Correu no Sporting, no Benfica e nem subsídio de desemprego lhe deram - TVI

Correu no Sporting, no Benfica e nem subsídio de desemprego lhe deram

Manuel Silva

Manuel Silva é recordista nacional dos três mil metros obstáculos e foi a dois Jogos Olímpicos. O fim da carreira atirou-o ao fundo do poço, mas o Luxemburgo deu-lhe uma vida nova

Duas presenças em Jogos Olímpicos, idas a Europeus e Mundiais de atletismo, recordista nacional dos três mil metros obstáculos, Sporting e Benfica no currículo.

Quem olha para o percurso de Manuel Silva, 41 anos, adivinha por certo um homem financeiramente independente, com um lugar em alguma instituição relevante ligada ao mundo do desporto, talvez até a preencher um cargo de responsabilidade.

Não é o caso. Com o fim da carreira profissional no atletismo em 2009, Manuel viu-se com uma mão à frente e outra atrás, sem ter sequer direito ao subsídio de desemprego. Suportou ainda dois anos em Portugal, como rececionista de um pavilhão gimnodesportivo, mas o grito pela sobrevivência e a educação dos dois filhos falaram mais alto.

A «queda sem fim» foi interrompida pelo chamamento do Luxemburgo. Manuel agarrou-se à oportunidade que a vida de emigrante lhe deu, até ganhar agora coragem de falar sobre tudo o que passou.

Uma entrevista emocionada e emocionante ao Maisfutebol.

Manuel Silva durante os 3000 obstáculos nos JO de Sidney

Maisfutebol – Está no Luxemburgo desde 2011. Arranjou emprego facilmente?

Manuel Silva – Infelizmente, a vida obrigou-me a vir para cá. Arranjei logo emprego, mas comecei por baixo. Estive numa empresa de limpezas, fiquei dois anos e depois tive a oportunidade de trabalhar no setor da produção de biogás. Tive de aprender a falar alemão, passo a passo evoluí e é o que estou a fazer atualmente. Dá para viver.

MF – Como é o seu dia-a-dia aí no Luxemburgo?

MS – Começo a trabalhar às oito da manhã e fico na empresa até às cinco. Quando estou em permanência, fico em casa, mas sempre de prevenção. Isso dura 24 horas. Quando posso, ainda faço um treininho de meia-hora, janto, estou com a minha esposa, os meus dois filhos e às onze da noite estamos a dormir.

MF – Tem uma vida estável financeiramente?

MS – Felizmente, sim. Agora… acho que sim. Quando estava na empresa de limpezas não era fácil. A maior parte dos funcionários eram portugueses e a barreira da língua não me permitia evoluir. Quando mudei para a empresa atual, é verdade, as coisas melhoraram. Ambiciono sempre mais para a minha família, mas por enquanto dá para viver. A minha esposa em Portugal trabalhava na Portugália e aqui abriu um espaço onde faz manicure. Ela também me acompanhou para o Luxemburgo, até para salvar o nosso casamento. 'Em casa que não tem pão'... Era impensável viver à distância. Temos dois filhos, o Afonso e a Leonor. Estão perfeitamente integrados, já não querem voltar a Portugal.

MF – O pior já passou para a sua família?

MS – Sim, mas sinto uma mágoa enorme. Não era isto que projetava para nós quando saí do atletismo. Vivi momentos difíceis em Portugal, não escondo isso. Sou natural de Guimarães, sou familiar dos gémeos Castro, e comecei com 13 anos no atletismo.

MF – Passou a viver do atletismo em exclusivo com que idade?

MS – Aos 18 anos, quando fui para o Sporting. Passei a levar o atletismo mesmo a sério e em 2000, dois anos depois, cheguei aos Jogos Olímpicos de Sidney. Tive a sorte de ter dois grandes treinadores: o Bernardo Manuel e o Armando Aldegalega. Encontrei uma estrutura excelente, grandes atletas e evoluí rapidamente. Em pouco tempo atingi resultados suficientes para ir aos Jogos.

 

Manuel Silva (203) nos bons tempos do Sporting

MF – No Sporting e no Benfica trabalhou sempre a recibos verdes?

MS – Sim, esse foi o grande problema. Nunca pensei que isso mais tarde me traria tantas chatices. Acho que quase todos os meus colegas tinham essa ligação precária, nunca achei que no futuro fosse tão penalizante. Quando fui para o Luxemburgo, a Segurança Social exigiu-me tudo o que não estava pago. Estamos a falar em recibos verdes passados durante mais de uma década, o valor era astronómico.   

MF – Nunca teve nenhum benefício fiscal por ter representado Portugal em dois Jogos Olímpicos?

MS – A única benesse que eu tive estava ligada a um pequeno desconto no pagamento do IVA. Tinha um regime especial de tributação. Hoje em dia, as pessoas que passam recibos têm direito ao subsídio de desemprego, mas na minha altura ainda não era assim. Ir aos Jogos deu-me prazer, mérito, mas nenhuma vantagem financeira. 

MF – Vamos por partes, então. Quando começou a ver a vida a andar para trás?

MS – Em 2004, nos Jogos de Atenas, tive um desabafo no final da minha prova e a carreira nunca mais foi igual. Ainda corri mais uns anos, mas o nível não mais foi o mesmo. O problema maior apareceu-me quando deixei o atletismo profissional. Como sempre estive ligado aos clubes através de recibos verdes, foi assim no Benfica e no Sporting, acabei a carreira e nem direito tive ao subsídio de desemprego. Nessa altura já tinha os meus dois filhos. A minha vida sempre tinha sido o atletismo, por isso passei por grandes dificuldades.

