"Pessoa certa" para traduzir Amanda Gorman tem de ser mulher jovem, ativista e negra - TVI

"Pessoa certa" para traduzir Amanda Gorman tem de ser mulher jovem, ativista e negra

  • .
  • MJC
  • 11 mar 2021, 18:09
Amanda Gorman, poeta norte-americana

O escritor catalão Victor Obiols foi afastado da tradução do poema “The Hill We Climb”, de Amanda Gorman, por não ter o “perfil” adequado, depois de também Marieke Lucas Rijneveld ter desistido pelo mesmo motivo

O escritor catalão Victor Obiols foi afastado da tradução do poema “The Hill We Climb”, de Amanda Gorman, por não ter o “perfil” adequado, depois de também Marieke Lucas Rijneveld, que venceu o Booker Internacional, ter desistido pelo mesmo motivo.

Disseram-me que eu não era adequado (...). Não questionaram as minhas qualidades, mas procuravam um perfil diferente, o de uma mulher, jovem, ativista, e de preferência negra", disse Victor Obiols à AFP, referindo-se à decisão da editora catalã, que reconheceu à editora norte-americana o direito de definir as "condições que quiser” e a "pessoa certa" para traduzir.

Tradutor de obras de William Shakespeare e Oscar Wilde, o escritor Victor Obiols tinha recebido há três semanas um pedido da editora Univers, de Barcelona, para publicar, em abril, uma edição bilingue inglês-catalão do poema "The Hill We Climb", lido pela poeta afro-americana Amanda Gorman, na tomada de posse do Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, com um prefácio da estrela de televisão norte-americana Oprah Winfrey.

Victor Obiols aceitou com "grande entusiasmo" o convite de traduzir Amanda Gorman, porque gostou muito do que a ouviu recitar em Washington, e pela possibilidade de entrar no seu universo, contou à Efe.

Na semana passada, com a tradução já entregue, recebeu uma chamada da Univers para lhe perguntar se praticava algum tipo de ativismo, ao que respondeu fazer parte da PEN Catalã, que, entre outras atividades, "defende escritores perseguidos", e da organização não governamental "Água para o Sahel", com a qual se deslocou ao Burkina Faso, e recordou ainda que fez recitais de poesia negra africana em toda a Catalunha.

Ainda assim, o editor foi informado pelos Estados Unidos de que Obiols "não era a pessoa certa", contou o escritor, afirmando desconhecer se a rejeição partiu do editor da versão original ou dos agentes da jovem poeta afro-americana.

É um assunto muito complexo que não pode ser tratado de ânimo leve. Mas se não posso traduzir uma poeta porque ela é uma mulher, jovem, negra, americana do século XXI, então também não posso traduzir Homero, porque não sou um grego do século VIII a.C., ou não poderia ter traduzido Shakespeare, porque não sou um inglês do século XVI", acrescentou o escritor catalão.

Em declarações à Efe, na quarta-feira, a editora da Univers, Ester Pujol, disse que a editora americana pode estabelecer "as condições que quiser”, mas isso significará ter de mudar de tradutor, precisamente quando Victor Obiols já lhes tinha dado o seu trabalho, o que "obviamente" será pago.

Este não é o primeiro caso a gerar polémica em torno da publicação do poema que Amanda Gorman, de 22 anos, escreveu e leu na tomada de posse do novo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, a 20 de janeiro.

Há um mês, Marieke Lucas Rijneveld, dos Países Baixos, que se identifica como pessoa não-binária e por isso não usa os pronomes masculinos ou femininos, desistiu de traduzir Amanda Gorman para holandês após um grito de protesto que eclodiu nas redes sociais, e a que a jornalista e ativista cultural negra Janice Deul deu palco mediático, ao escrever um artigo de opinião no jornal holandês De Volkskrant, no qual se inquietava com a possibilidade de “uma tradução branca para a poesia de Amanda Gorman”, uma “escolha incompreensível”.

Para Janice Deul, era “uma oportunidade perdida”, a escolha de alguém sem experiência na tradução e que não fosse “artista de 'spoken-word', jovem, mulher e assumidamente negra”, já que Marieke Lucas Rijneveld é "branca, não binária e não tem experiência neste campo", noticiou a AFP.

Após estas críticas, Marieke Lucas Rijneveld, que no ano passado se tornou a escritora mais jovem a ganhar o Prémio Booker Internacional com o seu romance de estreia, "The discomfort of evening”, anunciou a decisão de se afastar, através do Twitter.

Marieke Lucas Rijnevels disse estar “em choque com o tumulto” gerado em torno do seu “envolvimento na difusão da mensagem de Amanda Gorman”, e acrescentou compreender "as pessoas que se sentem magoadas pela escolha da editora Meulenhoff”.

Marieke Lucas Rijneveld afirmou ter o apoio da equipa de Amanda Gorman e que teria sido uma "grande e honrosa missão" traduzir a sua poesia: "Teria colocado todo o meu amor na tradução do trabalho de Amanda, considerando que a maior tarefa é manter a sua força, tom e estilo".

O convite partiu da editora Meulenhoff, que considerou que Marieke Lucas Rijneveld era “a pessoa de sonho para fazer a tradução” e que, mesmo depois de aceitar a decisão da autora de se afastar, reiterou que mantinha a sua escolha.

De acordo com o jornal The Guardian, a editora holandesa garante que foi a própria Amanda Gorman a escolher Marieke Lucas Rijneveld, de 29 anos, para traduzir as suas palavras.

Dias depois, Rijneveld respondeu através de uma poema à controvérsia em torno da sua decisão de abandonar a tradução de Amanda Gorman, intitulado “Everything inhabitable”, numa tradução inglesa publicada pelo The Guardian, no qual refere a importância de cada um se colocar no lugar do outro, para ver "o mar de tristeza através dos seus olhos" e "a ira de todas as iras", e a importância de saber sentir, mesmo que "não entenda tudo" e a diferença seja "uma lacuna".

Amanda Gorman tornou-se uma celebridade internacional depois de recitar "The Hill We Climb", um poema que surge após o ataque ao Capitólio dos Estados Unidos, e no qual afirma que a democracia "nunca pode ser derrotada de vez".

Nesse poema, fala dos “herdeiros de um país e de um tempo, onde uma miúda negra magricela descendente de escravizados, e criada por uma mãe solteira, pode sonhar em tornar-se presidente” e de lutar “por uma união perfeita” e por “compor um país comprometido com todas as culturas, cores, feitios e condições humanas.

Em Portugal, a Casa Fernando Pessoa publicou uma tradução do poema feita pela poeta Raquel Lima.

Continue a ler esta notícia