Ébola: o vírus que ataca quem o quer tratar - TVI

Ébola: o vírus que ataca quem o quer tratar

(REUTERS)

236 profissionais de saúde já morreram com o vírus. Problema está em África. Em Espanha e nos EUA, são falhas no protocolo. Se é médico, enfermeiro ou auxiliar, saiba quais os cuidados a ter

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Mais de 400 profissionais de saúde já contraíram o vírus ébola em todo o mundo, sendo que 236 acabaram por morrer, segundo o último balanço da Organização Mundial de Saúde.

O maior problema está em África, onde faltam condições e equipamentos para os médicos, enfermeiros e auxiliares que tratam os doentes. Os três únicos casos de contágio fora deste continente são três enfermeiras, uma espanhola e duas norte-americanas, que trataram diretamente pacientes que foram repatriados ou viajaram dos países mais afetados.

O mapa mostra a distribuição dos profissionais de saúde infetados e mortos por país:


Segundo a OMS, já foram contabilizados em todo o mundo 8997 casos de ébola, 427 dos quais entre os profissionais de saúde. 4493 já morreram com o vírus em todo o mundo, sendo 236 profissionais de saúde.

Quer isto dizer que, enquanto a taxa de mortalidade geral é de 50%, a taxa de mortalidade entre os profissionais de saúde é maior, sendo 55%.

«A discrepância entre as taxas de mortalidade é normal, porque são os profissionais de saúde que tratam dos doentes com ébola. Ainda não temos instalações suficientes nos países mais afetados para tratar os profissionais de saúde», admitiu o porta-voz da OMS, Daniel Epstein.

Por que correm mais risco os profissionais de saúde?

Um doente com ébola necessita de tratamento constante. Os seus fluidos não podem tocar ou ser ingeridos pelos profissionais de saúde. No entanto, é preciso lavá-lo, trocar-lhe a roupa, dar-lhe comida, medicá-lo, etc. O risco de contágio vai aumentando consoante piora o estado de saúde do doente, continuando a ser muito alto quando se trata de um cadáver. 

Os três casos de contágio fora de África são todos entre profissionais de saúde. A auxiliar de enfermagem espanhola, Teresa Romero, tratou os dois espanhóis que foram repatriados dos países mais afetados quando contraíram o vírus. As duas enfermeiras norte-americanas, Nina Pham e Amber Joy Vinson, ficaram infetadas após tratar Thomas Duncan, o liberiano que acabou por morrer nos EUA. Mais de 70 pessoas ao todo terão atendido este paciente e muitas queixaram-se de falta de proteção. Por exemplo: só dois dias depois de Duncan estar no hospital, com o primeiro resultado positivo, é que os profissionais de saúde foram avisados para usar o fato.

Todos estes casos são justificados como falhas no protocolo, estando por determinar se foram as enfermeiras que falharam na sua própria proteção, ou se os fatos não estavam de acordo com as normas emitidas pela OMS, que pode ver nesta imagem:



Também em todos estes casos, coloca-se a hipótese de o contágio ter ocorrido no momento em que as enfermeiras tiraram o fato. É possível transferir o vírus da parte de fora do fato para as mãos, que, por sua vez, poderão depois tocar no rosto. O vírus pode «entrar» pela boca, pelo nariz, pelos olhos ou por fricção na pele. 

Para mostrar como esta hipótese não é assim tão difícil, o médico Sanjay Gupta exemplificou, na CNN, como pode ocorrer o contágio neste momento: 



A OMS tem diretrizes definidas para os profissionais de saúde sobre como colocar e tirar o fato de proteção, nas quais nos baseámos para construir a seguinte infografia. Em Portugal, segundo apurou a TVI24, a DGS não emitiu panfletos informativos com estas orientações.



Vários especialistas já criticaram estas diretrizes da OMS. A australiana Raina MacIntyre, por exemplo, considerou ao «Guardian» que a saúde dos profissionais será colocada em causa se os fatos de proteção não incluírem ventilação. «Se os nossos profissionais de saúde morrerem, ficamos sem esperança de controlar a epidemia. Estão a jogar à roleta russa com a vida dos profissionais que estão no terreno», constatou.

No entanto, outros especialistas garantem que a ventilação não é necessária e, segundo um estudo publicado no «The Lancet», tomar «precauções excessivas pode dar uma falsa sensação de tranquilidade» aos profissionais. «Além disso, uma proteção respiratória total é cara, desconfortável e inacessível para os países mais afetados», escrevem os autores do estudo, acrescentando mesmo que «óculos e máscaras podem nem ser necessários para falar com pacientes conscientes, desde que se mantenha uma distância de um ou dois metros».

A OMS e os Médicos Sem Fronteiras estão no terreno, em África , com centenas de profissionais de saúde. 16 membros dos MSF já contraíram o vírus e nove morreram. O caso mais mediático foi o de Sheik Umar Khan, o médico que liderava a luta contra o ébola na Serra Leoa. Morreu em julho, com o vírus, e sem ter recebido o tratamento experimental que depois viria a salvar outros colegas.


