Alan Kurdi morreu há um ano, o que mudou para os refugiados? - TVI

Alan Kurdi morreu há um ano, o que mudou para os refugiados?

  • Élvio Carvalho
  • Notícia atualizada às 13:14
  • 2 set 2016, 10:00

Quase diariamente, milhares de pessoas são resgatadas no Mediterrâneo e outros acolhidos em centros de refugiados, mas, por outro lado, quase diariamente, também, surgem novos casos como o da criança que morreu afogada no Mediterrânio. Atenção: este artigo contém imagens que podem ser consideradas chocantes por alguns leitores.

Há um ano, o mundo acordava chocado por uma fotografia captada na costa da Turquia. Uma prova de que o drama dos refugiados devia interessar a todos e não apenas aos Governos, que o mundo devia olhar para o problema e procurar soluções. Muitos dos céticos que lhes chamavam migrantes, outros até cobardes que não queriam lutar pelo seu país, mudaram de opinião com esta fotografia. Mostrava o corpo de uma criança numa praia, morta, vítima do naufrágio do barco que a devia ter levado até à Europa, para longe da guerra, para uma vida melhor que aquela que deixou para trás.

A imagem era esta:

O menino de três anos era Alan Kurdi - os media inicialmente escreviam o seu nome como Aylan -, encontrado na costa de Kos, Turquia, depois do desastre que também lhe matou a mãe e o irmão de cinco anos. Apenas o pai sobreviveu.

Aquela fotografia e a história trágica de Alan levaram a uma onda de indignação e a múltiplas campanhas de ajuda humanitária para apoiar os refugiados que diariamente chegavam à Europa, fosse por terra ou por mar. Houve quem partisse para os países mais afetados pela crise dos refugiados com intenção de trazer famílias inteiras de volta para as suas casas. De Portugal, chegaram a partir vários camiões em direção à Croácia, uma caravana batizada com o nome da criança. A onda de solidariedade foi enorme.

A pressão sobre as entidades europeias para que uma solução fosse encontrada intensificou-se e crise dos refugiados tornou-se, ainda mais, assunto de cimeiras e reuniões a nível europeu em busca de uma solução efetiva. Era necessário acelerar a recolocação destas pessoas que chegavam ao velho continente, principalmente para aliviar os esforços dos países do sul, que mais migrantes e refugiados recebem.

A União dos 28 já tinha decidido que os refugiados seriam distribuídos pelos países membros mediante um sistema de quotas, que ditou, por exemplo, que Portugal deveria receber 4.574 pessoas. Porém, se há países disponíveis para receber mais do que o que lhes é imposto – o primeiro-ministro António Costa aumentou a quota de Portugal para mais de 10.000 -, outros não concordam com o sistema e começaram a tomar medidas para prevenir a entrada de mais migrantes e refugiados. O caso mais mediático foi o da Hungria, que construiu várias vedações ao longo das suas fronteiras para impedir a entrada de pessoas.

Para aliviar a pressão sobre os países do sul, nomeadamente Itália e Grécia, o processo foi acelerado e um novo acordo, desta vez com a Turquia, foi alcançado. União Europeia e o Governo de Ancara chegaram a um entendimento que determina que todos os migrantes e refugiados que cheguem à Grécia ilegalmente serão devolvidos à Turquia. Por cada migrante aceite, a Europa recebe um refugiado sírio. Um acordo que garantiu à Turquia um apoio de seis mil milhões de euros e a garantia de que seriam retomadas as negociações para a eventual adesão do país à União.

No entanto, ainda não é suficiente. A Síria, o país de onde chegam a maioria dos refugiados, continua em guerra, em múltiplas frentes, aliás, se tivermos em conta que o país é controlado pelo Governo de Bashar Al-Assad, por várias fações de rebeldes e por organizações terroristas como o Estado Islâmico. Guerra que já levou 4,8 milhões de pessoas a fugir do país, segundo dados da Agência da ONU para os Refugiados (ACNUR). E os números continuam a aumentar.

