Charlie Hebdo: jornal quarentão faz anos e continua a chatear - TVI

Charlie Hebdo: jornal quarentão faz anos e continua a chatear

  • Paulo Delgado
  • 23 nov 2016, 14:01

Quase dois anos após o atentado que dizimou parte da redação, o jornal satírico francês cumpre esta quarta-feira 46 anos de existência. Continua a irritar e a indignar meio mundo. E o outro meio, bem pode esperar pela pancada

Caiu, levantou-se. Voltou a tropeçar com estrondo em fevereiro do ano passado, quando doze dos elementos que estavam numa reunião de redação foram assassinados por fundamentalistas islâmicos, e voltou a pôr-se em pé. Ainda e sempre mais mordaz, cínico, impiedoso e criando inimigos de estimação todas as semanas. É assim a existência do Charlie Hebdo, o jornal satírico francês, que saiu para as bancas pela primeira vez, a 23 de novembro de 1970.

Não tenho filhos, nem mulher, nem carro... Prefiro morrer de pé do que viver de joelhos". Assim falava Charb, Stéphane Charbonnier, de seu nome, à revista alemã Spiegel, em 2012.

Um ano antes, a 2 de novembro, a redação do jornal fora incendiada com o lançamento de um cocktail molotov. As profecias do editor Charb - que desde 2013 tinha a cabeça a prémio, estava na lista negra da Al Qaeda e tinha segurança policial - viriam a cumprir-se a 7 de janeiro de 2015. Foi um dos que foram abatidos pelas kalashnikov dos irmãos Kouachi. O gendarme que lhe servia de guarda-costas também.

A condenação ao atentado uniu o mundo. Seguramente, nunca o Charlie conseguiu tantos admiradores e amigos. De ocasião. E por pouco tempo, diga-se. Voltou a sair para as bancas na semana seguinte, numa edição que ultrapassou a habitual tiragem da ordem dos 100 mil para vender dois, três ou mais milhões de exemplares.

O atentado não amansou o Charlie Hebdo. Depois disso, voltaram as edições pondo em ridículo políticos, convenções, futebolistas, músicos e religiões.

Devia ser tão normal criticar o Islão como é criticar os judeus ou os católicos", afirmava Charb na entrevista que deu ao Spiegel em 2012.

É uma batalha que tem sido levada à letra pelo Charlie Hebdo. E que lhe tem valido inimigos de morte, processos judiciais e indignados pelo mundo inteiro.

Apesar disso, o semanário continua a disparar em todas as direções. Recentemente, escandalizou meio mundo fazendo humor negro com os atentados de março, em Bruxelas, com as vítimas do terramoto de Amatrice, em Itália, e até com a imagem do menino sírio de três anos, Alan Kurdi, que deu à costa na Turquia, morto no areal, no ano passado. O caso comoveu o mundo, mas o Charlie não se deixou ficar pelas lágrimas.

Tudo o que mexe no mundo e em França serve ao semanário para ser caricaturado. A capa da edição deste 46.º aniversário retrata a derrota do ex-presidente francês, Sarkozy, nas primárias dos Republicanos franceses. Perdeu, nem sequer volta a entrar na corrida eleitoral, porque saiu com mola de salto.

Até ver, o Charlie Hebdo não perdoa. Não cai nas graças de muita gente, mas tenta ser engraçado. Mesmo que seja e continue rude, mau e cínico. Desde o seu início, diga-se. Quando troçou com a morte do presidente e herói francês da II Guerra Mundial, general De Gaulle.

Charlie teve um parto a ferros

Em novembro de 1970, o ex-presidente francês Charles de Gaulle morre na sua casa de campo, em Colombey-les-Deuz-Églises. Uma semana antes, a França ficara em estado de choque com a morte de 146 pessoas devido a um incêndio num dancing.

Georges Bernier, o "professeur Choron", e François Cavanna misturam os dois factos e fazem a capa do Hara-kiri Hebdo, o jornal satírico que tinham fundado, com um anúncio de necrologia rezando: "Baile Trágico em Colombey - um morto". O jornal foi proibido.

Explica no seu site, o Charlie Hebdo que o argumento usado para a proibição do Hara-Kiri Hebdo pelo então ministro francês do Interior, Raymond Marcellin, foi a pornografia.

Quatro minúsculas pilinhas saciadas desenhas por Willem e Cabu em edições anteriores", é a explicação dada pelo jornal.

