Do FC Porto à Nigéria: o português que prega o evangelho do Barcelona - TVI

Do FC Porto à Nigéria: o português que prega o evangelho do Barcelona

Jorge Couto Reis é o diretor técnico da academia dos catalães em Lagos e um seguidor da filosofia de Vítor Frade, Johan Cruyff e Pep Guardiola. «Pretendo trabalhar sempre perto do talento.»

Misteriosos são os caminhos da fé. A crença no evangelho do FC Barcelona levou Jorge Couto Reis, um português nado e criado entre o Porto e Matosinhos, a percorrer meio mundo e a instalar-se na Nigéria.

Jorge tem 30 anos e é o diretor técnico da academia do gigante catalão em Lagos, a maior cidade do país centro-africano, mas esse é apenas o último troço de uma via sagrada e dedicada ao bom futebol. O futebol total.

Pupilo do mestre Vítor Frade e seguidor da inspiração desenhada pelas equipas de Johan Cruyff, Jorge chegou em 2016 aos quadros do Barcelona com a naturalidade de quem chega onde sempre quis estar.

Entrou no laboratório de La Masia, privou com o génio de Paco Seirul-lo e passou a ser um enviado da filosofia blaugrana aos territórios da bola indígena. Jorge já esteve nos Estados Unidos, Japão, Togo, Tunísia e, desde o verão de 2019, Nigéria.

Jorge Couto Reis e o staff técnico da academia em Lagos

«Os números oficiais de infetados na Nigéria são muito questionáveis»

Até ao dia 20 de março, a Academia do FC Barcelona em Lagos era a casa de Jorge Couto Reis. Não fosse a pandemia global e os efeitos devastadores do vírus, o treinador português estaria por estes dias a fechar a temporada de uma casa que tem «cerca de 300 atletas» e um staff de «mais 50 pessoas».

«A covid-19 chegou a África mais tarde. Dizia-se que o vírus teria dificuldades em resistir às temperaturas altas e, nesse sentido, a população e o governo esperavam passar um pouco ao lado de tudo isto. O país acabou por ser afetado e os primeiros casos surgiram no início de março», conta ao Maisfutebol, já de volta a Portugal.

«As academias do FC Barcelona foram fechando a conta-gotas e a nossa em Lagos foi a última, a 20 de março, também por decreto do governo. Nesse mesmo dia, o clube providenciou a minha viagem de regresso para o Porto. O contacto com a sede central em Barcelona permitiu-me agilizar o processo e foi tudo rápido. Houve uma resposta rápida e encontrámos uma solução, até porque havia a ameaça dos aeroportos fecharem.»

Na academia comandada por Jorge Couto Reis não há registo de casos positivos, mas isso não é sequer significativo, pois os números oficiais são «muito questionáveis» num país onde «impera o caos» e falta quase tudo.

«Não houve nenhum caso detetado, mas a questão dos testes tem sido um problema. Lagos tem oito milhões de pessoas, as condições de vida são precárias e os níveis de saúde e de higiene são muito básicos», contextualiza.
 

A magia da seleção de 94 e a visita de Okocha e Kanu

O que falta em organização na sociedade nigeriana, sobra em talento para o futebol. Basta andar pelas ruas e investir alguns minutos a analisar os inúmeros jogos improvisados de «crianças ou adultos». Jorra paixão e qualidade em cada campo de poeira e lama.

«Lagos é um grande desafio. Sabia o que ia encontrar. O que tem sido mais aliciante é a busca de talento e de potencial, dentro de circunstâncias distintas. Estas circunstâncias tornam o futebolista nigeriano mais resiliente», diz Jorge Couto Reis, um admirador confesso das memórias deixadas a diferentes gerações pela maravilhosa seleção da Nigéria de 1994.

Yekini, Amunike, Amokachi, Rufai, Oliseh, Finidi…

«Tinha na minha memória desportiva essas referências nigerianas. Como o Okocha e o Kanu, por exemplo, que já tive a possibilidade de conhecer aqui. Há sempre gente a jogar na rua e isso é uma vantagem para o desenvolvimento dos atletas. Essas figuras nigerianas históricas aparecem em ações com fundações locais.»