MF – Que desabafos foram esses?

MS – Quero aproveitar para pedir desculpa a algumas pessoas. Eu estava em boa forma, mas a corrida não me correu bem e não me apurei para a final. Fui falar com os jornalistas, estava de cabeça quente e disse tudo o que senti no momento. Lamentei a falta de apoios, atirei-me à federação, ao presidente Fernando Mota e ao diretor técnico da altura, o professor Jorge Vieira. Fui injusto com eles. A verdade é que eles cumpriram sempre comigo. Em 2000 fui aos Jogos sem estar integrado no projeto olímpico. Fui à final e passei a integrar o projeto para os Jogos de 2004, mas em agosto de 2002 lesionei-me num joelho e fui aos Europeus sem condições. Fiz um mau resultado e saí do projeto olímpico. Até 2004 tive de pagar do meu bolso quase todas as deslocações e investimentos, passei a ter um pequeno apoio da federação. Lá consegui fazer os mínimos, bati o recorde nacional e fui aos Jogos, sem ter o apoio dos que estavam no projeto olímpico. O meu desabafo nasceu nessa frustração, mas foi injusto. A federação nada podia ter feito.

MF – É nessa prova em 2004 que acontece o episódio dos sapatos «rotos».

MS – Sim (risos). Tive joanetes nos pés e o sapato nessas partes acabou por abrir. Depois, claro, com a frustração do mau resultado acabei por desabafar. Todos estão atentos aos Jogos e as minhas palavras tiveram enorme eco e caíram muito mal nos responsáveis do atletismo. Devia ter procurado apoio psicológico e não o fiz. Lidei muito mal com a situação e entrei em absoluto declínio.  

MF – Tinha só 26 anos.

MS – Esse momento em 2004 «matou» o atleta Manuel Silva. Nunca mais fui o mesmo. Ironicamente, poucas semanas antes dos Jogos tinha estabelecido o recorde nacional dos três mil metros. Cheguei aos Jogos em grande forma e depois correu tudo mal.

MF – Quanto é que ganhava enquanto atleta do Sporting e do Benfica?

MS – No Sporting ganhava 1000 euros e depois recebia mais 2000 por estar no projeto olímpico. Ganhava, por isso, à volta de 3000 euros mensais até 2003. No Benfica ganhava só 750 euros e depois caí do projeto olímpico como contei. Com os prémios que ia ganhando nas provas, lá ia aguentando, mas entrei em queda livre. Parei em 2009 porque já não ganhava o suficiente para sobreviver e sustentar a minha família.

MF – Quando deixou o atletismo, o que foi fazer profissionalmente? 

MS – Procurei tudo e mais alguma coisa, falei com os meus conhecidos no mundo do desporto e só me surgiu uma proposta da Junta de Freguesia de São Domingos de Benfica. Passei a ser rececionista no pavilhão da freguesia, também a recibos verdes. Estive lá dois anos, até me mudar para o Luxemburgo. O que ganhava no pavilhão não dava para viver. Ainda por cima a renda do nosso apartamento duplicou, apanhámos a crise e tivemos de ser ajudados por amigos e familiares.

MF – Nesse período mais sensível, entre 2008 e 2011, teve algum apoio de Sporting, Benfica ou federação?

MS – Infelizmente, não. Nada. Quando estamos bem, não faltam amigos. Quando estamos mal, os amigos não chegam para os dedos de uma mão. Ainda pedi auxílio ao comandante Vicente Moura, presidente do COP, mas também não apareceu nada. Senti sempre que as minhas palavras de 2004 fizeram de mim persona non grata. Sei que o Fernando Mota e o Jorge Vieira não mereciam o que eu disse e paguei isso bem caro. Em oito minutos e 40 segundos senti o trabalho de quatro anos a ir por ali abaixo e explodi. Senti-me completamente desamparado… já passou.

MF – Os seus colegas do atletismo perceberam que o Manuel estava em dificuldades?

MS – Sim, até porque alguns passaram pelos mesmos problemas. Outros foram-se safando. Tive colegas polícias, funcionários públicos, empregados de autarquias. Nunca se desligaram dos empregos e conseguiram lidar bem com o final da carreira.

MF – Que estudos tem o Manuel Silva?

MS – Frequentei a Faculdade de Motricidade Humana, mas não concluí a Licenciatura. Congelei a matrícula e apostei completamente no atletismo a partir de 2000. Foi um erro. Ainda não retomei os estudos, até porque depois surgiram os dois filhos e não fui capaz de gerir tudo.

MF – Que memórias guarda das idas aos Jogos de 2000 e 2004?

MS – Adorei a experiência em Sidney, as Olimpíadas foram fantásticas. Conheci o Lance Armstrong, que na altura ainda era um deus do desporto. Fiz um bom 13º lugar na final. Em 2004 só consigo pensar nas minhas palavras, no meu desabafo. Esqueci-me de tudo o resto.  

MF – Quais são os seus projetos de vida para os próximos anos?

MS – Dar um bom futuro aos meus filhos. Uma vida estável. Já quis também levar este projeto do biogás para Portugal. Em Portugal fala-se muito de meio ambiente, ecologia, mas pouco se faz. Fiz contatos, aguardo uma resposta positiva. Quando arranjar um emprego estável em Portugal, quero voltar logo.   

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