Se o poder de então suicidou o Hara-kiri, não matou a vontade de manter um jornal satírico. Na semana seguinte, a redação de jornalistas, cartoonistas, humoristas fez sair para as bancas um novo título: Charlie Hebdo.

O próprio nome tinha a sua explicação. Hebdo porque continuava a ser uma publicação semanal, como qualquer hebdomadário. Charlie, para manter a malandrice, usando o diminutivo do nome próprio do general De Gaulle, Charles.

Dia 23 de novembro de 1970, o número 1 do Charlie Hebdo estava nas bancas. Com uma capa que apregoava “Não há censura em França!", e trazia ao lado o desenho de um cego, dizendo, "Mais vale ouvir isso do que ser surdo”.

Criar um jornal em poucos dias, em resposta a uma publicação censurada pode quase considerar-se uma prática da época. Em Portugal, também há exemplos disso mesmo. Em 1980, a televisão estatal RTP pôs termo ao magazine então com mais audiência. Numa semana, Joaquim Letria, o jornalista e pivô do programa, com a cumplicidade de Rocha Vieira, Ernâni Santos e Ramon Font lançou o semanário com o mesmo nome: Tal & Qual.

As semelhanças entre o título português e o Charlie Hebdo ficam-se praticamente por aqui. Letria, que sempre recusou a etiqueta de tablóide para o Tal & Qual, defendeu sempre o jornal como um produto inspirado nos canard franceses. De que o centenário Canard Enchainê é o expoente, usando o humor e a investigação jornalística. Sem amarras.

O estilo do Charlie Hebdo é diferente. Desde o seu início. Apoia-se muito nos cartoons, desenhos, caricaturas e textos humorísticos, um pouco à semelhança das publicações pós-25 de abril do publicista português José Vilhena. Casos da Gaiola Aberta, O Cavaco, O moralista.

Até janeiro de 1982, o Charlie Hebdo foi saindo para as bancas. Todas as semanas. Acabou por ser encerrado pelos próprios autores. Faltavam-lhe leitores e sobretudo, faltava-lhes dinheiro.

Um regresso com mais artilharia

Dez anos depois, em julho de 1992, o Charlie Hebdo regressa. Tem à sua frente o jornalista, cantor e comediante Philippe Val e alguns dos já históricos da publicação. Que na sua edição de relançamento apanha um então presidente François Mitterrand num momento complicado da governação.

Com o andar das semanas e dos anos, o Charlie Hebdo foi colecionando inimigos. E processos judiciais. Tudo e todos lhe servem para ridicularizar. Sem recuar, sem dó nem piedade, nem na hora da morte de quem quer que seja. Caso do líder da Al Qaeda, Bin Laden - que foi retratado aproveitando o mito urbano de que o rei do rock, Elvis Presley, ainda estará vivo -, ou do rei da Pop, Michael Jackson - que o Charlie Hebdo mostrou como um esqueleto, que finalmente atingiu o objetivo de ser branco -  ou até David Bowie.

Nas pautas da política, especialmente da francesa, o Charlie também tem terreno fértil e suficientemente polémico. Há cinco anos, o líder do FMI e putativo candidato socialista à presidência francesa foi apanhado num escândalo sexual. O Charlie usou as iniciais do seu nome Dominique Strauss-Kahn, DSK, aproveitando a similitude com as do assassinado presidente norte-americano, John Fitzgerald Kennedy (JFK).

O resto veio por acréscimo no cartoon, fazendo lembrar o dia da morte de Kennedy em Dallas: um Strauss-Kahn em jeito de playboy, num descapotável, com uma "Jacqueline" a seu lado, sob uma chuva de presevativos. Em vez de confettis.

Os presidentes franceses Sarkozy e Hollande também são habitués do Charlie. Da mesma forma que os norte-americanos, Obama e o futuro Trump, que se adivinha como uma mina para próximas edições do jornal.

Na véspera das eleições, Obama foi capa, fugindo dos tiros, como qualquer negro norte-americano, vítima de violência policial. Já depois da vitória, o eleito e o seu estilo de "elefante em loja de porcelanas" também não escapou ao sarcasmo do Hebdo.

