venceram por 48 vezes e o melhor que o V. Setúbal conseguiu foram seis empates: seis empates em 54 jogos.

Houve resultados por 6-0, por 5-0, por 4-0, enfim, houve 11 goleadas do FC Porto. Só na última época, por exemplo, os sadinos sofreram cinco golos em cada um dos dois jogos.

O V. Setúbal tem vindo, portanto, em queda desde os anos 80 e repetir aquela tarde de 7 de maio de 1989 parece cada vez mais uma tarefa hercúlea. Mas o que explica este trambolhão?

«Nos anos 80 tínhamos uma grande equipa e vou explicar-lhe porquê: tínhamos grandes treinadores que chegavam ali e criavam um verdadeiro grupo, solidário, amigo. Havia uma coisa que ninguém podia beliscar, o Vitória Futebol Clube. E quem não estivesse bem ia embora. Foi isso que nos permitiu fazer grandes jogos e conseguir grandes vitórias», responde.

«Tínhamos uma grande equipa de futebol e de amigos. Tínhamos um capitão fantástico, o Roçadas. O baixinho era lixado. Ia para cima deles. Se via que algum jogador não estava a dar tudo num treino ou num jogo, ia para cima dele, que ficava tudo em sentido. Um capitão fantástico.»

Com os anos que foram passando, o V. Setúbal foi perdendo essa mística. Palavra de Aparício.

«O V. Setúbal deixou de apostar na formação e começou a contratar jogadores daqui, dali e de acolá, que não sentem o clube. O André Pedrosa e o André Sousa têm lugar nesta equipa. O Diogo é um guarda-redes fantástico, o João Oliveira e o Valdu são dois excelentes avançados», diz.

«Mas preferem os jogadores de fora porque têm mais nome. Depois se perdem um jogo os adeptos ficam chateados e afastam-se do clube. Se jogasse com os jogadores da casa, os adeptos ficavam chateados, mas davam um desconto. Assim vão-se afastando, afastando, afastando.»

Aparício ainda se lembra das tardes em que o Bonfim tinha vinte mil adeptos nas bancadas.

«Olhe, por exemplo, fizemos um jogo que ficou 4-4 com o FC Porto, em 87, com vinte mil pessoas no Bonfim. O Pinto da Costa tinha prometido ao Fernando Oliveira que se o FC Porto fosse campeão europeu o primeiro jogo a seguir era no Bonfim. Então o FC Porto ganhou em Viena e depois veio fazer um particular a Setúbal. Ficou 4-4 e eu marquei os quatro golos», lembra.

«Depois disso até era para eu ir para o FC Porto com o Artur Jorge e com o baixinho, com o Octávio Machado, mas o Fernando Oliveira não me deixou ir.»

Aparício acabou entretanto por se afastar um pouco do V. Setúbal. Foi treinador dos juniores, foi vice-presidente e diz que o clube lhe ficou a dever dinheiro. Depois disso foi contratado pelo Cova da Piedade, para treinar a equipa sub-23, e até venceu (2-1) na última jornada no Bonfim.

«Fiquei muito triste ao entrar no balneário do visitante. Custou muito, muito, muito.»

Aparício fala com a voz embargada e quase a chorar. Ele que nunca deixou de ser adepto. Continua a ser sócio, a filha é sócia, a neta é sócia. No sábado vai estar nas bancadas a torcer pelo Vitória, como sempre.

Mas a verdade é que é cada vez mais difícil voltar a imaginar uma tarde como aquela de maio de 1989. Até porque, se for preciso, os números estão aí para puxar os adeptos sadinos das nuvens.

Recorde como foi o último triunfo do V. Setúbal sobre o FC Porto:

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