Obrigado a um regresso antecipado a Portugal, Jorge mantém-se diariamente ocupado. Seja em contacto com a sede central do FC Barcelona, seja com os membros da academia nigeriana. Trabalho não falta, mesmo em confinamento social.

 

«Nesta altura estamos a tentar comunicar com os atletas através das plataformas online. Há desafios técnicos, desafios sobre a história do FC Barcelona, desafios para análise dos jogos do Barcelona e da própria academia. Queremos mantê-los em contactos connosco, mas nesta altura só as academias na China estão a retomar a atividade. Todas as outras estão em stand-by.»

A expetativa, diz, é regressar «só para preparar a próxima temporada».

«Desde Barcelona têm-nos mantido entretido com formações diárias com treinadores de La Masia. Tenho passado os dias em frente ao computador, a fazer algum desporto e a estar com a família. Tenho aproveitado para compensar o tempo que passo longe deles.»

«Vítor Frade inspirou-me a olhar para Cruyff e Guardiola»

Jorge Couto Reis teve passagens curtas pelo futebol federado, mas sempre soube que o caminho profissional seria o treino. Orientou a vida nesse sentido e teve a certeza da escolha a fazer ao cruzar-se com o professor Vítor Frade na Faculdade de Desporto do Porto.

«Foi uma inspiração para mim. Foi ele que nos inspirou a olhar para o futebol de Johan Cruyff e posteriormente de Pep Guardiola. O jogo apaixonante desse Barcelona levou-me, mais tarde, a procurar seguir a minha aprendizagem na Cidade Condal», conta o treinador, que também fez um estágio no Leixões e trabalhou no FC Porto.

«No final do estágio, o professor Vítor Frade convidou-me para ingressar no FC Porto e estive lá três anos. Foi sensacional, trabalhei com pessoas incríveis. Em 2013 decidi experimentar aquilo que tinha no meu imaginário e fui fazer o meu Mestrado em Treino de Alto Rendimento no Instituto Nacional de Educação Física da Catalunha.»

Jorge pretendeu conhecer «de perto» o estilo de jogo e a metodologia de treino do maravilhoso Barcelona idealizado por Pep Guardiola. Ainda assim, teve de esperar três anos até entrar nos quadros do emblema do Camp Nou, já possuidor da titulação UEFA Pro, conferida pela RFEF, a federação espanhola de futebol.

«Cheguei em 2013 e só em 2016 passei a fazer parte da estrutura do FC Barcelona. Tive a possibilidade de frequentar os treinos da primeira equipa e refletir sobre o que via nesses treinos. Depois fiz a minha tese de mestrado e reuni na mesma obra os dois grandes cérebros do treino mundial: os professores Vítor Frade e Paco Seirul-lo. Publiquei essa tese em livro, depois de receber nota máxima. Isso foi importante para ser convidado a entrar no Barcelona.»
 

Seguidor dos ensinamentos de Frade, Cruyff e Guardiola, Jorge Couto Reis anda feliz pelo mundo. Um pouco como o inesquecível Eduardo Galeano, que se auto-intitulava «um mendigo de futebol».

'Ando pelo mundo de chapéu na mão e nos estádios suplico: ‘Uma linda jogada por amor de Deus! E quando acontece o bom futebol, agradeço o milagre'.

Jorge Couto Reis não é escritor, muito menos uruguaio, mas partilha com o saudoso Galeano essa necessidade ver bom futebol.

«Fui um jogador de rua. O prazer de ter a bola, de levá-la debaixo do braço, é um bocado a identidade deste clube. Identifico-me muito com isso, a possibilidade de desfrutar com a bola. Sou feliz trabalhando com jogadores de grande talento, numa instituição que me permite grandes condições de trabalho enquanto diretor técnico.»

O futuro? Onde houver qualidade, contem com Jorge Couto Reis. «Continuar a aprender no Barcelona, com profissionais de excelência, com entusiasmo em projetos onde a premissa seja o talento. Pretendo continuar perto do talento.»

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