Caso um profissional de saúde destas organizações seja infetado, elas estão preparadas para o retirar de imediato e transportar para o país de origem. Há aviões sempre prontos e tratamentos experimentais que já salvaram vários, tendo sido o primeiro Kent Brantly. No entanto, no caso de um trabalhador africano, não há evacuação, nem ZMapp.


Em África é que está o problema. Os fatos de proteção são quentes, não há para todos e há poucos profissionais de saúde para tantos doentes. Falta também muita formação, sobretudo aos médicos e enfermeiros que trabalham sem a vigilância da OMS ou dos MSF. Há pequenas clínicas a tratar doentes com ébola, sem qualquer equipamento ou unidades de isolamento.

O médico Daniel Bausch já esteve na Serra Leoa e viu o pior: encontrou uma clínica com 60 doentes infetados e… dois profissionais de saúde a tratar deles. Viu fezes, sangue, vómito e até pacientes no chão. Os enfermeiros estavam em greve, porque vários já tinham sido contagiados e exigiam melhores condições. «Em alguns lugares, é um ciclo muito negativo. Uma enfermeira fica doente e a moral e a vontade do resto da equipa para continuar a trabalhar vai-se abaixo. Depois, há menos gente a trabalhar, e fica ainda mais perigoso», relatou, à «Time».

Também o médico norte-americano John Schieffelin foi para a Serra Leoa com a OMS: «Quando [os profissionais de saúde africanos] veem um colega ficar doente, não é devastador só porque é um colega. É também porque todos tomaram as mesmas precauções. Às vezes, parte da equipa não aparece durante uns dias».

Ainda assim, há histórias com finais felizes . É o caso de Foday Galla, um estudante de medicina de 37 anos, que trabalha como técnico de ambulância em Monrovia, na capital da Libéria. Segundo contou o próprio à «Time», um dia foi chamado pela terceira a vez a uma casa para ir buscar doentes com ébola. Da primeira, tinha levado uma mãe e dois filhos. Da segunda, o pai, a avó e outros dois filhos. Morreram todos. 

O último filho, Samuel, de quatro anos, estava a ser tratado por vizinhos quando chamaram a ambulância de Foday. Quando este chegou, o menino estava rodeado de vómito. Pegou nele e a criança vomitou-lhe o fato de proteção todo. Segundo as recomendações, o profissional de saúde devia ter parado para desinfetar-se com spray de cloro, mas não o fez. «Não quis saber. A família dele estava toda morta, por isso quis ter a certeza que ele ia sobreviver», conta. 

Dois dias depois, Galla ficou doente. Salvou-se, graças ao tratamento de uma equipa dos Médicos Sem Fronteiras. O menino também sobreviveu. «Fui ao inferno e voltei. O ébola é mau… A dor faz-te querer desistir», contou o técnico de ambulância, que voltou rapidamente a ajudar mais doentes com ébola.

Mas nem todos voltam . Entre os muitos apelos das organizações do terreno, está a falta de profissionais de saúde. Mas não é fácil convencer um médico ou enfermeiro a ir para um dos países mais infetados tratar uma doença tão mortal com tão poucas condições de trabalho. Para o contrariar, poderão ser construídos centros de tratamento só para profissionais de saúde. «Fazer hospitais só para os profissionais de saúde é um tratamento desigual, mas é uma das únicas formas de convencê-los de que vão ser tratados se ficarem doentes», confirmou o porta-voz da OMS, Tarik Jasarevic.

Já Salome Karwah não precisou de ser convencida. A liberiana conta, no site dos Médicos Sem Fronteiras, como sobreviver ao ébola lhe deu o impulso para tratar pacientes com o mesmo vírus.


Um tio de Salome apanhou o vírus quando ajudou uma mulher a ir para o hospital. Chamou também o irmão para o ajudar, e este também ficou infetado. Este último foi para casa e infetou mais cinco familiares, incluindo Salome. A família toda foi para um centro de tratamento dos MSF em Monrovia. «Eu mal percebia o que se passava comigo. Estava inconsciente, impotente. As enfermeiras tinham de dar-me banho, trocar a minha roupa e dar-me de comer. Eu vomitava constantemente e estava muito fraca», conta a sobrevivente.

Os pais morreram. Salome, a irmã, o noivo e a sobrinha sobreviveram. «O ébola é como uma doença de outro planeta. Traz muitas dores. Causa tanta dor que podes senti-la até aos ossos. Nunca tinha sentido uma dor assim», lembra.

Salome Karwah ficou tão «grata» pelo tratamento que recebeu que decidiu juntar-se à luta contra o ébola. Dá agora assistência psicológica aos doentes num centro de tratamento dos MSF. «Agora posso ajudar outros a recuperar», conclui. 
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