Religiões, processos e atentados

Católicos, judeus e muçulmanos, muitos têm razões de queixa do jornal francês. Processo judiciais foram movidos por organizações maometanas ao Charlie Hebdo, por causa de uma capa retratando Maomé com um cinto de granadas e de outra com o profeta travando alguns suicidas, dizendo-lhes, "Parem, já não virgens no paraíso!".

A publicação foi sendo absolvida, mas continua a ser condenada no seu terreno: a praça pública. E tem mantido uma relação particularmente tensa com o islamismo. Sobretudo desde 2006, quando reproduziu os doze cartoons inicialmente publicados no jornal dinamarquês Jyllands-Posten, numa edição com uma capa mostrando Maomé e a legenda, "É duro ser adorado por estes burros".

Em novembro de 2011, o Charlie é incendiado com um cocktail molotov. Aparentemente, a capa que fez transbordar o copo da paciência dos radicais mostrava mais uma vez Maomé, a prometer "cem chicotadas a quem não se risse".

O jornal teve de se albergar por um mês nas instalações do Libération, o diário fundado em 1973 pelo escritor Jean-Paul Sartre. Foi daí que os humoristas responderam ao atentado. Com uma capa apresentando um muçulmano a beijar um elemento da equipa do Charlie Hebdo e a legenda, "o amor é mais forte que o ódio".

Na primeira edição do ano passado, o Charlie Hebdo punha na capa uma caricatura do escritor Michel Houellebecq, o "enfant térrible" da atual literatura francesa. Mais uma vez, a legenda dava uma alfinetada no Islão: “As previsões do mago Houellebeck: Em 2015 fico sem dentes, em 2022, faço o Ramadão”.

Na manhã desse mesmo 7 de janeiro, quando decorria a reunião para preparar a edição seguinte, dois homens entraram a matar na redação. Doze pessoas foram assassinadas.

O atentado feriu o Charlie Hebdo, mas não o liquidou. Pela segunda vez na sua história, teve de se hospedar nas instalações do Libération. Enquanto as ondas de solidariedade corriam pelo mundo, uma semana depois, publicou a edição com uma caricatura de Maomé dizendo "Tudo está perdoado: Je suis Charlie”.

Puro engano, para quem acreditou que o jornal ia baixar a guarda. Para assinalar o aniversário do atentado, a capa trazia um boneco, com a imagem que habitualmente associamos a Deus, de todas as religiões, correndo com uma kalashnikov à tiracolo: “Um ano depois, o assassino continua em fuga”.

E vem mais um ano a colecionar indignações

Religiões, políticos, desportistas e futebolistas à parte, o Charlie Hebdo continua a escandalizar de tempos a tempos. Com quaisquer casos que marquem a atualidade.

Um dos momentos mais condenados teve a ver com a imagem do menino sírio, morto numa praia da Turquia, em setembro do ano passado. Nas páginas do Charlie Hebdo saiu o cartoon, com uma brincadeira corrosiva usando um cartaz promocional de um menu-criança do McDonald's. O episódio levou mesmo o jornal a explicar-se no seu site. Em forma de banda desenhada, usando os seus argumentos.

Em março deste ano, a capital belga foi alvo de atentados. A partir de Paris, tempos antes palco de um imenso morticínio na sala de espetáculos do Bataclan, o Charlie Hebdo viu tudo e reagiu. À sua maneira, claro está. Fez capa com uma caricatura do rapper Stromae, filho de mãe belga e pai do Ruanda, assassinado no conflito que há anos opõe tutsis e hutus naquele país africano. A legenda colocada sobre a explosão que despedaça corpos mostra o músico à procura do seu "papá".

Condenado na praça pública, indignando muito boa gente, o Charlie Hebdo conseguiu recentemente irritar os vizinhos italianos. Não faltaram ameaças de processos judiciais pelo cartoon publicado nas páginas interiores do jornal, retratando o terrível terramoto de agosto, na pequena localidade de Amatrice. Sob o título "sismo à italiana", um sobrevivente ensanguentado é apresentado como "macarrão com molho de tomate", uma mulher queimada como "macarrão gratinado" e uma pilha de cadáveres entre escombros como "lasanhas".

Esta quarta-feira, o jornal satírico francês Charlie Hebdo - cruel e bárbaro, para muitos - cumpre os seus 46 anos de existência. Há seguramente duas certezas. A primeira é que vai continuar a ridicularizar tudo e todos sem limites, como sejam o bom senso, decoro ou respeito. A segunda é que, para a semana há mais...

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