O ‘bad boy’ radioativo que desistiu do futebol (e da seleção) aos 28 anos - TVI

O ‘bad boy’ radioativo que desistiu do futebol (e da seleção) aos 28 anos

Jean Deza (AP)

Jean Deza teve a bola aos seus pés e preferiu rematá-la para fora. A história de um prodígio de «boa índole» e de «temperamento quente», descrito por Guima, o português que o acompanhou na aventura «traumatizante» na Eslováquia, com racismo à mistura

Cabeça atormentada, coração selvagem, uma fúria inexplicável. No peito o desejo de desafiar o mundo, nos pés um talento raro. «Era um sobredotado, um virtuoso.»

Aos 28 anos, Jean Deza desistiu. Atirou a toalha ao chão, rematou a bola para fora, fez gestos de enfado e raiva. Uma carreira demasiado curta para alguém que tanto prometeu.

Guima, antigo ponta-de-lança português e atual treinador do Valecambrense, partilhou o balneário do Zilina, na Eslováquia, com o médio peruano.

Mal o Maisfutebol lança o nome do protagonista, Guima lembra-se de «vários episódios». Há boas razões para isso e sempre dois lados na mesma história.

«Ele era um menino de ouro, de bom coração e boa índole. Mas tinha o sangue muito quente, sim. E na Eslováquia eles eram precisamente o oposto. Frios, preconceituosos, enfim. Sei que a mentalidade mudou nos últimos anos, mas em 2012 ainda era muito assim.»

No Peru, os relatos sobre os problemas de indisciplina de Jean Deza são famosos. Na Eslováquia, quando o bad boy ainda segurava um mundo de promessas, Guima jura que Beza foi mais vítima do que réu.

«Ele teve problemas por ter um temperamento diferente e era incompreendido. Não havia tolerância com nada e há um episódio que resume isso perfeitamente», conta o antigo atacante, com carreira feita entre Feirense, Oliveirense, Académico de Viseu, Zilina e Cluj (Roménia).

Não faltava muito para acabar e o Beza estava a aquecer. A meio pediu para ir à casa de banho e voltou ao campo três ou quatro minutos depois. Mal o jogo acabou, descemos ao balneário e ele envolveu-se em agressões físicas com o roupeiro. Aliás, foi agredido e reagiu.»

O motivo? Os eslovacos não gostaram da forma como encarou a condição de suplente não utilizado e a ida à casa de banho num momento em que o jogo se preparava para acabar.

Guima não tem medo das palavras: «O Deza era ousado, mesmo a jogar com bola era agressivo e levava muita porrada nos treinos. Porrada a sério. Ele era vítima de um racismo encapotado, de bullying, e reagia mal. Foi traumatizante.»

Jean Beza e Guima eram dois dos três latinos do plantel do Zilina. O terceiro era Ricardo Nunes, um português com raízes sul-africanas.

«Não sabia que ele tinha encerado a carreira. Mas, se associar o que eu presenciei a esses episódios de indisciplina, compreendo. Tenho pena, porque era de facto um bom jogador e um bom rapaz. Eu era mais velho do que o Beza e senti a mesma desconfiança por parte de alguns dos eslovacos do grupo.»

Guima não quer generalizar e diz que em 2021 as coisas são distintas. Martin Dubravka, guarda-redes do Newcastle e da seleção eslovaca é, de resto, «um dos bons amigos» feitos pelo agora treinador português no futebol.

O Deza tinha 19 ou 20 anos. Tinha uma vontade enorme de viver, queria sair, gostava de mulheres e na Eslováquia não havia espaço para ele se divertir, muito menos compreensão. Claro que só podia acabar mal.»

Da Eslováquia, Jean Deza rumou a França onde esteve três anos no Montpellier e ainda experimentou o futebol búlgaro, no Levski Sófia, em 2016/17. A partir daí, o ocaso. Escândalos e mais escândalos.

Poucos se lembrarão, agora, de que em 2014 Jean Deza foi o melhor em campo num amigável entre Inglaterra e Peru, antes do Campeonato do Mundo. Somou seis internacionalizações, podia ter somado muitas mais.

VÍDEO: a exibição de Jean Deza contra Inglaterra em 2014

«Bom, perante tudo o que tem sucedido, quero agradecer o apoio da minha família, mulher e de todos os clubes que demonstraram interesse em mim. Só queria deixar esta mensagem pública para dizer-lhes que a minha decisão é não voltar a jogar futebol.»

Jean Deza recorreu ao instagram para anunciar assim, sem contemplações, o adeus aos relvados. A mensagem sucedeu a mais um problema disciplinar do qual resultou a saída do Carlos Stein, o último e modesto clube de um percurso que chegou a entusiasmar.

No Peru descrevem-no como «radioativo». Percebe-se. Em junho de 2020, o Alianza Lima despediu-o por não respeitar o apertado protocolo imposto em tempos de pandemia; em abril de 2021, o Carlos Stein multou-o depois de se tornarem virais imagens de Beza a beber na via pública, numa fase em que o governo impusera uma espécie de ‘Lei Seca’ aos peruanos; no início de novembro, Beza foi novamente penalizado, após uma saída demasiado prolongada num sábado à noite.

O atleta deixou de aparecer nos jornais desportivos e passou a fazer as delícias das revistas cor-de-rosa. A história é um clássico do futebol profissional: o menino pobre agarra-se ao futebol e a exigência do jogo não é acompanhada pelo lado emocional.

Jean Deza terá direito a contar a sua versão desta «carreira louca», expressão utilizada pelo próprio. O português Guima, aliás, compreende parte da sua «irreverência». Os factos, porém, são duros.

Beza saiu do Zilina, do San Martín, do Montpellier, do Alianza, do Levski, do Sprt Huancayo, do UTC e do Binacional sempre por motivos disciplinares e em conflito.

Radioativo.

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