Os dados mais recentes da ACNUR, que contabilizam o número de pedidos de asilo pedidos até julho mostram isso mesmo. O total de pedidos preenchidos por pessoas dos três países com maior fluxo migratório (Síria, Afeganistão e Iraque) duplicou em relação ao mesmo período do ano passado, números que, ainda assim, não espelham o total real de pessoas que chegam ao continente europeu.

Pedidos de asilo (dados ACNUR)

UE JAN-JUL 2016 JAN-JUL 2015 Total 2015
Síria 213.857 108.190 362.690
Afeganistão 102.674 59.192 178.648
Iraque 78.831 30.594 121.794

Portugal está entre os países que menos pedidos recebe, apesar de ser dos países que maior disponibilidade tem mostrado para acolher estas pessoas. Até final de agosto, Portugal recebeu cerca de 700 refugiados em 66 municípios, segundo dados avançados pelo Ministro Adjunto, Eduardo Cabrita, ao Diário de Notícias.

Pedidos de asilo (dados ACNUR)

Portugal JAN-JUL 2016 JAN-JUL 2015 Total 2015
Síria 242 6 22
Afeganistão - - -
Iraque 62 - 6

Quase diariamente milhares de pessoas são resgatadas no Mediterrâneo e outros acolhidos em centros de refugiados, mas por outro lado, quase diariamente, também, surgem novos casos como o de Alan Kurdi. As crianças e jovens são, aliás, os mais vulneráveis e muitos chegam à Europa sozinhos ou acabam sozinhos, abrindo caminho para ação de redes de tráfico e para o mundo do crime. Aliás, a Interpol estima que uma em cada nove crianças refugiadas ou migrantes não estão contabilizadas, ou o seu paradeiro é desconhecido.

Números da Unicef, de fevereiro deste ano, revelaram que as mulheres e crianças representam dois terços de todas as pessoas que fazem a travessia entre a Turquia e a Grécia – a mesma onde Alan Kurdi perdeu a vida. A estatística de agosto revela que só à Grécia chegaram 27.500 crianças, 2.250 sem acompanhante, das quais apenas um terço fica nos centros de acolhimento. No total, estima-se que sejam 100.000 as crianças refugiadas que chegaram, ou estão, sozinhas.

A agência das Nações Unidas para a Infância já tinha afirmado anteriormente que só à Itália têm estado a chegar 1.000 crianças não acompanhadas por mês, “que são sujeitas a abusos terríveis, exploração e risco de morte a cada passo da viagem”.

Estatísticas do Eurostat, reveladas esta semana, citadas pela Unicef, estimam que mais de 580 mil crianças pediram asilo na Europa nos últimos 19 meses. Ainda que o número possa incluir dados repetidos, de crianças e jovens que pediram asilo em vários países, estes também não refletem todas as crianças que não se candidataram ou que não podem fazê-lo.

Em alguns países, como a Suécia, o número de adolescentes sozinhos atinge 50% de todas as crianças refugiadas. No mês passado, foi revelado que na cidade de Malmö, na Suécia, várias crianças podem estar a ser vítimas de exploração sexual. Segundo o jornal Sydsvenskan, os menores ausentam-se dos centros de acolhimento durante a noite e voltam com dinheiro e objetos caros. O mesmo artigo referia que as crianças recebem vários telefonemas ao longo do dia de alegados clientes, que marcam encontros com os jovens.

A guerra na Síria e Iraque, bem como a instabilidade de outros países do norte de África e Médio Oriente, está a criar uma geração de crianças que não conheceram outra realidade que não a da guerra ou a da fuga. Também no mês passado uma nova poderosa imagem circulou o mundo, desta vez espelhando a realidade contrária: a das crianças que “ficam para trás”.

O rapaz da fotografia é Omran Daqneesh, uma criança de cinco anos de Alepo, resgatada dos escombros deixados pelos bombardeamentos sobre a cidade. Foi ajudado e sobreviveu, sorte que o seu irmão Ali, de 10 anos, não teve, tendo sucumbido aos ferimentos causados pelas bombas do exército sírio, auxiliado pela Rússia.

Uma imagem que levanta uma questão: afinal, que opções podem ter as crianças sírias? Pergunta que o artista sudanês Khalid Albaih preferiu responder com uma ilustração.

Continue a ler esta notícia